30 de set. de 2007

Democracia digital: tipologia e modelos

Dentre as principais classificações, em concordância com as sínteses feitas tanto por Fernando Harto de Vera quanto por José David Carracedo, destacam-se quatro em especial. São as tipologias desenvolvidas por Martin Hagen, as de Bellamy, Hoff, Horrocks e Tops, as de Subirats e as de Van Dijk. Tratam-se, na verdade, de classificações que não se excluem, mas vêm complementar-se, uma vez que assumem perspectivas diferentes, conforme mencionado anteriormente.
Inicia-se com a tipologia pioneira formulada por Martin Hagen em meados da década de noventa, que foi pensada e adequada ao sistema político norte-americano para formação do que o autor chama de uma “teoria americana de democracia digital” .
Ele apresenta três tipos de democracia eletrônica, cada qual representando uma forma diferente de se perceber as realidades política e democrática e as oportunidades oferecidas pelas TICs: a teledemocracia: representando a pretensão de superação do sistema democrático representativo por um sistema de democracia direta, com a utilização das novas tecnologias para realização de voto eletrônico e o ativismo político por meio de melhor informação; a ciberdemocracia: que é conseqüência da expansão da Internet, tendo por finalidade a busca de uma verdadeira democracia através da organização do espaço virtual, tendo o ativismo político e a discussão como forma de participação política. Sua preocupação maior é (re)criar comunidades (virtuais ou não) como estruturas a partir da qual se possa enfrentar as formas centralizadas de governo; e, por último, a democratização eletrônica, que pretende aperfeiçoar e melhorar a democracia representativa pela expansão dos canais e fluxos de informação por meio da utilização das TICs. Destaca essa proposta, portanto, a importância das redes de telecomunicação como ferramentas de fortalecimento da sociedade .
Uma segunda possível tipologia é aquela apresentada por Bellamy, em trabalho conjunto com Hoff, Horrocks e Tops. Segundo os autores, não há uma busca de tipos ideais na classificação, mas sim uma tentativa compreender como a utilização das TICs afetam as práticas e discursos contemporâneos sobre a democracia, em uma abordagem derivada “de uma perspectiva que situa tanto a prática quanto a retórica das políticas democráticas e de seus contextos históricos específicos” .
Assim, utiliza como critérios de classificação: a visão sobre a cidadania, o valor democrático predominante, o nexo político, a forma de participação, o intermediário político e a norma procedimental envolvidos na questão. Cada um dos quatro modelos apresentados lida de uma maneira específica com as ameaças e oportunidades das TICs frente à democracia. Resulta dessa formulação a seguinte classificação: a democracia dos consumidores; a democracia elitista; a democracia neo-republicana; e a ciberdemocracia . Passa-se a uma breve descrição de cada uma.
A democracia de consumidores compartilha com a democracia elitista a aceitação acrítica da institucionalidade das democracias, inclusive o papel dos parlamentos, eleições e dos partidos políticos . Possui como características principais, portanto, a valorização do voto e das eleições como elemento mais importante da vida política e a predominância da burocracia no funcionamento das democracias, razão pela qual entende ser importante oferecer aos indivíduos o maior grau de informação possível, em quantidade e qualidade. O uso das TICs, assim, deve servir à criação de canais de comunicação para que os cidadãos possam transmitir as suas demandas com segurança e rapidez até as instâncias decisórias .
Já a democracia elitista tem origem no pensamento socialdemocrata, desenvolvendo-se a partir da afirmação de que a população está mais interessada em direitos socioeconômicos que em maior participação ou aprofundamento das liberdades civis. Centra a atenção, portanto, na composição dos especialistas responsáveis pela harmonização dos interesses em competição, o que ocorre por meio da institucionalização dos interesses corporativos. O uso das TICs nesse modelo refere-se, dessa forma, à melhora da qualidade dos sistemas representativos, como a descentralização dos locais de votação, o uso da Internet nas eleições, as conversas interativas on-line entre representantes e eleitores, e os fóruns e debates eletrônicos. Visa o reforço dos fluxos de informação e comunicação verticais, em detrimento dos horizontais .
Outra tipologia apresentada por Bellamy é a da democracia neo-republicana, que propõe o fortalecimento institucional da sociedade civil, com destaque para a qualidade da participação em nível micropolítico e local. Baseia-se, assim, em uma concepção ativa da cidadania ligada a três antecedentes tradicionais da teoria política: o resgate de valores comunitários, o pensamento aristotélico defensor de uma vida ativa na pólis e o humanismo marxista e sua proposta de promoção de uma sociedade civil autônoma. A partir dessa visão eclética, concebe-se a política como uma atividade compartilha visando superar o individualismo. Quanto ao uso das TICs, espera-se que as mesmas possam construir uma réplica eletrônica da Ágora ateniense, ou seja, a criação de uma esfera pública virtual mediada por redes de telecomunicação, onde se possa expressar a cidadania ativa .
O último modelo apresentado por Bellamy, no livro editado por Hoff, Horrocks e Tops, trata da ciberdemocracia, um modelo que se afirma estar ainda em formação e, portanto, sujeito a modificações . Diferentemente do modelo anterior, a ciberdemocracia é deslocalizada, já que as intermediações são virtuais, característica que torna problemática a análise desse modelo. As redes de cidadãos giram em torno de questões relacionadas a temas específicos, tendo como fundo teórico a identidade, o objeto e o sujeito da análise da pós-modernidade e suas dinâmicas em redes . Nesta perspectiva, as cibercomunidades podem substituir a política tradicional que, em crise, gera uma frágil coesão à base de marginalizar e tornar invisível o outro diferente .
A tipologia apresentada acima, entretanto, encontra dificuldades ao ser aplicada na realidade. Joan Subirats propôs, então, introduzir novos critérios de forma a aclarar as fronteiras que permaneciam difusas, articulando a tipologia de forma mais próxima da realidade. Inclui-se, assim, a divisão entre políticas publicas (policy, em inglês) e política referente às relações entre estado e cidadão (polity, em inglês). Considera-se, igualmente, as possibilidades de melhoria e inovação das instituições parlamentares atuais, de forma a explorar meios alternativos de tomada de decisões e de gestão de políticas públicas, de maneira a incorporar uma cidadania plural, característica de uma concepção aberta das responsabilidades coletivas dos espaços públicos. Ao misturar esses critérios, surgem quatro estratégias ou discursos políticos diferentes para relacionar as TICs, os sistemas democráticos e seus processos de gestão e decisão .
Segundo o autor, portanto, “podemos operacionalizar o tema tratando de relacionar em um quadro as distintas alternativas que relacionam o uso das TIC com os processos de inovação democrática”.
Por último, mas não menos importante, serão descritos os modelos de Jan van Dijk, que constrói sua proposta a partir das concepções de David Held, analisando-as em uma perspectiva da teoria da comunicação . O autor, partindo do questionamento se as democracias avançadas estão mudando de forma imperceptível com o uso diário das TICs, apresenta modelos construídos tendo por critério a dinâmica do sistema político.
Van Dijk entende que somente um sumário analítico das concepções de democracia permite lidar com a amplitude do tema. Utilizando cinco dos nove modelos ideais de Held, e acrescentando um, estabelece um marco a partir do qual analisa o uso das TICs na política, o que faz a partir de duas dimensões: do significado (democracia representativa/democracia direta) e do objetivo (formação de opinião/processo de decisão). Dessa maneira, o autor chega à seguinte tipologia: democracia legalista; democracia plebiscitária; democracia competitiva; democracia libertária; democracia pluralista; e democracia participativa .
Iniciando pelas características da democracia legalista, é de se dizer que este é um modelo baseado no modelo liberal clássico, que por sua vez se fundamenta em uma concepção procedimental da democracia, da separação dos poderes e estabelecimento de freios e contrapesos entre eles. O centro do sistema político é o julgamento dos interesses heterogêneos e dos sistemas complexos através de representantes. Portanto, o sistema vê as TICs como instrumento para solucionar a defasagem informacional – entre ricos e pobres de informação - o que pode ocorrer com o suporte de mais e melhor informação para os representantes, administradores e cidadãos e pelo surgimento de interatividades que possam criar um governo transparente, mas não controlado pela sociedade, ou seja, o controle das aplicações fica sempre subordinado às elites políticas e administrativas.
O segundo modelo apresentado, de democracia competitiva, é igualmente baseado em uma visão procedimental da democracia representativa, onde a eleição é considerada a mais importante ação no sistema político e, portanto, a burocracia, os partidos políticos e os líderes com autoridade são fundamentais. O sistema competitivo se confia, assim, nos líderes e nos especialistas, que regulam o aparato do Estado, disputam interesses e solucionam conflitos com negociação e comando. Tem como prática-modelo os sistemas presidenciais - principalmente os bi-partidários - com tendências populistas. Neste tipo, as TICs servem primordialmente para serem utilizadas nas eleições e nas campanhas de informação. Portanto, o acesso a mídia de massa e a sistemas avançados de informação pública serve, primordialmente, “para dirigir-se a uma audiência segmentada e permitir assim a diversificação das mensagens em função das características do eleitorado, maximizando desse modo a obtenção de apoios e votos” .
Já a democracia plebiscitária, o terceiro modelo apresentado, propugna que o desenho e o uso de canais diretos de comunicação entre os líderes políticos e os cidadãos podem transformar a visão da política e da democracia. Sustenta que as decisões por meio de representantes devem ser reduzidas ao mínimo necessário, enquanto as decisões plebiscitárias elevadas ao máximo possível, inspirando-se na Ágora ateniense e no fórum romano. As possibilidades práticas trazidas pelas TICs estimularam reviver as suas pretensões originais e, assim, a idéia de teledemocracia foi construída, baseada na proposta de um sistema de votação e opinião pública eletrônica. Busca-se, portanto, criar canais de consulta em massa e sistemas públicos horizontais de informação - onde a informação institucional é desacreditada e relegada a um plano inferior .
Nos modelos de democracia apresentados até agora (competitivo, legalista e plebiscitário), não se apresenta nenhuma instância intermediária entre o Estado e o sistema político representativo de um lado e o cidadão do outro. O modelo de democracia pluralista, contudo, dá especial importância às organizações e associações civis e, portanto, o sistema político deveria consistir na maior quantidade de centros de poder e de administração possíveis, opondo-se à visão centralista dos modelos legalista e competitivo (que são representados por uma pirâmide). No sistema plural, o Estado deve atuar como árbitro, pois a formação de opinião na sociedade civil é mais importante que a tomada de decisão no governo Central. É uma espécie de meio termo entre a democracia representativa e democracia direta. Duas características da nova mídia o interessa especificamente: a multiplicação de canais de informação e discussão política pluriformes; e redes de comunicação interativa, que se adaptam perfeitamente à sua concepção de política. Seus instrumentos favoritos são: correspondência eletrônica, listas de discussão, teleconferência e sistemas de suporte à decisão sobre problemas complexos .
O penúltimo modelo apresentado por van Dijk, de democracia participativa, é semelhante à pluralista em diversos aspectos, a exemplo de ser uma combinação entre democracia representativa e democracia direta e de ter uma ênfase muito grande no aspecto substantivo do modelo democrático. O grande diferencial, contudo, é a mudança de foco das organizações para os cidadãos, ou seja, tem a cidadania como seu objetivo central. Propõe uma democracia direta, não no sentido plebiscitário, mas em uma proposição de cidadania ativa decorrente da idéia de que a vontade do povo não é a soma das vontades individuais e sim decorrente de significados construídos pelo debate coletivo (inspiração em Rousseau, portanto). A conseqüência lógica desse modelo é a opção por aplicações das TICs para tornar os cidadãos mais ativos, a exemplo de campanhas de informação computadoriza,das sistemas de informação pública em massa - construídos de tal forma que auxiliem na redução da diferença entre os que têm mais e os que têm menos informação e que sejam de fácil uso. Discussões eletrônicas são tomadas apenas como segunda opção, mas condicionado a que não seja um debate elitista. São condições pouco alcançadas até o momento .
O último modelo apresentado por van Dijk, o único não extraído da obra de Held, é ligado ao que parece ser o modelo surgente com os pioneiros das comunidades na Internet e nos movimentos sociais radicais das décadas de sessenta e setenta: é a democracia libertária. Ela é próxima ao modelo pluralista e plebiscitário, já que é tributária de comunidades virtuais, tele-eleições e teleconversações. O que a torna diferente é a ênfase nas possibilidades de politização anônima dos cidadãos através das TICs, com destaque para a Internet. O problema principal a ser resolvido em relação aos sistemas tradicionais seria o seu centralismo, sua burocracia e a obsolescência das instituições políticas representativas – que, por não conseguirem resolver a maior parte dos complexos problemas contemporâneos, poderiam ser superadas por meio de uma combinação entre “democracia de Internet” e livre mercado, o que alguns chamam de “ideologia californiana”. Para isso, deveriam ser utilizadas as TICs para tornar os cidadãos bem informados por meio de um avançado sistema de informações livres e confiáveis, bem como torná-los capazes de discutir essas informações através de grupos de discussão, salas de bate-papo, correio eletrônico etc. Finalmente, devem estar em posição de expressar suas opiniões por meio eleições e votações virtuais. Essas características tornam o modelo ligado tanto a um conceito procedimental quanto substancial de democracia.
Por tudo quanto mencionado, percebe-se que os debates sobre as aplicações de TICs aos sistemas políticos das democracias avançadas oscilam entre duas posições. Por um lado, há aqueles que defendem seu uso para melhoria dos sistemas representativos; e, de outro lado, há os que pretendem suplantar a democracia representativa em direção à democracia direta. Entre as posições antagônicas, ficam os que pretendem uma combinação das possibilidades para formação de um novo tipo de democracia que aproveite as vantagens dos dois sistemas .

9 de set. de 2007

Comunidades Virtuais e Internet

“A Internet é o tecido de nossas vidas”[1]. Essa emblemática frase de Castells simboliza bem o frisson nos meios acadêmicos que causa essa inovadora forma de comunicação em rede, que hoje se expande exponencialmente e tende a alcançar, nas próximas décadas, a maior parte do globo e grande parte das atividades humanas cotidianas como estudar, comprar, conversar, divertir-se e fazer política. A grande rede está se libertando dos pesados computadores e migrando para todos os tipos de dispositivos, de geladeiras e mesas à roupas e porta-retratos. Segunda Gates, está-se caminhando para um contexto de pervasive computing, que poderia ser traduzido em algo como computação onipresente[2]. A existência de conseqüências para as sociedades e os indivíduos é evidente.

Na verdade, a formação de redes, que são conjuntos de nós interconectados, não é algo novo para a humanidade, mas diante das extraordinárias ferramentas disponibilizadas pelas novas tecnologias e energizadas pela Internet muitas coisas novas estão no horizonte. Antes da revolução informacional das últimas décadas, contudo, e na maior parte da história humana, as redes giravam em torno da vida privada e foram geralmente suplantadas em razão da escolha de outro método para execução de tarefas, que foi a forma hierárquica e racionalizada, então mais apropriada para o alcance de metas específicas e complexas[3].

Contudo, as novas tecnologias, e em particular a rede mundial de computadores, permitem às redes contemporâneas exercer sua flexibilidade e adaptabilidade ao mesmo tempo em que possibilita a gestão e coordenação de tarefas complexas, em uma combinação que oferece organização superior para a ação humana[4].

A Internet, nesse sentido, é o primeiro meio de comunicação que viabiliza a ligação de muitos com muitos em escala global. Sua difusão numérica, espantosamente rápida, ainda que reduza velocidade em razão da exclusão digital de bilhões de pessoas, tem imensa importância porque significa um salto qualitativo do uso das redes[5]. Como todo sistema tecnológico, a Internet foi socialmente produzida e seus construtores moldaram o meio de maneira a representar seus valores e crença, representada por uma estrutura de quatro camadas hierarquicamente dispostas: a cultura tecnomeritocrática, a cultura hacker, a cultura comunitária virtual e a cultura empresarial, que contribuem para uma ideologia libertária que tem vínculo direto com o desenvolvimento tecnológico da Internet[6]. Em síntese,

a cultura da Internet é uma cultura feita de uma crença tecnocrática no progresso dos seres humanos através da tecnologia, levado a cabo por comunidades de hackers que prosperam na criatividade livre e aberta, incrustada em redes virtuais que pretendem reinventar a sociedade, e materializada por empresários movidos a dinheiro nas engrenagens da nova economia[7].

Essas características estão evidentes, por exemplo, em recente matéria assinada por Kevin Kelly, o ensaísta que criou a revista Wired, intitulada “a tecnologia nos faz melhores”, fazendo permear a idéia de que, por meio da tecnologia, pode-se melhorar e reinventar a sociedade. Afirma Kelly que “nosso trabalho coletivo é substituir tecnologias que limitam nosso poder de escolha por aquelas que o ampliem” [8], fazendo transparecer uma visão de um projeto onde a tecnologia proporcione escolhas e amplie possibilidade e diversidade de idéias. Dessa forma, afirma Kelly que a tecnologia pode tornar uma pessoa melhor, “mas somente se oferecer a ela novas oportunidades. Oportunidade de obter excelência com a mistura única de talentos com que nasceu. Oportunidade de ser diferente dos seus pais. Oportunidade de criar algo” [9].

É justamente sobre o algo criado e por criar, no âmbito das comunicações mundiais mediadas por computador, que se passa a analisar.

A Internet, como base de uma comunicação “virtual” – em uma oposição à comunicação face a face – na verdade vem se caracterizando como uma forma cada vez mais “comum” de interação social e, assim, passa a fazer parte do cotidiano da pessoas de tal maneira que o virtual não pode ser ligado a algo “inexistente” ou “imaterial”, como o termo poderia ser erroneamente interpretado. Isso é resultado de uma reorganização social profunda, cujas principais características passa-se a explanar.

De início, é importante lembrar que aquela idéia original da rede de transformar o mundo de acordo com os valores pioneiros da Internet, com a difusão em massa do meio e apropriação e transformação da base tecnológica por grupos heterogêneos em todo o mundo, acabou por produzir, na verdade, uma associação paradoxal sobre o surgimento de novos padrões de interação social. Ocorre que, ao mesmo tempo em que se interpreta o fenômeno como o resultado de um “processo histórico de desvinculação entre localidade e sociabilidade na formação da comunidade”, o mesmo também é visto como a difusão de padrões de isolamento social, ruptura da comunicação social e da vida familiar, em uma espécie de sociabilidade aleatória que induz o abandono das interações face a face em ambientes reais[10].

A Internet foi acusada, assim, de manter as pessoas em fantasias on-line, fora do mundo real. Trata-se de um debate falacioso, porque fundado em pesquisas realizadas em um momento em que a Internet ainda não havia se massificado e, portanto, o universo das experiências era reduzido aos pioneiros da rede[11].

Além disso, e tal fato é fundamental a comparação, em geral, sempre foi feita tendo por parâmetro “uma sociedade local harmoniosa de um passado idealizado”, em contraste com um alienado e solitário “cidadão da internet”, estereotipado pelos nerds, situação que não representa os paradigmas atuais, seja no primeiro, seja no segundo caso[12].

Isso porque a realidade social da virtualidade da Internet agora é outra. Pode-se dizer que a Rede foi apropriada pela prática social e, hoje, os seus usos são primordialmente instrumentais ligados ao trabalho, à família e à vida cotidiana, ou seja, ela passou a ser uma extensão da vida em todos os seus aspectos e sob todas as suas modalidades[13].

Da mesma forma, o início da Internet fez nascer, de forma ambígua, uma noção de construção do que se passou a chamar de “comunidades virtuais”, que teve o mérito de colocar em evidência os novos suportes tecnológicos para a sociabilidade, mas induziu a uma confusão daquele termo “comunidade”, principalmente em razão das suas fortes conotações ideológicas. O debate sobre comunitarismo é antigo entre os sociólogos, referindo-se, em regra, à perda de formas significativas de vida devido ao surgimento das metrópoles e o conseqüente enfraquecimento e seleção dos laços entre as famílias[14].

A comunidade idealizada, com a qual se compara as comunidades virtuais, seria resultado de uma estrutura humana natural, onde não haveria motivo para reflexão, crítica ou experimentação de seus membros, pois ela é fiel ao seu modelo ideal. Esse modelo pressupõe que o grupo seja distinto de outros agrupamentos humanos (e portanto visível em contraste com o diferente), pequeno o suficiente a ponto de estar a vista de seus membros e auto-suficiente[15], de maneira a oferecer todas as atividades e atender a “todas as necessidades das pessoas que fazem parte dela. A pequena comunidade é um arranjo do berço ao túmulo”[16]. Essa comunidade, portanto, depende do bloqueio da comunicação com o mundo exterior e sua unidade é produto de sua homogeneidade, de sua mesmidade[17].

Por essas razões, essa mesmidade é desmontada quando suas condições vão desaparecendo, ou seja, quando o “de dentro” e o “de fora”, o “nós” e “eles” vão-se embaçando, em um processo relacionado com a intensificação da comunicação com o exterior. Rachaduras nos seus muros de proteção tornam-se evidentes, assim, com o surgimento dos meios de transporte mecânicos que possibilitaram que a informação viajasse mais rápido que as mensagens orais do círculo da mobilidade humana “natural”[18]. Entretanto,

O golpe mortal na “naturalidade” do entendimento comunitário foi desferido, porém, pelo advento da informática: a emancipação do fluxo de informação proveniente do transporte dos corpos. A partir do momento em que a informação passa a viajar independente de seus portadores, e numa velocidade muito além da capacidade dos meios mais avançados de transporte (como no tipo de sociedade que todos habitamos nos dias de hoje), a fronteira entre o “dentro”e o “fora” não pode mais ser estabelecida e muito menos mantida[19].

Dessa maneira, aquelas formas territoriais de comunidades, apesar de não terem desaparecido por completo, desempenha hoje um papel secundário na estruturação das relações sociais das sociedades desenvolvidas. Isso não significa que não haja sociabilidade baseada em lugares, mas quer dizer que as sociedades não evoluem em direção a um padrão homogêneo de relações sociais.

Para a compreensão das novas formas de interação social na era da Internet, portanto, deve-se reformular o conceito de comunidade, mitigando seu componente cultural e enfatizando seu papel de apoio aos indivíduos e às famílias. Assim, uma definição apropriada para comunidade pode ser aquela proposta por Barry Wellman, citado por Castells, para quem “comunidades são redes de laços interpessoais que proporcionam sociabilidade, apoio, informação, um senso de integração e identidade social”[20].

Desta maneira, pode-se afirmar que a transformação das relações nas sociedades complexas é decorrente da substituição de comunidades espaciais por redes como forma fundamental de sociabilidade, fazendo com que o novo padrão fosse construído a partir da família nuclear em casa, de onde as redes são formadas de acordo com os interesses e valores de cada membro[21].

Na verdade, torna-se difícil determinar a Internet como um meio especial, uma vez que a mesma sinaliza uma imensa variedade de alternativas de comunicações mediadas por computador, tais como salas de bate-papo, e-mails, mensageiros instantâneos, voz sobre IP e vídeo conferência. A Internet, portanto, está se integrando ao padrão normal da vida social[22].

O que se verifica é que todas essas circunstâncias levam a uma tendência dominante de ascensão do individualismo, cujo padrão dominante são as relações terciárias[23], ou o que Wellman chama de “comunidades personalizadas”, que não configuram uma cética perda da comunidade, nem seu utópico ganho, mas sim uma transformação complexa e fundamental da natureza das comunidades, partindo de grupos para formação de redes sociais[24].

Até porque, quando uma rede de computadores conecta pessoas forma uma rede social. Assim, como máquinas conectadas por cabos formam uma rede de computadores, uma rede social é um grupo de pessoas conectadas por relações sócio-significativas[25].

Diante desses fatos, questiona-se: qual o papel das novas possibilidades de comunicação via Internet? Estudos têm demonstrado que a Internet é eficaz à manutenção de laços fracos, que em outra situação seriam perdidos, cuja fragilidade decorre principalmente do fato de raramente resultam em relações pessoais duradouras. Isso porque as pessoas podem facilmente entrar e sair da rede, não necessariamente revelam sua identidade e percorrem diferentes padrões on-line. Contudo, ainda que as conexões específicas não sejam duráveis, o fluxo é constante e muitos utilizam a Internet como uma das suas manifestações sociais, com destaque ao fato de que esse padrão é baseado no individualismo[26].

Por outro lado, também quanto aos laços fortes a Internet parece ser positiva, tendo em vista que as variadas formas de família são auxiliadas pelo uso, por exemplo, do e-mail, que surge como um fácil instrumento de “estar ali” à distância e como uma forma de interação mais profunda quando não se dispõe de energia em determinado momento[27].

O certo é que a preponderância da sociabilidade individualista resulta do fato de que as pessoas estão cada vez mais organizadas em redes sociais mediadas por computador, devendo-se considerar, de toda sorte, que a tecnologia não é o padrão desse processo, mas o meio que oferece o suporte material para a difusão desse tipo de relação social, situação que ainda se constela com a ocorrência de comunicações físicas, em um sistema final sobre o qual pode-se referenciar como híbrido[28].

Essa tendência determina o triunfo do indivíduo, o que significa a ocorrência de custos para a sociedade ainda não claros, ainda que seja evidente a construção, por meio da tecnologia, de uma nova sociedade em rede[29].



[1] CASTELLS, Manuel. A Galáxia da Internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 7.

[2] GATES, Bill. A Hora da Colheita. Revista Veja Tecnologia. Edição n. 2022. Ed. Abril. Agosto de 2007. p. 71.

[3] CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 7.

[4] CASTELLS, A Galáxia da Internet, pp. 7/8.

[5] CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 8.

[6] CASTELLS, A Galáxia da Internet, pp. 34/35.

[7] CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 53.

[8] KELLY, Kevin. A Tecnologia nos Faz Melhores. Revista Veja Tecnologia. Edição n. 2022. Ed. Abril. Agosto de 2007. p. 47.

[9] KELLY, A Tecnologia nos Faz Melhores, p. 49.

[10] CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 98.

[11] CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 98.

[12] CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 98.

[13] CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 99.

[14] CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 105.

[15] BAUMAN, Comunidade, p. 17.

[16] REDFIELD, Robert. The Little Community e Peasant Society and Culture. Chicago: University of Chicago, 1971. p. 4 e ss. Apud BAUMAN, Comunidade, p. 17.

[17] BAUMAN, Comunidade, p. 17.

[18] BAUMAN, Comunidade, p. 18.

[19] BAUMAN, Comunidade, pp. 18/19.

[20] WELLMAN, Barry. Physical Place and Cyberplace: the rise of networked individualism. International Journal of Urban and Regional Researsh, 1 (edição especial sobre redes, classe e lugar). p. 1. Apud CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 106.

[21] CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 107.

[22] WELLMAN, Barry. The Global Village: Internet e community. The Arts & Science Review. Vol. 1, n. 1. Toronto: Toronto University, 2004. p. 29.

[23] CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 107.

[24] WELLMAN, The Global Village, p. 29.

[25] WELLMAN, Barry. An Eletronic Group is Virtually a Social Network. In KIESLER, Sara. Culture of The Internet. New Jersey: Laurence Earlbaum, 1997. p. 179.

[26] CASTELLS, A Galáxia da Internet, pp. 108/109.

[27] CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 109.

[28] CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 109.

[29] CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 111.

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