5 de jun. de 2009

A História do Direito no Brasil - Antônio Carlos Wolkmer

Introdução

O autor demonstra, já na introdução da obra, a intensão de afastar-se da construção da história do direito fundada na autoridade, continuidade, acumulação, previsibilidade e formalismo de nossa tradição teórica-empírica.
Intende, assim, questionar o conhecimento dogmático (colocando de lado sua concepção elitista), buscando uma visão sócio-político da história de caráter crítico-ideológica.
Há menção pelo Autor da pouca importância dada à disciplina da História do Direito nos cursos jurídicos desde sua formação, resultando em uma literatura, até hoje, formada principalmente de “estudos descritivos e pouco sistemáticos, marcados por um enfoque tradicional e algumas vezes erudito, mas sem uma contextualização crítica maior” (p. 05).
Nessa perspectiva, há intenção de se “reinventar brevemente a trajetória da historicidade jurídica nacional, quer apontando seus mitos, falácias e contradições, quer evidenciando seu perfil e sua natureza ideológica” (p. 07), lembrando-se que “a formação jurídica nacional foi sempre comprometida com as classes dominantes, em uma contraditória tradição legal que buscava conciliar práticas ‘burocráticas-patrimonialistas com a retórica do formalismo liberal e individualista’” (p. 07).
Enfim, ressalta o autor que não há intenção de apresentar uma obra com uma história completa do Direito no Brasil, “mas uma breve introdução histórico-crítica acerca de determinados momentos” (fl. 09), com a finalidade precípua de se compreender o entrelaçamento entre os processos histórico-sociais, considerando seus avanços e recuos, que determinam a realidade jurídica brasileira contemporânea.

Capítulo I – PARADIGMAS, HISTORIOGRAFIA CRÍTICA E DIREITO MODERNO
Nesse capítulo, o autor procurou analisar as relações entre a História e o Direito, contemplando questões como mudanças de paradigmas e marcos-teóricos, em um contexto de busca por uma “outra historicidade das idéias e das instituições de Direito” (fl. 08).

1.1 Questões paradigmáticas para repensar a história.
As mencionadas relações entre a História e o Direito têm grande valor para a correta percepção da nossa situação presente. Por isso, o Autor busca a conscientização do leitor das diferenças existentes entre a História oficial e a História subjacente.
A “nova” História busca “recuperar a experiência histórica das bases”, redefinindo suas fontes em busca de “outros tipos de evidências confiáveis”, pois “agora ‘tudo tem uma história’” (pp. 12/13).
É dessa forma que o autor, com base em José Honório Rodrigues, entende que deve ser um objetivo político do historiador “contribuir para capacitar o povo a fazer história” (p. 14). Portanto, temos que rever a nossa História, partindo dessa visão crítica dos acontecimentos.

1.2 Historiografia jurídica tradicional: natureza e função
Tradicionalmente, a História do Direito tem sido vinculada a um saber formalista, abstrato e erudito. Todavia, nos últimos vinte anos, vem ocorrendo uma renovação no interesse pela matéria, interesse esse “de natureza crítico-ideológica” (p. 15), de cunho renovador da cultura jurídica nacional.
O autor, corroborando posicionamento de A. M. Hespanha, diz que aquela História “oficial” possui dois objetivos muito claros, em defesa dos princípios e valores liberal-burgueses: a) desvalorizar preconceituosamente a ordem jurídica pré-burguesa; b) pregar a construção de uma sociedade liberta da arbitrariedade e historicidade anteriores.
A historiografia tradicional, então, “tornou-se um mecanismo de endeusamento da ordem jurídica, política e social do modo de produção capitalista”, “apresentado como uma situação natural” (p. 16). Nessa medida, sendo uma disciplina de justificação da ordem legal, ela foi perdendo significação. Surge daí a necessidade de uma nova abordagem, que tenha por características a problematização, a desmistificação e a transformação. Epistemologia

1.3 Novos marcos na historicidade do direito
A renovação acima mencionada, de acordo com o autor, deve ser gerada a partir da “dialética da produção e das relações sociais concretas” (p. 17). Ela (a renovação), na América Latina, é influenciada por cinco “eventos epistemológicos”, que passam a ser referenciados no texto.
1) A emergência de uma corrente progressista de cunho neomarxista, com a releitura da obra de Gramsci. Com o auge no movimento de 68, apresenta o discurso dos “novos sujeitos sociais e os novos conteúdos da revolução”.
2) A Escola de Frankfurt, segundo a qual haveria necessidade de se reconstruir a racionalidade em um contexto emancipador. A filosofia assumiria, então, uma instrumentalidade visando a tomada de consciência dos sujeitos e a ruptura de sua condição de opressão.
3) A Escola francesa dos “Annales”, que tinha como principais objetivos: a) ultrapassar o positivismo histórico; b) retirar barreiras para restabelecimento da “unidade real da vida”; c) procura de uma História social, “não só como ciência do passado”. A Escola visava a aderência a uma abordagem interdisciplinar que buscasse a transformação da realidade estudada.
4) Pensamento libertador latino-americano, através do qual se busca a afirmação da alteridade emancipadora, “mediante um Direito livre da injustiça e da coerção”.
5) Por último, o chamado “Direito Alternativo”, consubstanciado, na verdade, uma “hermenêutica jurídica alternativa”, que busca dentro do sistema existente encontrar falhas e lacunas que permitam recuperar “a dimensão transformadora do direito”.
Os elementos acima mencionados são contribuições para criação de “novos referenciais metodológicos” “no estudo histórico das idéias e das instituições no campo do Direito” (p. 23).
Objetiva-se, portanto, a revisão crítica de nossa história, principalmente na questão das “práticas de regulamentação e de controle social” (p. 24).

1.4 Pressupostos da modernidade jurídica burguesa: idéias e instituições.
A juridicidade criada no século da Revolução Burguesa e o seguinte teve sempre como alvo a justificação dos interesses daquela classe, armando-se uma teoria jurídica que sustentasse o paradigma liberal através de características e institutos muito típicos dessa visão ideológica.
O indivíduo é absolutizado, havendo uma priorização jurídica da igualdade formal, assentada numa abstração que não leva em consideração as desigualdades pré-existentes. Surgem, então, juristas que vêm colaborar com essas construções, em uma releitura do direito romano, adaptada aos interesses dos burgueses-proprietários.
O jusnaturalismo clássico contribui, então, com o moderno direito liberal na transposição das seguintes características: a) igualdade formal; b) normas gerais, abstratas e impessoais; e c) criação do Direito Público paralelo ao Direito privado.
Como ressalta o autor, citando Eliseu Figueira, “tais princípios de abstração, generalidade e impessoalidade têm no modelo liberal-individualista ‘um significado ideológico, o de ocultar a desigualdade real dos agentes econômicos, para desse modo se conseguir a aparência de uma igualdade formal, a igualdade perante a lei’” (p. 27).
Passa-se a discorrer sobre alguns institutos da juridicidade moderna, a começar pelo “direito de propriedade”, que “exclui do seu uso e gozo qualquer outro não-proprietário” (p. 28).
Outro instituto característico é o “contrato”, “símbolo máximo do poder da vontade individual” (p. 29) que esconde a desigualdade existente entre as pessoas, uma vez que pressupõe uma igualdade formal, somente existente entre os próprios burgueses. Citando Orlando Gomes, lembra-se que “a apregoada liberdade contratual” “tem sido uma ‘fonte das mais clamorosas injustiças’” (p. 29)
Para entender o Direito Moderno, afirma o autor, deve-se conhecer as “categorias nucleares” do “sujeito de direito” e do “direito subjetivo”. Aquele é o “ente moral”, livre e igual; enquanto esse é a faculdade moral que permite ao sujeito defender seus interesses materiais e morais.
Menciona-se, ainda, como características do Direito Moderno, “princípios fins”, como a segurança e a certeza jurídica, diferenciando-as. Igualmente, transita-se por cosmovisões filosóficas hegemônicas, quais sejam, o jusnaturalismo e o positivismo jurídico.
O Jusnaturalismo tem como fundamento a existência de uma ordem jurídica a priori, na crença de um preceito superior. Todavia, a defesa desse direito pretensamente eterno e universal buscava esconder, na verdade, os reais beneficiários de seus princípios, fundados no liberal-contratualismo e racionalismo do século XVIII.
Contudo, “a expressão máxima do racionalismo moderno” foi o positivismo que, ao contrário do jusnaturalismo, rejeitava qualquer ordem a priori, pois “toda a sua validade e imputação fundamentavam-se na própria existência de uma organização normativa e hierarquizada” (p. 33). É fruto daquela sociedade burguesa fundada no progresso industrial, técnico e científico, na pretensão de pacificar as relações entre o capital e o trabalho através de regras de controle.

CAPÍTULO II – O Direito na Época do Brasil Colonial

2.1 Primórdios da estrutura político-econômica brasileira
Nesse capítulo, o Autor, tendo já explanado sobre os traços do Direito Moderno ocidental, procura explorar a questão da forma de transposição daquele modelo jurídico ao Brasil colônia, bem como de que forma essa transposição tem influência dos interesses da Metrópole e da situação social existente na Colônia.

Vê-se, pelo texto, que a convivência entre um sistema patrimonialista e, ao mesmo tempo, de burocracia liberal-individualista, representava um paradoxo, explicado por elementos econômicos, sociais, ideológicos e políticos. Para melhor compreensão do tema é que se passa a discorrer, na seqüência da obra, quanto àqueles elementos.
Como é sabido, o modo de produção colonial era baseado na complementariedade em relação à metrópole e a constituição de monopólios, principalmente agrícolas, de exportação. Nos primeiros séculos após o descobrimento, portanto, a produção brasileira refletiu, tão-somente, os interesses da metrópole.
No que concerne à formação social, é de se dizer que se baseava em uma derivação do sistema feudal, com lastro no latifúndio e na mão-de-obra escrava. Portanto, “o sistema aglutinava certas práticas de base feudal com uma incipiente economia de exportação centrada na produção escravista” (p. 39).
Já quanto à estrutura política, a administração era realizada em um contraditório sistema de pulverização do poder entre os donatários, senhores de escravos e proprietários de terras e a tentativa de centralização pela Coroa, sempre distante dos interesses da população, gerando um “Estado” sempre defensor das elites sociais e com tradição de “intervencionismo estatal no âmbito das instituições sociais e na dinâmica do desenvolvimento econômico” (p. 41).
Esses aspectos econômicos e políticos são essenciais para encontrar as raízes da formação social e política brasileira, inclusive a jurídica. Isso porque a ideologia propagada pela contra-reforma encontrou sua maior defesa na Península Ibérica, cujo desprezo pelas práticas mercantis lucrativas e subserviência aos dogmas católicos vieram a dificultar o aparecimento de uma burguesia rica e o desenvolvimento cultural, econômico e científico baseado na racionalidade. “Em conseqüência, Portugal distanciava-se do ideário renascentista, ... no apego à tradição estabelecida e na propagação de crenças religiosas pautadas na renúncia, no servilismo e na disciplina” (p. 43).
Somente com a reconciliação de Portugal com a Europa e com as drásticas reformas implementadas pelo Marquês de Pompal é que se possibilitou um movimento renovador que ofereceu condições ao advento do liberalismo português. Esse fato vai ser determinante na história brasileira, porque esse liberalismo será transposto à colônia, encontrando um espectro econômico e social em princípio inconciliáveis.

2.2 A legislação colonizadora e o Direito Nativo
Há menção, na obra, da imensa primazia do Direito português como influência para a formação jurídica no Brasil, a despeito das práticas informais negras e índias.
A primeira fase colonial (1520-1549) caracterizou-se “por uma prática político-administrativa tipicamente feudal” (p. 47), sendo o direito vigente uma transferência completa da legislação portuguesa. Contudo, as características da Colônia fizeram necessárias algumas “Leis Extravagantes”, como a “Lei da Boa Razão”, que minimizava a autoridade do Direito Romano e visava beneficiar e favorecer a Metrópole, em um modelo que viria a ser repetido por toda história brasileira de “dissociação entre a elite governante e a imensa massa da população” (p. 49).
O modelo jurídico então existente, portanto, buscava garantir a defesa dos interesses da estrutura elitista de poder, fundado, inicialmente, no idealismo jusnaturalista e, posteriormente, na exegese positivista, mas sempre com um descaso “pelas práticas costumeiras de um Direito nativo e informal” (p. 49). “Desde o século XVII, a elite dominante e seus letrados servis buscaram justificar, sob o aspecto religioso, moral e jurídico, um projeto cristão-colonialista, colocando em relevo a legitimidade da escravidão e a fundamentação de normas que institucionalizassem o controle” (p. 55).
Para que esse modelo elitista e patrimonialista funcionasse, era necessária a sua institucionalização por meio de preparados atores profissionais e regulares instâncias processuais. É o que passamos a ver:

2.3 Os operadores jurídicos e a administração da justiça
A princípio, durante o período das capitanias hereditárias, eram os donatários os responsáveis pela administração da justiça, situação que veio a modificar-se com o advento dos governadores-gerais, evoluindo para criação de uma justiça colônia, que visava tornar mais fácil impor um sistema de jurisdição centralizadora, de interesse da Coroa.
Uma estrutura inicial teve que ser dilatada diante do crescimento das cidades, surgindo um sistema composta de juízes singulares e os chamados “Tribunais de Relação”, órgãos colegiados a quem se dirigiam os recursos de agravo e apelação, mas que também tinha uma competência originária determinada, enquanto a terceira instância era representada pela “Casa da Suplicação”, na Metrópole.
Foram criados Tribunais de Relação no Brasil, primeiramente na Bahia e posteriormente no Rio de Janeiro, cuja composição era formada, quase na totalidade, por portugueses, ou ainda por brasileiros formados na Metrópole. “Os magistrados revelavam lealdade e obediência, ... resultando em benefícios nas futuras promoções e recompensas” (p. 63). Em geral, a escolha de magistrados era feita com base em um recrutamento que garantisse um padrão mínimo, mas vinculado a apadrinhamentos. Esses juristas deveriam ser formados na Universidade de Coimbra e ter exercido a profissão por pelo menos dois anos.
Tais operadores do direito (geralmente de classe média), cujos padrões eram rigidamente formais, encontraram um sistema baseado em laços de parentesco, dinheiro e poder. Esses contatos pessoais favoreciam a corrupção e, como conseqüência, era natural que os magistrados que faziam fortuna e alcançavam poder social aspirassem permanecer na Colônia, mesmo com a possibilidade de retorno à Metrópole.
Assim, “no Brasil-Colônia, a administração da justiça atuou sempre como instrumento de dominação”, em “atitudes e relações não-profissionais de ‘dominação tradicional’ com práticas administrativas profissionais marcadas pela especialização, hierarquia e carreira burocrática” (p. 68).
Todavia, também houve a presença da justiça eclesiástica e, não obstante nunca ter ocorrido um Tribunal de Inquisição em solo brasileiro, casos mais graves eram julgados em Portugal. Nesse sistema de dominação “não havia lugar para os judeus, cristãos-novos, muçulmanos, negros, mulatos, ciganos, heterodoxos ou contestadores de qualquer” (p. 70).
Portanto, tanto na administração convencional da justiça quanto nos tribunais eclesiásticos, o padrão políticos-administrativo era caracterizado por um perfil de teor predominantemente excludente.

CAPÍTULO III – ESTADO, ELITES E CONSTRUÇÃO DO DIREITO NACIONAL
O texto busca refletir sobra a formação da cultura jurídica nacional e de que maneira o ideal liberal influenciou na criação das instituições e nos operadores do direito em nosso território. Vejamos:

3.1 O liberalismo pátrio: natureza e especificidade
São princípios do liberalismo a liberdade pessoal, o individualismo, a tolerância, dignidade e crença na vida. Outras características suas são: no plano econômico, a propriedade privada, economia de mercado, ausência ou minimização do controle estatal, a livre empresa e a iniciativa privada; no plano político-jurídico, consentimento individual, representação política, divisão dos poderes, descentralização administrativa, soberania popular, direitos e garantias individuais, supremação constitucional e estado de direito.
Como se verá, a adaptação do liberalismo iluminista europeu foi amplamente limitado por interesses locais, resultando em uma estrutura político-administrativa patrimonialista e conservadora, criado para servir de suporte aos interesses das oligarquias. Tal situação denunciava a “ambigüidade da junção de ‘formas liberais sobre estruturas de conteúdo oligárquico’”, com aparência de formas democráticas (p. 76).
No início dos movimentos pela independência, houve uma compatibilização de interesses da população com as elites locais. Estes visavam a eliminação dos vínculos coloniais e aqueles a busca da igualdade econômicas e sociais. Conseguido o intento libertário, as formas liberais de poder determinaram a manutenção do status quo ante, em uma formação pseudo-democrática de dominação. Assim, “o Estado brasileiro nasce ‘em virtude da vontade do próprio governo (da elite dominante)” (p 77), acabando por prevalecer um liberalismo conservador praticado por minorias hegemônicas e antidemocráticas. A retórica conservadora sobre o liberalismo fundava-se numa concepção de democracia que negava às massas incultas a capacidade de participação (p. 78).

3.2 O liberalismo e a cultura jurídica no século XIX
O liberalismo, após o processo de desvinculação da Metrópole, representava a modernização do Estado. No início, houve um embate entre liberais radicais e conservadores, com a vitória desses, o que resultou em um sistema dissociado de práticas democráticas, conciliação com a estrutura patrimonialista colonial, introduzindo “uma cultura jurídico-institucional marcadamente formalista, retórica e ornamental” (p. 79).
Após a independência, dois fatores foram fundamentais para edificação de uma cultura jurídica nacional: a criação dos cursos de direito (Recife e São Paulo) e a criação de uma Constituição e leis próprias brasileiras.
Quanto às faculdades de direito, sua finalidade primeira era atender as necessidades burocráticas do Estado. A faculdade de Recife se constituiu na vanguarda científica do Brasil, enquanto a Academia de São Paulo aderiu ao periodismo e à militância política, sendo um centro privilegiado de formação de intelectuais destinados à cooptação pela burocracia estatal.
O segundo grande fator para emancipação da cultura jurídica brasileira foi a elaboração própria do sistema legal, a partir de uma constituição. Diga-se que a fachada liberal desse sistema, apoiado pela monarquia, ocultava o escravismo e excluía a maior parte da população do país. Destacam-se, ainda, o Código Criminal de 1830 e Código de Processo Criminal de 1832, que extinguiu a estrutura colonial portuguesa, que era apoiada sobre os ouvidores e juízes de forma, na tentativa de criação de uma burocracia profissionalizada de administração da Justiça. Reforçava-se, dessa forma, a dominação patrimonialista, com exercício da Justiça apoiada no “mais ‘absoluto policialismo judiciário’” (p. 88).
É de se ressaltar, ainda, o Código Comercial, de 1850 e Código Civil que, não obstante projetos existentes desde de 1860, somente foi aprovado em 1916, tendo-se em conta que “para a burguesia, a ordenação do comércio e da produção da riqueza era mais imperiosa do que a proteção e a garantia dos direitos” civis (p. 88). Isso não impediu, contudo, que o projeto de Clóvis Beviláqua tivesse uma “mentalidade patriarcal, individualista e machista de uma sociedade agrária e preconceituosa” (p. 89) e que traduzisse “intentos de uma classe média consciente e receptiva aos ideais liberais mas igualmente comprometida com o poder oligárquico familiar” (p. 90).

3.3 Magistrados e Judiciário no tempo do Império
Esses profissionais, formados em Coimbra, tinham um “procedimento pautado na superioridade e na prepotência magisterial”, “preparados e treinados para servir aos interesses da administração colonial” (p. 91). Como ressalta o Autor, os juízes foram pilares de sustentação na criação de uma organização política nacional e um dos principais agentes de articulação da unidade nacional. Estavam, dessa forma, identificados com o poder político, bem como eram controlados através de remoções, promoções, suspensões e aposentadorias do governo central, em uma transplantação dos vícios crônicos da Metrópole.
Em 1871 foi realizada a maior reforma do sistema jurídico no império, com o objetivo principal de separar as funções policiais e judiciárias misturadas em 1841 (e aumentando as restrições ao exercício de cargos políticos), em uma “tênue estratégia legal de transição do escravismo para a produção livre” (p. 95). As competências dos Juízes de Paz foram alargadas e, juntamente com os Tribunais do Júri, constituía um ataque frontal à elite judicial, no dizer de FLORY.
Enquanto os magistrados foram formados, em sua maioria, em Coimbra, os advogados tiveram sua educação no Brasil, sendo que a relação de cada um com o Poder Público era distinta. Todavia, “foi no cenário instituído por uma cultura marcada pelo individualismo político e pelo formalismo legalista que se projetou a singularidade de uma magistratura incumbida de edificar os quadros político-burocráticos do Império” (p. 98).

3.4 O perfil ideológico dos atores jurídicos: o bacharelismo liberal
De acordo com o Autor, o bacharel dos séculos XIX e XX não exerceram papel muito distinto do magistrado português no período colonial. O bacharelismo, na verdade, favorecia uma formação liberal-conservadora. Foi, contudo, o periodismo na universidade, principalmente no largo do São Francisco, que determinou a forma de atuação e a formação intelectual do acadêmico das leis. Assim, este adere ao conhecimento ornamental e ao cultivo da erudição lingüística, buscando sempre a primazia da segurança, ordem e liberdades individuais, criando, determinando, como já dito, um profissional essencialmente moderado e conservador. Foi o liberalismo, dessa forma, a grande bandeira ideológica defendida e ensinada nas academias jurídicas, sendo que o bacharel assimilou e viveu projeções liberais dissociadas de práticas democráticas. O Liberalismo, nesse contexto conservador, não estava necessariamente acompanhado de democracia, nem sequer a despatrimonialização do Estado Brasileiro.
A cultura jurídica brasileira foi conduzida, então, “a um estranho e conveniente ecletismo: à tradição de um patrimonialismo sócio-político autoritário (de inspiração lusitana) com uma cultura jurídica liberal-burguesa (de matiz francês, inglês e norte-americano)” (p. 102).
Rui Barbosa foi quem melhor sintetizou essa cultura jurídica tradicional, individualizante e formalista, cujo imaginário social era distante do Direito vivo e comunitário bem como da população, em uma atividade advocatícia descomprometida com a vida cotidiana.
De acordo com o Autor, contudo, “nada impede de se redefinir, contemporaneamente, o papel do advogado enquanto profissional e cidadão” (p. 104).

CAPÍTULO IV – HORIZONTES IDEOLÓGICOS DA CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA
O processo de colonização portuguesa no Brasil reproduziu uma juridicidade patrimonialista e conservadora, que gerou, posteriormente uma contraditória conciliação com práticas liberais e formalistas, em um contexto antidemocrático e elitista.

4.1 Trajetória sócio-política do Direito Público
Os principais elementos impulsionadores de uma juridicidade pública no Brasil foram as revoluções francesa e norte-americana, a vinda da Família Real bem como um exacerbado nacionalismo.
Diante de uma situação de exploração de povos periféricos, como o Brasil, propiciou-se a formação de um Direito Público que visava a limitação do poder absolutista, no que se chamou de Constitucionalismo, que é uma “concepção técnico-formal do liberalismo político na esfera do Direito” (p. 106).
Todavia, após a independência, resultado de uma união entre o povo e a elite, foi outorgada uma Constituição Monárquica que representou apenas os intentos do absolutismo real e os interesses dos grandes proprietários. Assim, os direitos políticos eram cometidos à grupos hegemônicos, em uma estrutura social pouco propícia a novas idéias, revolucionárias ou liberais.
Ocorre que a perda de poder da elite agrária, a crise militar e o estremecimento das relações entre Igreja e Estado proporcionou o surgimento de movimentos antimonarquistas, em um ambiente liberal-conservador que, apesar de alterar a correlação de forças, não teve a capacidade de alterar a estrutura dominante.
Durante o período Imperial, o Brasil possuía sua base econômica na exploração da cana de açúcar, principalmente na Bahia e em Pernambuco, situação que se modificou com o surgimento de um novo produto exportador, o café, que moveu o eixo econômico para Minas Gerais e São Paulo, permitindo o aparecimento de uma oligarquia cafeeira.
Assim é que aparece a primeira república, cujo texto constitucional de 1891 “expressava valores assentados na filosofia política republicano-positivista” sendo que “a retórica do legalismo federalista ... beneficiava somente seguimentos oligárquicos regionais” e, diante da nova estrutura social, com o aparecimento de uma burguesia urbana, “o liberalismo político antidemocrático não só beneficiava os intentos dos grupos oligárquicos hegemônicos, como, sobretudo, asseguraria que a facção dominante da burguesia agrária detivesse poder exclusivo até fins da década de 20” (pp. 109/110).
Como se vê, tanto a constituição monárquica de 1824 quanto a republicana de 1891 deixaram de levar em consideração os interesses das grandes massas rurais e urbanas, consubstanciando-se em instrumentos de controle político-econômico baseados em procedimentos burocráticos-patrimonialistas, que permitiam a corrupção, o favorecimento e o nepotismo.
Foi com o colapso da economia agroexportadora e a falência das instituições da República Velha que se digladiaram pelo poder forças sociais antagônicas que não conseguiram sobrepor-se umas às outras, resultando na projeção do próprio Estado para ocupar o vazio, gerando uma ainda mais dissociada produção jurídica em relação aos interesses populares.
Já a Constituição de 1934, tida por alguns como avanço pela previsão de direitos sociais (sob influência das constituições do México e de Weimer), na verdade igualmente expressava mais o interesse de regulamentação das elites agrárias locais, sendo utilizada como instrumento para aparar os choques entre as classes.
Na seqüência, a Carta de 1937, inspirada no Facismo europeu, instituiu o autoritarismo corporativista e a ditadura do executivo, além de criar obstáculos à garantia dos direitos do cidadão. A Constituição de 1947, não obstante restabeler a representatividade formal, tratou-se “de um arranjo burguês nacionalista entre forças conservadoras e grupos liberais reformistas” (p. 114).
Em 67 e 69, houve uma reprodução da aliança conservadora da burguesia agrária/industrial, sendo as constituições daqueles anos claramente antidemocráticas, tendo por características a centralização e a arbitrariedade.
Quanto à Constituição de 1988, há de se reconhecer avanços, podendo, contudo, tanto servir “‘à legitimação da vontade das elites e à preservação do status quo’, quanto ‘poderá representar um instrumento de efetiva modernização da sociedade”’ (p. 114). Ressalte-se que ela vem sendo profundamente atacada, com restrições à área social.
Como se vê, o nosso Constitucionalismo jamais refletiu as aspirações e necessidades da sociedade, servindo de legitimação das elites hegemônicas e seus privilégios, sendo “marcado ideologicamente por uma doutrina de nítido perfil liberal-conservador. ... [Assim,] as instâncias do Direito Público jamais foram resultantes de uma sociedade democrática e de uma cidadania participativa ... [o que] fez com que inexistisse ... a consolidação de um Constitucionalismo de base popular-burguesa ... [configurando uma] ‘conciliação-compromisso’ entre o patrimonialismo autoritário modernizante e o liberalismo burguês conservador” (p. 116).

4.2 As instituições privadas e a tradição jurídica individualista
O regime econômico brasileiro baseado na escravatura tinha grande receio na instituição de direitos civis, que poderiam minar as bases produtivas. Assim, enquanto o país criava a constituição e legislações penal, processual e mercantil, a regulamentação civil permanece vinculada à previsões portuguesas. A legislação comercial exorbitou, cobrindo atos da vida civil, visando suprir com certa segurança algumas lacunas.
Dessa forma, somente com a abolição do sistema escravocrata é que se concretizou a extinção das ordenações, ocorrendo, contudo, que o projeto de normatização Civil de Clóvis Beviláqua, elaborado em 1899, somente foi promulgado em 1916. Esse Código oferecia mais ênfase ao patrimônio privado do que às pessoas, em um perfil tipicamente conservador e pouco inovador. É certo, portanto, que “a ordem jurídica positiva republicana, por demais individualista, ritualizada e dogmática em suas diretrizes ordenadoras, quase nunca traduziu as profundas aspirações e intentos do todo social. ... Temos assim toda uma legislação positivo-dogmática, marcada pela tradição individualista de proteção e de conservação do Direito de Propriedade” (pp. 123/124).

4.3 Historicidade e natureza do pensamento jusfilosófico nacional
Em princípio, durante a colonização, não se pode falar em uma “teoria jurídica”, uma vez que a concepção de lei, direito e justiça estava vinculada unicamente às diretrizes da Igreja. Os primeiros trabalhos de cunho jusfilosófico, ao contrário do que se poderia imaginar, preocupavam-se em não desagradar a metrópole. Resulta disso foi um “ecletismo”, que foi a principal sistematização do pensamento brasileiro no século XIX. Ecletismo é “uma reunião de teses conciliáveis tomadas de diferentes sistemas de Filosofia, e que são justapostas, deixando de lado, pura e simplesmente, as partes não-conciliáveis destes sistemas”. Esse “ecletismo”, no dizer de Roberto Gomes, representa o “mito brasileiro da imparcialidade”.
No final do século XIX, inicia-se a influência do Positivismo, cujo apelo cientificista apresentava-se como discurso hegemônico e uniforme, impondo uma série de implicações negativas à cultura jurídica brasileira, como vinculação à mentalidade legal dogmática e a manutenção da ordem vigente.
O autor passa, então, a comentar sobre expoentes de diversas “Escolas” jurídicas, mencionando seus principais atores e suas características. Refere-se ao surgimento, durante a crise sócio-econômica que sacudiu a Velha República, de novas teses como o Culturalismo, a Conciliação, o Nacionalismo de esquerda e o Desenvolvimentismo.
A corrente Culturalista fundou o Instituto Brasileiro de Filosofia. Como exemplo dessa corrente temos a obra “Fundamentos do Direito”, de Miguel Reale, apresentando pela primeira vez a teoria tridimensional do direito, que buscava superar as limitações das epistemologias idealistas e empírico-formais. Tal pensamento, a princípio inovador, acabou não tendo alcance transformador, por continuar a ser um saber ligado à normatividade.
A verdade é que nossa cultura jurídica é marcada por uma visão formalista do direito, reproduzindo, em regra, um saber jurídico retórico, apenas como um instrumento de poder. Dessa forma, essa cultura não têm ligação com as reais reivindicações e necessidades da sociedade periférica brasileira.
Deve-se, assim, “articular e operacionalizar um projeto de cunho crítico-interdisciplinar no Direito, ... implementadores de avanços e soluções para a presente historicidade” (p. 140). “As novas tendências paradigmáticas que compõe o que se convencionou chamar de ‘pensamento crítico’ ou de ‘crítica jurídica’ rompem e desmitificam as dimensões político-ideológicas que sustentam a racionalidade do dogmatismo juspositivista contemporâneo” (p. 141).
De acordo com o autor deve-se, portanto, abrir uma ampla frente de “crítica jurídica”, denunciando as intenções “político-ideológicas do normativismo estatal, quando apontam as falácias e as abstrações técnico-formalistas dos discursos legais, ... dessacralizando as ‘crenças teóricas dos juristas em torno da problemática da verdade e da objetividade’” (p. 141).

5 comentários:

Ronning disse...

Muito interessante e instrutiva sua análise sobre o Prof. Wolker. Parabéns

Rodrigo Neves disse...

Concordo, Reginaldo. Prof. Wolkmer realmente e' admiravel.
Um abraco.

Anônimo disse...

Oi Rodrigo,
Gostaria muito de saber sua apreciação pessoal sobre o primeiro capitulo.
Abraço Renata.

Anônimo disse...

Olá Rodrigo, boa tarde!
Gostaria muito de saber sua análise sobre a Teoria Pura do direito - Hans Kelsen, com enfase no capitulo V.

Grande abraço.

Carolina

Ocelo disse...

Gostaria de saber se alguém tem o livro de Arno Wehling: Justiça e direito no Brasil Colonial em PDF ou e-book. Gostaria de comprar. Poderiam me ajudar? Obrigado. José

Total de visualizações de página

Pesquisar este blog. Resumo de livros, democracia, política, TIC, Relações Internacionais etc.