19 de fev. de 2007

Modernidade Líquida - Cap.5

5 Comunidade

Os elementos que unem os membros de uma coletividade estão cada vez menos fortes. Muitas pessoas buscam, portanto, resgatar um sentimento já perdido de “comunidade”, que costuma ser negada pelos liberais. Contudo, se uma pretensa comunidade tem que apelar aos próprios membros para sua manutenção, significa que ela é mais um projeto que uma realidade, pois só passa a existir após uma decisão individual e, dessa maneira, pode ser considerada uma comunidade postulada. O processo indutor desse fenômeno é a falta de segurança, e o encontro de um porto seguro nas turbulentas águas das constantes, confusas e imprevistas mudanças é uma das promessas do comunitarismo. Porém, esse mundo torna o outro hostil e irrelevante, e falar em uma “comunidade includente” seria uma contradição em termos. Por outro lado, como disse Hobsbawm, exatamente em um passado quando a comunidade entrou em colapso inventou-se a identidade. O Estado-nação teve sucesso justamente pela supressão das comunidades, buscando criar cultura, língua e história unificadas, em detrimento de tradições comunitárias, o que foi possível pela imposição de língua oficial, currículos escolares e sistema legal unificado. Passamos a ter uma noção de “terra natal”, uma percepção que pode ser dividida como nacionalismo e patriotismo, esse último tendo um sentido pretensamente mais positivo. Porém, tal noção pode levar a uma duas estratégias de relacionamento com o “outro”: no patriotismo, a abordagem antropofágica, o que significa “devorar” a distintividade do estrangeiro; e, no caso do nacionalismo, utiliza-se a estratégia antropoêmica, que resulta em metaforicamente “vomitar” os que não estão “aptos a ser nós”, isolando-os nos guetos e nos muros das proibições culturais, ou ainda por meio das deportações e limpezas étnicas. Nesse processo, o método distintivo entre nós e eles é apenas a configuração de uma diferença, geralmente derivativa e menor, que acaba sobrepondo-se às semelhanças. Em outra linha, e em contraste àquele patriotismo e nacionalismo, evidencia-se que a unidade alcançada é muito mais promissora, por ser constituída pelo confronto, debate, negociação e compromisso entre diversos valores e preferências de auto-identificação, sendo a única variante de unidade compatível com a modernidade líquida. Do contrário, o natural impulso de retirar-se da arriscada complexidade para o abrigo da uniformidade, um verdadeiro sonho de pureza, acaba prevalecendo. Esse impulso afasta os perigos próximos ao corpo ameaçado, buscando tornar o “de fora” parecido com o “de dentro” e refazer o “lá fora” à semelhança do “aqui dentro”, criando uma sede por segurança que não pode ser saciada, pois deixa intactas as verdadeiras fontes da incerteza e da falta de garantias. Assim, entre liberdade e segurança, o comunitarismo aposta na última, desconhecendo que a liberdade e a segurança podem e devem crescer conjuntamente. Faz-se essa escolha pois as amizades, o trabalho e a própria família são fluidos demais para serem referências confiáveis. Nesse contexto, tendo em perspectiva que é a sociedade quem nos permite experimentar satisfações que não sejam puramente efêmeras e que o comunitarismo enfraquece essa construção, o corpo passa a ser o único referencial de continuidade a “longo prazo”, pois dificilmente algo ultrapassará os limites da mortalidade corporal. O próprio Estado renuncia o papel de responsabilidade pela certeza, segurança e garantia, em uma mudança de grande importância para os rumos da humanidade. O casamento entre Estado e Nação claramente caminha para o fim e para a constituição de um novo arranjo de “viver juntos”, ainda que haja pouca esperança no resgate daqueles serviços de garantias, em razão da corrosão da política diante dos poderes extraterritoriais. Contudo, diante da falta de resistência soberana dos Estados àquela interferência indevida, a construção de uma ordem supranacional não passa de uma especulação que hoje é até mesmo improvável. Isso traz preocupação em relação à disseminação do que Bourdieu chamou de “política da precarização”. Essa instabilidade poderá ser compensada pelo surgimento de “comunidades explosivas”, que precisam de ameaças comuns e inimigos a serem perseguidos e mutilados, para que cada indivíduo seja cúmplice em uma eventual derrota. A mistura dessa sociabilidade explosiva com aspirações territoriais e estratégias “fágicas” e “êmicas” resulta em mutações monstruosas, apresentando-se totalmente descontextualizadas da modernidade fluida, com a qual não compartilha código. Em outro fenômeno decorrente dessa instabilidade e precariedade é a constituição das chamadas “cloakroom communities”. Elas se caracterizam por necessitarem de um espetáculo que substitua a “causa comum” em torno do qual os indivíduos se reúnem por certo momento, colocando temporariamente outros interesses divergentes de lado. Contudo, têm o efeito colateral de impedir a condensação de comunidades genuínas e duradouras, dessa maneira reforçando e perpetuando a solidão que caracteriza o novo tempo.

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