18 de jun. de 2013

Política 2.0




Rodrigo Fernandes das Neves[1]


Tem sido comum falar-se, neste início de século, sobre o fim e o começo de muitas coisas. Alguns dizem ter-se chegado ao fim da história, enquanto outros alardeiam a superação da própria modernidade. Há os que sustentam que se inicia uma nova fase da modernidade, que acaba ganhando muitos e diversos nomes: modernidade líquida, modernidade leve, modernidade reflexiva, modernidade fluida, modernidade tardia; há outros, ainda, que acreditam estar-se abrindo as portas de um verdadeiro começo de nova era: pós-fordista, informacional, enfim, pós-moderna.
As substanciais mudanças na estrutura social sentidas neste início de século, todavia, são percebidas em diversos processos, de natureza social, econômica e cultural. No contexto das recentes manifestações populares no Brasil, parece oportuno tratar de questões ainda mais profundas que “o combate a tudo”, abordando-se, por exemplo, o fenômeno que os sociólogos chamam de “individualização” – não aquela do liberalismo, mas uma nova maneira de criação da “identidade” de cada pessoa – o que, provavelmente, é o que está na profundeza dos fenômenos. Isso decorre da compreensão de que, antes, a localidade e a classe a qual cada um pertencia determinava suas características biográficas. A individualização fragmentada desse novo século, por sua vez, significa que hoje se escolhe, entre uma infinidade de opções, como construir a própria história. Não há mais, portanto, padrões seguros e permanentes de vivência.
Nessa perspectiva, a sensação de impotência com que os indivíduos têm que lidar, ainda que, eventualmente, o façam em um contexto de “liberdade”, induz à tentativa de uma união (identificação em um grupo) em torno de referências culturais radicais tais como a raça, a origem, a religião ou a sexualidade. Entretanto, a marcha ombro a ombro já não tem função ou sentido em decorrência da enorme fragmentação social, isto significando que as aflições já não são aditivas, não podendo ser condensadas em interesses compartilhados[2]. Como explicar, então, as turbas país a fora?
Na verdade, primeiramente deve-se destacar que a aparente apatia impingida aos brasileiros na última década decorre justamente do fato de que, em situações estáveis, o indivíduo se torna no pior inimigo do cidadão, porque enquanto o cidadão deve buscar a causa e o bem comum de uma sociedade justa, vê-se que tal objetivo é incompatível com um mundo onde os benefícios do trabalho conjunto são inferiores ao individual, situação esta que leva à corrosão e desintegração da cidadania. Esse processo leva a que, dentre outras coisas, o espaço público seja preenchido por preocupações dos próprios indivíduos, transformando o interesse público apenas na curiosidade sobre as vidas de pessoas públicas, o que as revistas e programas populares demonstram muito bem[3].
A esses fatores constelam-se, como já dito, a crise do patriarcalismo, os novos arranjos familiares, a liberação sexual e os empregos cada vez menos estáveis, o que reforça uma percepção generalizada de insegurança. Já não há, nesse contexto, uma “comunidade” na qual se pode alcançar conforto e segurança. Como cada um agora é responsável pela sua própria biografia, e o fracasso não pode ser repassado a ninguém, os temas de “interesse comum” ficam sempre relegados a um segundo plano, porque serão apenas obstáculos ao sucesso pessoal.
Nesse sentido, de tempos em tempos, como soluços sociais, surge algum tema simbólico que as pessoas utilizam como materialização dessa insegurança (que possui natureza difusa e, portanto, invisível): um crime bárbaro, atos de corrupção, um ataque terrorista, aumento da tarifa de transporte ou outro tema da moda – todos perfeitamente explorados exaustivamente pela mídia. 
As pessoas passam, então, a se agrupar em torno desses eventos simbólicos – que na verdade representam interesses efêmeros – buscando ineficazmente o retorno a uma luta coletiva por soluções e por segurança. Ao contrário do que se possa perceber em uma análise ligeira, essa busca por articulação social, mais do que um fenômeno passageiro, tem ligação a uma inconsciente ânsia por se alcançar a razão da própria existência e um lugar no mundo, hoje sem referências[4].
A partir da percepção de impotência diante dos poderes globais, os indivíduos reduzem os problemas a certa quantidade de variáveis com as quais podem lidar, mas que são insuficientes para solucionar verdadeiramente os problemas. Nesse sentido, o termo alemão Unsicherheit, mencionado por Zygmunt Bauman, traz um significado complexo para a ideia que, em português, pode ser descrita, conjuntamente, pelas palavras “incerteza”, “insegurança” e “falta de garantia”[5]. Assim, os temas simbólicos apresentados pela mídia e patrocinados por pessoas sem referências de vida acabam servindo como corporificação de todos esses sentimentos de impotência[6].
Neste ponto entram os fatos: pressão para endurecimento de leis, passeatas para punição exemplar de criminosos, revisão de parâmetros de segurança, discriminação de grupos, redução da corrupção etc. Exorcizam-se, assim, os medos de cada um, estabelecendo-se uma válvula de escape das ansiedades acumuladas. Dessa forma, não há a percepção de que os problemas são muito mais “radicais” do que esses símbolos socialmente construídos fazem crer, no sentido de que a origem dos problemas está nas raízes da atual forma de organização humana, cujas experiências já estão quase totalmente privatizadas e comercializadas como commodities[7].
Não há uma reflexão suficientemente profunda para compreender as engrenagens ocultas do Sistema. Rituais periódicos e midiáticos de exposição dos medos são superficiais e, ainda que tenham sucesso em seus objetivos imediatos, logo os laços entre os indivíduos serão desfeitos e não se alcançará resultados efetivos para diminuir a sensação geral de insegurança. Isso porque “a arte de reinventar os problemas pessoais sob a forma de questões de ordem pública tende a se definir de modo que torna excessivamente difícil ‘agrupá-los’ e condensá-los numa força política”[8]. O único caminho possível para se alcançar as modificações necessárias e fundamentais, alerta Zygmunt Bauman, é o resgate da verdadeira Política (com P maiúsculo, como diz o autor), uma busca intensa pelo reavivamento da ágora, aquele lugar em que as questões públicas se encontram e interagem com as questões privadas[9]. Deve-se, portanto, exercitar a capacidade adormecida de organização em torno de interesses de longo prazo, o que passa pelo resgate da cidadania, termo tão desgastado quanto necessário[10].
Para isso, o espaço público deve ser repovoado de questões públicas, no que resta a responsabilidade de se criar firmes e permanentes pontes de ligação entre os indivíduos e a sociedade, baseadas na solidariedade. Um objetivo plausível é a institucionalização de novos espaços onde as idéias se formem como “valores compartilhados” para construção de uma “sociedade justa”, e que não seja habitado somente por especialistas, mas também e principalmente por cidadãos comuns.
Em síntese, a liberdade individual de fato e a democracia como sistema sólido só podem ocorrer como resultado de um trabalho coletivo[11]
Diante desses posicionamentos, parece correto afirmar que, enquanto não se enfrentar as verdadeiras origens das inseguranças, incertezas e falta de garantias, de maneira a viabilizar a autonomia e liberdade positiva das pessoas, as reações coletivas permanecerão a ser o que são, meros soluços ineficientes, insuficientes para guiar as sociedades para um mundo melhor e mais solidário.
Por outro lado, é de se perceber que, apesar das profundas modificações das relações humanas das últimas décadas, os sistemas políticos atuais ainda são baseados em formas organizacionais e em estratégias da era industrial e, portanto, vêm se tornando politicamente obsoletos. Esta, aliás, é uma das principais fontes da crise da democracia na Era da Informação[12]. Dessa forma, a perda de legitimidade dos sistemas políticos ocorre principalmente porque as democracias ocidentais são caracterizadas pelo fato de que as elites políticas não agem mais como emanações do corpo eleitoral, ou seja, se dissociaram de suas bases de tal forma que não reconhecem e não são reconhecidos pelos cidadãos. “Para elas [as elites políticas], o povo são sempre os outros. Em nome de sua competência, elas acreditam saber guiá-lo para longe dos ‘erros fatais das reivindicações impossíveis’”[13]. Esse distanciamento entre o corpo político e os cidadãos termina por representar, na rotina dos povos, uma descrença profunda nas instituições e nos sistemas democráticos.
Assim, o que se vê, de forma generalizada, é a descrença nos parlamentos e nas pessoas que deveriam representar os interesses do povo, situação da qual decorre a lamentável falta de estímulo à participação política. A mídia apresenta uma sucessão vertiginosa de escândalos que anestesia as pessoas, em um círculo que gera ainda mais alienação e menos controle social sobre as atividades políticas.
Não há dúvidas, portanto, que somente se a representação política e os responsáveis pela tomada de decisão tiverem condições de estabelecer uma relação com essas novas fontes de contribuição de cidadãos interessados em política é que será possível a reconstrução de um novo modelo de sociedade civil, possibilitando a popularização da democracia[14].
Essa paradoxal situação se agrava em razão de que as formas subpolíticas  de mobilização, voltados para temas específicos e política não-partidária, vêm ganhando legitimidade e vêm questionando a política formal pois, ao atingirem o objetivo de introduzir novos processos e questões políticas, agravam a crise da democracia liberal[15].
Contudo, ainda não se conseguiu democratizar o mais importante: a própria democracia. Assim, os sistemas políticos atuais seguem baseados na democracia representativa e em partidos políticos, que são sempre desejáveis ante qualquer tipo de autocracia, mas que ainda estão longe de representar o conteúdo ideal da palavra “democracia”: o governo do povo, da cidadania[16].
Em síntese, considerando a necessidade de “radicalizar” a democracia, podemos dizer que:
1 – Neste início de século as sociedades vivem um processo de transição fundamental, que resulta em novas estruturas e dinâmicas cultural, social e econômica que se baseiam na produção e detenção de conhecimento.
2 – A posição dos indivíduos em relação à informação e ao conhecimento determina suas oportunidades de vida. A cidadania, que na primeira modernidade referia-se a uma relação com o Estado-nação, na pós-modernidade está ligada ao direito de acesso às estruturas de informação (educação).
3 – O fenômeno da individualização das biografias, que se constitui no processo pelo qual as pessoas decidem o seu papel social e sua biografia desgarrados de estruturas rígidas, resulta na fragmentação social, no generalizado ceticismo em relação “causas comuns” e, portanto, no enfraquecimento da cidadania. Assim, o indivíduo se apresenta como o pior inimigo do cidadão, porque enquanto o cidadão deve buscar o bem comum, vê-se que tal objetivo é incompatível com um mundo onde os benefícios do trabalho coletivo são inferiores aos ganhos individuais.
4 – Há uma contínua formação de comunidades estabelecidas por grupos de interesse que se organizam em torno de identidades radicais, a exemplo da origem étnica, da religião, do gênero, da sexualidade, dentre outras. Isso exige que o Estado se abra a um discurso dialético inclusivo, para que a fragmentação social não resulte em uma perigosa ruptura do diálogo.
5 – A individualização, a fragmentação social e a crise do Estado-nação são acompanhadas por uma generalizada descrença no sistema político tradicional como mediador fiável dos interesses comuns. Isso resulta em um contexto que faz surgir propostas teóricas de novos sistemas democráticos. Tal circunstância pode representar um grande perigo à própria democracia se houver flexibilização de suas regras fundamentais. Por essa razão, as propostas de revitalização da participação dos cidadãos nas questões públicas devem ser amplamente debatidas pelas sociedades, com o objetivo de se expandir o espaço público e criar instituições políticas adequadas ao contexto pós-moderno de forma segura, tomando-se as precauções necessárias para não se colocar em risco os avanços democráticos já alcançados.
6 – Há uma evidente dissociação entre o corpo representativo político e o corpo social, resultando na descrença nos sistemas democráticos, na falta de estímulo à política e na geração de incertezas de liberdades já fragilizadas. Assim, é necessário criar novos espaços de interação e deliberação política que complementem a democracia representativa.
Em síntese final, pode ser dito, sem qualquer dúvida, que os ganhos de longo prazo serão sempre frutos de um engajamento contínuo e profundo do indivíduo com as questões públicas. 
Deve-se, assim, retomar o interesse e o compromisso da população com a Política e não, como alguns parecem crer, em descartá-la ou enfraquecê-la.




[1] Procurador-Geral do Estado do Acre. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.
[2]BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida, 2001, p.44.
[3]Idem, p.46.
[4]BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999b, p.46.
[5]Idem, p.13.
[6]Idem, p.46-47.
[7]RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: transição de mercados convencionais para Networks e o nascimento de uma nova economia. São Paulo: Pearson Education, 2001.
[8]BAUMAN, Zygmunt. Em Busca da Política, 1999b, p.15.
[9]Idem, p.49.
[10]Idem, p.45.
[11]Idem, p.15.
[12]CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade, 2000, p. 368.
[13]ROBERT, Anne-CécileOnde está o povo? Le Monde Diplomatic. Disponível em: .
[14]Idem, p.411.
[15]Idem, p.412.
[16]HERNANDO, Diego; GONZÁLEZ, David. Profundización Democrática en la Era Internet. Disponível em: . Acesso em 6 set. 2007.

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