24 de jan. de 2007

Giddens - A Vida em uma Sociedade Pós-Tradicional

A Vida em uma Sociedade Pós-Tradicional (Anthony Giddens) - Modernidade Reflexiva.

Um sentimento de transformação e início de uma nova era já foi identificado com a ocorrência do fim do século. Isso pode justificar algumas interpretações contemporâneas de nossa realidade, mas não explica tudo. De fato, vivemos em um período de evidente transformação. No aspecto econômico, por exemplo, a produção mundial aumentou enormemente e o comércio mundial cresceu ainda mais, com destaque para o comércio invisível (serviços e finanças). A modernidade tornou-se experimental e estamos presos a uma grande experiência fora de nosso controle, em uma aventura perigosa que todos somos obrigados a participar. Vivemos em uma era pós-tradicional. Tradição poderia ser conceituada como a cola que une ordens sociais pré-modernas, uma ligação à memória coletiva mantida por guardiães e que envolve ritual, ligado ao que se pode dizer como verdade formular. Difere-se do costume porque tem uma força de união que combina conteúdo moral e tradicional. Ela é mais importante quando não é compreendida como tal. A verdade formular, por sua vez, é a atribuição de uma eficácia causal ao ritual, sendo aplicada ao conhecimento e não ao conteúdo proposicional dos enunciados. Em uma sociedade sem tradições a vida vem acompanhada da exigência de uma série de decisões. Nesse contexto, não temos outra escolha senão decidir como ser e como agir. Todas as áreas da atividade social são governadas por decisões, geralmente baseadas em sistemas especialistas. Essas decisões sofrem, por ser escolha de alguém, um reflexo das próprias relações de poder preexistentes. Atos interpretados como renascimento da tradição, como os movimentos ocidentais de filiação ao hinduísmo, budismo ou paganismo pré-cristão, são, na verdade um processo de decisão de adoção da tradição como um estilo de vida e não uma tentativa de reintroduzir a natureza como era anteriormente. Por essas razões, a tradição é uma forma de identidade, pessoal e coletiva, que pressupõe um significado e um processo constante de recapitulação e reinterpretação. Portanto, as ameaças às tradições são muitas vezes percebidas como ameaças à própria identidade do eu. A sociedade pós-tradicional sofre, assim, um conflito entre a tradição e a especialização. Esta, ao contrário daquela, é desincorporadora, não tem local determinado e é descentralizada (toda forma de conhecimento local é uma recombinação de conhecimentos de outros lugares). A especialização está ligada a uma crença na correção do conhecimento e de um ceticismo metódico, envolvendo processos intrínsecos de especialização e interagindo com a reflexividade institucional crescente. Em razão de sua forma móvel, é tão destruidora quanto estabilizadora das hierarquias de autoridade. Os sistemas descentralizados abrem-se a qualquer pessoa que tenha tempo, recursos e talento para manipular o conhecimento, não sendo o local qualidade relevante para sua validade. Os especialistas, dessa maneira, passam a discordar entre si não somente para defender suas posições, mas primordialmente para superar suas diferenças. Esse mundo de autoridades múltiplas é muitas vezes (erroneamente) referida como pós-modernidade. A ciência perdeu sua autoridade, com a desilusão com a tecnologia, que trouxe, dentre outras coisas, duas guerras mundiais e a projeção de uma catástrofe ecológica. Isso faz com que a relação de confiança entre especialistas e os indivíduos leigos passe por uma transformação, já que a suposição da competência técnica é passível de revisão. Com relação à tradição, o que proporciona seu caráter genuíno não é o seu estabelecimento há milhares de anos nem a retenção exata de acontecimentos passados, mas mediação do passado real, não necessariamente conhecido, passando a própria tradição a ser o significado principal. Esse embate entre tradição e especialização ocorre em um mundo cada vez mais globalizado. A primeira fase da globalização se caracterizou pela expansão do ocidente. Todavia, hoje, não é mais um imperialismo unilateral. Todos influenciam todos, em maior ou menor escala, razão pela qual a atual fase da globalização não deve ser confundida com a fase precedente. Eis a razão pela qual a sociedade pós-tradicional é a primeira sociedade global. Em razão do rápido avanço das comunicações eletrônicas instantâneas e dos transportes nas últimas décadas, os redutos do tradicionalismo foram invadidos, em um mundo onde agora ninguém é “forasteiro”. A tradição, nesse passo, somente persiste na medida em que se tornampassíveis de justificação discursiva, em um diálogo aberto com outras tradições e foramas alternativas de fazer as coisas. Essa sociedade pós-tradicional é um ponto final, mas também o início de uma nova experiência de uma sociedade de espaço indefinido, onde os elos sociais devem ser construídos e não herdados, em uma jornada tão difícil quanto promissor de grandes recompensas, inclusive a democracia no âmbito da ordem global. Essa potencialidade não significa necessariamente realidade. As diferenças entre ricos e pobres, a dúvida radical e as incertezas sociais são elementos a serem considerados. Mas, de fato, existem possibilidades de alcançarmos uma “democracia dialógica”, por meio da renovação da política. Talvez, como humanidade coletiva, não estejamos condenados à fragmentação nem à jaula de ferro de Weber.

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