18 de fev. de 2007

Modernidade Líquida - Cap. 3

3 Tempo/Espaço

Comunidades hoje são definidas pela defesa e controle de suas fronteiras e não mais por seu conteúdo, mantendo a separação nos lugares de convivência. Por outro lado, a vida na cidade requer a habilidade da “civilidade”, que é a atividade das pessoas estarem juntas, em um ato de engajamento e participação nos espaços públicos, uma tarefa compartilhada para o bem comum sem a obrigação de retirada da máscara social ou de expressar sentimentos e angústias. Hoje diversos espaços cumprem a função, porém sem se aproximarem do modelo ideal. Os centros de consumo, por exemplo, referem-se a uma tarefa individual, constituindo-se lugares onde as pessoas são chamadas a descartar seus laços, aonde elas não vão para socializar-se, pois carregam consigo as companhias que querem gozar. Cria-se um sentimento de conforto, com a suposição de que “somos todos iguais” e de que “temos a mesma intenção”, como se fizéssemos parte de uma comunidade, porém evitando que possamos nos confrontar com a diferença, a alteridade do outro, um modo diferente de viver. Esse processo de afastar o diferente, de evitar a chance de encontrarmos estranhos, segundo Lévi-Strauss, utiliza duas estratégias: antropofágica e antropoêmica; a primeira visando à aniquilação dos “outro” e a segunda a suspensão de sua alteridade. Podem-se acrescer ainda os não-lugares e os espaços vazios. Os primeiros possuem a característica pública, porém claramente não-civis, como o La Défense, em Paris, cuja estrutura faz com que os estranhos tenham presença meramente física, dispensando o domínio da civilidade. Espaços vazios são aqueles em que, por se constituírem áreas habitadas por pessoas totalmente “outras”, são apagadas de nossos mapas mentais, cuja exclusão faz os demais lugares se encherem de significado. Esse afastamento da arte da civilidade, da capacidade de interagir com o estranho sem que a diferença seja utilizada de forma desconfortável, é a característica dessas categorias. Isso porque essa capacidade de interação com o “diferente” não se obtém facilmente, senão com estudo e exercício, enquanto a incapacidade de enfrentar a pluralidade se autoperpetua e se reforça. A principal forma de se garantir a fuga para um “nicho seguro” quando “ninguém sabe falar com ninguém” é a origem étnica, que tem ares de “natural”, onde “todos são parecidos com todos” e a “fala é fácil”. Assim, a política passa a ser uma valorização da “identidade” em detrimento dos “interesses comuns”, importando o que se é e não o que se faz. É a patologia do espaço público e conseqüentemente da política, com o esvaziamento do diálogo e da negociação. A modernidade é a história do tempo, é o tempo em que o tempo tem uma história. Antes, a relação das pessoas com o tempo e o espaço se dava nos limites do wetware - humanos, bois, cavalos - e o uso de qualquer dessas alternativas não fazia uma diferença substancial, tornando todos mais ou menos semelhantes. Mais à frente, a modernidade do hardware, onde homens passaram a construir novas formas de transporte, permitiu a manipulação do tempo, tornando os humanos diferentes, pois agora alguns podiam chegar onde queriam bem antes dos outros. Nessa era da modernidade pesada, o poder baseava-se na territorialidade e no princípio do “quanto maior, melhor” – maiores fábricas, imóveis, países. A rotina normatizada, como meio de controle, criada para o trabalho, o prendia ao solo. Porém, da mesma forma, os prédios e maquinários também acorrentavam o capital e, ainda que pretendesse ser o controlador, estava por esse fato limitado. Contudo, no capitalismo de “software” de hoje, nessa nova modernidade “leve”, o espaço pode ser atravessado em “tempo nenhum”, cancelando a diferença do longe e do perto, desvalorizando o espaço e desprivilegiando qualquer lugar em específico. Quem tem o domínio desse novo tempo e se movem com rapidez, mandam, e os que permanecem presos ao lugar, obedecem. Assim, o capital finalmente de desvinculou das responsabilidades com um lugar, podendo, agora descorporificado, viajar esperançoso e confiante, enquanto o trabalho, como antes, é irrealizável isoladamente. Entre as empresas, as fusões e a redução do tamanho passaram a ser a regra, fazendo com que cada um lute pela sobrevivência, tornando desnecessária qualquer supervisão, pois o receio de ser ultrapassado é o suficiente para manter a disciplina. O capital, assim, busca a gratificação ao mesmo tempo em que evita as conseqüências de suas ações. Além disso, a cultura de nossos tempos desconsidera o passado e não acredita no futuro, dificultando as pontes culturais e morais entre transitoriedade e durabilidade e impedindo a assunção de responsabilidades de longo prazo. Essa inflexão do capitalismo pesado ao leve, da modernidade sólida para a fluida, pode ser ainda mais radical que o próprio advento da modernidade e do capitalismo.

2 comentários:

Anônimo disse...

Excelente o que você fez aqui! aline.azevedo@live.com

Anônimo disse...

Genial, cara, genial

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