SUBSTITUIÇÃO DO CÓDIGO FLORESTAL
Contextualizando o tema da proposta de alteração do Código Florestal, é de se destacar, inicialmente, que o Estado do Acre tem como estratégia de longo prazo transformar a base produtiva do Estado, favorecendo sistemas de produção sustentáveis que estejam de acordo com a vocação e a capacidade de suporte dos recursos a serem utilizados, como indicado pelo nosso Zoneamento Econômico e Ecológico do Estado - ZEE. Nesta perspectiva, a sociedade acreana, há mais de uma década, identificou a possibilidade de reversão do padrão anterior de desmatamento e degradação do solo mediante alteração da estratégia de indução econômica, fundamentando-a numa proposta de desenvolvimento sustentável e tendo por base os cinco critérios de sustentabilidade: o ambiental, o social, o econômico, o político e o cultural.
A base legal para a formulação do modelo de desenvolvimento sustentável é o atual Código Florestal, que prevê a preservação de amplas áreas de valor ambiental nas propriedades privadas, criando condições para o desenvolvimento do manejo florestal e do aproveitamento econômico da floresta em pé. As políticas públicas estaduais se sustentam no referido Código, na forma tomada a partir da sua reforma realizada no final da década de 1990.
Todavia, essa reforma decorreu de um contexto de recrudescimento do desmatamento e das queimadas na Amazônia, razão pela qual o governo Fernando Henrique, alterando o Código Florestal de 1965, aumentou de 50% para 80% as áreas de reserva legal na Amazônia. Apesar do amplo apoio social e da opinião pública, esta decisão resultou, por outro lado, em um impacto econômico e social intenso, gerando uma rejeição explícita dos produtores rurais, no que resultou em uma virtual desobediência civil.
Tal fato, se do ponto de vista ambiental foi extremamente positivo, resultou em um problema na realidade diária para uma imensa massa de proprietários rurais, grandes e pequenos: de um dia para o outro, milhares deles passaram a ter um “passivo ambiental”, o qual deveria ser recuperado ou compensado, nos termos da Medida Provisória que consubstanciou a reforma.
Instantaneamente, diversos proprietários, que haviam realizado desmatamentos legais até o limite de 50%, passaram a ser obrigados a respeitar, na área situada entre os 50% e os 80%, as restrições de uso típicas da Reserva Legal, surgindo a obrigação, inclusive, de recuperação ou compensação dessas áreas. Diante da incapacidade do setor, naquela época, vislumbrar a possibilidade de exploração econômica sustentável dos 80% da floresta existente na reserva legal, por meio de manejo florestal, por exemplo, a edição da MP resultou em uma forte reação à nova norma.
Essa rejeição arrastou-se por mais de uma década, havendo poucos avanços. O Estado do Acre, excepcionalmente, soube articular um grande arranjo com os movimentos sociais, setor produtivo e instituições públicas, de maneira a pactuar e fortalecer, com sucesso, uma Política de Valorização do Ativo Ambiental Florestal, que objetiva, dentre outras coisas, regularizar o passivo ambiental das propriedades rurais em seu território, tema que tem se constituído como um dos maiores desafios para uma gestão socioambiental que promova a eqüidade e a sustentabilidade das atividades produtivas rurais.
Com base na atual estrutura legal brasileira, em especial o Código Florestal, o Acre, por meio da Política supra-referida, tem fomentado ações integradas entre a sociedade civil, ONGs e instituições governamentais, em busca da melhoria da qualidade de vida dos produtores rurais – pequenos, médios e grandes - assim como proteção do meio ambiente. Desta forma, desde o ano de 2008, foram editadas diversas normas que criaram planos e programas que buscam viabilizar atividades econômicas sustentáveis, onde a produção florestal e rural, a regularização das propriedades e a proteção ambiental possuam uma dinâmica integrada e harmônica. São exemplos dessa proposta o programa de certificação das unidades produtivas rurais, o programa de florestas plantadas, o programa de regularização do passivo ambiental e, em especial, mais recentemente, a criação do Sistema de Incentivo a Serviços Ambientais, com possibilidade de pagamento de créditos de carbono e valorizando a floresta em pé.
Dessa forma, considerando os estudos do Zoneamento Econômico-Ecológico do Estado, o Estado do Acre reduziu a reserva legal, para efeito de recomposição, para até 50% , o que resolveu mais 70% das irregularidades ambientais no Estado. Ao mesmo tempo, organizou um mecanismo articulado de alternativas para resolução dos cerca de 30% de passivo restante, permitindo aos produtores, concomitantemente, a recomposição de reserva legal por meio da regeneração da floresta, plantios florestais, compensação com outras áreas e por meio da desoneração, inclusive com inovador sistema de uso do Fundo Florestal estadual para regularização de áreas em Unidades de Conservação . Em outros termos, considerando os programas estaduais que buscam valorizar a floresta em pé, coordenados com um adequado sistema de resolução do passivo ambiental, em um grande pacto considerando diversos atores e interesses da sociedade, do estado e do mercado, demonstrou-se, na prática, a possibilidade de soluções baseadas no marco legal vigente.
Por outro lado, é de se reconhecer alguns aspectos legítimos ainda a serem discutidos em nível federativo, como em relação aos produtores que, antes da Medida Provisória de 1998, estavam legalmente regulares e que, do dia para a noite, passaram a ter um passivo ambiental. Há também aspectos relacionados ao uso sustentável das Áreas de Preservação Permanente - APPs, a criação de alternativas econômicas para a recuperação da reserva legal, novas alternativas de regularização ambiental, a desburocratização dos processos, bem como a consolidação da produção familiar no país, que merecem ser ouvidas.
Mesmo que se considere esses últimos elementos, e talvez alguns pontos do Código Florestal de fato justificassem ajustes, a proposta de total substituição do Código por novas regras não se justifica. Na verdade, em relação ao PL, verificou-se que dos 53 artigos propostos pelo projeto, 23 são transcrições do Código de 1965, com pequenos ajustes; 5 são adaptações do Programa Mais Ambiente (Decreto nº 7.029/2009); 4 foram transcritos do Decreto nº 5.975/2006 e 8 regulamentam institutos já existentes no atual Código. O que resta - 13 novos artigos - tem apenas o condão de suspender multas, assegurar a redução de APP, consolidar o uso de áreas já abertas de áreas em Reserva Legal e APP e criar novas modalidades de intervenção em áreas como várzeas, em especial o Pantanal.
Deve ser destacado, por outro lado, que a “regra de ouro” declarada para os defensores da proposta de alteração do código florestal é a “consolidação do uso atual” de áreas de reserva legal e APPs, aliada à suspensão ou impedimento de multas, o que poderá, todavia, gerar situações de interpretação jurídicas que permitam situações absurdas. Como exemplo, utilizando todas as possibilidades de regularização trazidas pela proposta de novo Código, em um caso extremo, uma propriedade pode ser regularizada ambientalmente sem a manutenção de qualquer vegetação nativa, sendo seu proprietário anistiado de todas as multas existentes.
Primeiramente, pode ser verificado que a suspensão das multas pode se dar pelo tão-só ingresso em programa de regularização ambiental (art. 24, caput e § 4º, do PL), eliminando sanções por ações como desmatamento ilegal, inclusive em reserva legal e APP. Já a legitimação do uso de todas as áreas abertas pode se dar pela utilização de três mecanismos distintos: a) a previsão de desnecessidade de recomposição ou compensação de áreas desmatadas de propriedades com os 50% de florestas existentes anteriormente a 1998 (art. 49 do PL), adicionada da utilização do “bônus” universal de quatro módulos fiscais para compensação de reserva legal, previsto no art. 28 do PL (Bônus o qual, no Acre, pode chegar a 400 ha). Por fim há a previsão de consolidação do uso das APPs abertas – ainda que, neste caso, com muito mais rigor e condicionantes do que a liberação da reserva legal (art. 25, § 1º).
Em síntese, a aplicação dos dispositivos acima mencionados pode significar, em tese, que uma propriedade seja ambientalmente regularizada e suas multas transformadas em “serviços ambientais” sem que tenha preservado uma árvore sequer em toda a sua área, em razão da aplicação dos dispositivos legais acima mencionados, concomitantemente à não imposição de multas por eventuais ilegalidades (art. 24, § 3º, do PL).
Relativamente à “anistia” das multas, pode-se dizer que é baseada em iniciativas como a do “Mais Ambiente”, onde as ações de recuperação ambiental de reserva legal e de APPs são “convertidas” em serviços ambientais, considerando-se tal atividade como pagamento das multas. Porém, em um novo contexto normativo, onde grande parte das obrigações de recuperação ambiental são eliminadas, sob o argumento da “consolidação” do uso de áreas já ocupadas, essa conversão de multas em serviços ambientais pode perder o sentido. Isso porque não há como se eliminar o dever de recuperar e as áreas ilegalmente ocupadas e se anistiar a multa ao mesmo tempo, devendo-se escolher ou um, ou outro.
Assim, ainda que o projeto de lei siga de fato o princípio anunciado pelos “ruralistas” de consolidação das áreas já ocupadas e não de abertura de novas áreas para desmatamento, as regras dessa consolidação também geram situações de injustiça, em prejuízo para os interesses coletivos, como visto mais acima.
Além, até mesmo a regra da “consolidação” é relativizada no projeto, pois a estratificação da reserva legal na Amazônia entre 20%, 35% e 80% (art. 13 do PL) - a depender do tipo de vegetação - significa a permissão de desmatamentos em maiores áreas quando se encerrar a moratória de cinco anos prevista no art. 47. Igualmente, a redução da APP significa mais áreas liberadas cujas áreas também poderão ser suprimidas. Não se deve esquecer, ainda, da possibilidade de desmatamentos decorrentes de licenças já concedidas ou solicitadas até a promulgação da lei (art. 47, § 2º do PL).
Nesse sentido, a proposta apresentada constitui-se como um apanhado de textos do próprio Código Florestal atual, ao qual se agregou normativas como decretos federais e resoluções do CONAMA, dentre outros, em um arranjo o qual vai gerar a necessidade de alterações em regras ambientais nos três níveis de governo, afetando leis e decretos estaduais, resoluções de conselhos, portarias e instruções normativas dos órgãos ambientais que demorarão muitos anos para serem adaptados, em um gigantesco custo de tempo e dinheiro para a sociedade, sem se considerar os custos indiretos, como os judiciais, decorrentes dos quase certos questionamentos das novas regras, que levarão ao menos uma década até que sejam planificados pelos tribunais superiores.
Em síntese, não obstante o reconhecimento da importância de parte dos anseios de produtores rurais, interesses esses que podem ser legitimamente debatidos pela sociedade e as instituições, há necessidade de revisão de diversos aspectos presentes no projeto de lei 1.876/1999, que busca substituir o atual Código Florestal, na forma como aprovada por comissão da Câmara dos Deputados no dia 6 de julho de 2010. Tal afirmação decorre da verificação de aspectos que podem representar a consolidação de situações ilegais e abusivas de uso da terra, de forma injusta com os cumpridores da legislação, bem como em razão da possibilidade de liberação, no futuro, de mais áreas para desmatamento na Amazônia.
Assim, dentre diversos aspectos que devem ser rediscutidos na proposta do novo Código Florestal, exemplifica-se a questão da estratificação da reserva legal na Amazônia, a alteração das regras de medição da APP, a concessão de um bônus universal de quatro módulos fiscais para regularização da reserva legal e, por fim, a anistia de multas concomitante à redução das obrigações de recuperação e recomposição florestal.
Como alternativas, propõe-se a alteração seletiva do Código Florestal atual, para contemplar necessidades legítimas dos setores produtivos, a exemplo a dispensa de recomposição ou compensação aos imóveis com percentual de vegetação de acordo com a lei em vigor à época da supressão da vegetação, a regulamentação da Cota de Reserva Florestas - instituída como mais uma alternativa para solução do passivo ambiental -, a criação de programas estaduais de regularização ambiental, a criação de incentivos financeiros e tributários para atividades ambientalmente sustentáveis, o apoio à valorização da floresta em pé – por meio de incentivo a serviços ambientais, por exemplo - dentre diversas outras iniciativas.
A verdadeira solução, portanto, decorrerá da mudança do modelo produtivo na Amazônia, que hoje favorece uma economia que só reconhece valor nas áreas sem florestas. Deve-se estabelecer políticas públicas inovadoras e transparentes, baseadas na produção de baixo carbono, constituindo-se novos arranjos financeiros que possam desenvolver ambientes de negócios baseados na manutenção da floresta e, assim, se alcance o cumprimento do grande desafio desse século, que é fazer o encontro entre economia e ecologia.
Nesse sentido, políticas públicas adequadas que garantam o financiamento de atividades sustentáveis na Amazônia, a construção e implementação do ZEE nos estados, a generalização da assistência técnica, a intensificação da produção, o desenvolvimento de novos produtos e serviços de baixo carbono e a geração de conhecimentos inovadores na área constituem-se em uma obrigação ética de nossa geração, o que representará soluções muito mais duradouras para o desenvolvimento econômico da Amazônia e para preservação de seus ativos ambientais e serviços ecossistêmicos.