“A Internet é o tecido de nossas vidas”[1]. Essa emblemática frase de Castells simboliza bem o frisson nos meios acadêmicos que causa essa inovadora forma de comunicação em rede, que hoje se expande exponencialmente e tende a alcançar, nas próximas décadas, a maior parte do globo e grande parte das atividades humanas cotidianas como estudar, comprar, conversar, divertir-se e fazer política. A grande rede está se libertando dos pesados computadores e migrando para todos os tipos de dispositivos, de geladeiras e mesas à roupas e porta-retratos. Segunda Gates, está-se caminhando para um contexto de pervasive computing, que poderia ser traduzido em algo como computação onipresente[2]. A existência de conseqüências para as sociedades e os indivíduos é evidente.
Na verdade, a formação de redes, que são conjuntos de nós interconectados, não é algo novo para a humanidade, mas diante das extraordinárias ferramentas disponibilizadas pelas novas tecnologias e energizadas pela Internet muitas coisas novas estão no horizonte. Antes da revolução informacional das últimas décadas, contudo, e na maior parte da história humana, as redes giravam em torno da vida privada e foram geralmente suplantadas em razão da escolha de outro método para execução de tarefas, que foi a forma hierárquica e racionalizada, então mais apropriada para o alcance de metas específicas e complexas[3].
Contudo, as novas tecnologias, e em particular a rede mundial de computadores, permitem às redes contemporâneas exercer sua flexibilidade e adaptabilidade ao mesmo tempo em que possibilita a gestão e coordenação de tarefas complexas, em uma combinação que oferece organização superior para a ação humana[4].
A Internet, nesse sentido, é o primeiro meio de comunicação que viabiliza a ligação de muitos com muitos em escala global. Sua difusão numérica, espantosamente rápida, ainda que reduza velocidade em razão da exclusão digital de bilhões de pessoas, tem imensa importância porque significa um salto qualitativo do uso das redes[5]. Como todo sistema tecnológico, a Internet foi socialmente produzida e seus construtores moldaram o meio de maneira a representar seus valores e crença, representada por uma estrutura de quatro camadas hierarquicamente dispostas: a cultura tecnomeritocrática, a cultura hacker, a cultura comunitária virtual e a cultura empresarial, que contribuem para uma ideologia libertária que tem vínculo direto com o desenvolvimento tecnológico da Internet[6]. Em síntese,
a cultura da Internet é uma cultura feita de uma crença tecnocrática no progresso dos seres humanos através da tecnologia, levado a cabo por comunidades de hackers que prosperam na criatividade livre e aberta, incrustada em redes virtuais que pretendem reinventar a sociedade, e materializada por empresários movidos a dinheiro nas engrenagens da nova economia[7].
Essas características estão evidentes, por exemplo, em recente matéria assinada por Kevin Kelly, o ensaísta que criou a revista Wired, intitulada “a tecnologia nos faz melhores”, fazendo permear a idéia de que, por meio da tecnologia, pode-se melhorar e reinventar a sociedade. Afirma Kelly que “nosso trabalho coletivo é substituir tecnologias que limitam nosso poder de escolha por aquelas que o ampliem” [8], fazendo transparecer uma visão de um projeto onde a tecnologia proporcione escolhas e amplie possibilidade e diversidade de idéias. Dessa forma, afirma Kelly que a tecnologia pode tornar uma pessoa melhor, “mas somente se oferecer a ela novas oportunidades. Oportunidade de obter excelência com a mistura única de talentos com que nasceu. Oportunidade de ser diferente dos seus pais. Oportunidade de criar algo” [9].
É justamente sobre o algo criado e por criar, no âmbito das comunicações mundiais mediadas por computador, que se passa a analisar.
A Internet, como base de uma comunicação “virtual” – em uma oposição à comunicação face a face – na verdade vem se caracterizando como uma forma cada vez mais “comum” de interação social e, assim, passa a fazer parte do cotidiano da pessoas de tal maneira que o virtual não pode ser ligado a algo “inexistente” ou “imaterial”, como o termo poderia ser erroneamente interpretado. Isso é resultado de uma reorganização social profunda, cujas principais características passa-se a explanar.
De início, é importante lembrar que aquela idéia original da rede de transformar o mundo de acordo com os valores pioneiros da Internet, com a difusão em massa do meio e apropriação e transformação da base tecnológica por grupos heterogêneos em todo o mundo, acabou por produzir, na verdade, uma associação paradoxal sobre o surgimento de novos padrões de interação social. Ocorre que, ao mesmo tempo em que se interpreta o fenômeno como o resultado de um “processo histórico de desvinculação entre localidade e sociabilidade na formação da comunidade”, o mesmo também é visto como a difusão de padrões de isolamento social, ruptura da comunicação social e da vida familiar, em uma espécie de sociabilidade aleatória que induz o abandono das interações face a face em ambientes reais[10].
A Internet foi acusada, assim, de manter as pessoas em fantasias on-line, fora do mundo real. Trata-se de um debate falacioso, porque fundado em pesquisas realizadas em um momento em que a Internet ainda não havia se massificado e, portanto, o universo das experiências era reduzido aos pioneiros da rede[11].
Além disso, e tal fato é fundamental a comparação, em geral, sempre foi feita tendo por parâmetro “uma sociedade local harmoniosa de um passado idealizado”, em contraste com um alienado e solitário “cidadão da internet”, estereotipado pelos nerds, situação que não representa os paradigmas atuais, seja no primeiro, seja no segundo caso[12].
Isso porque a realidade social da virtualidade da Internet agora é outra. Pode-se dizer que a Rede foi apropriada pela prática social e, hoje, os seus usos são primordialmente instrumentais ligados ao trabalho, à família e à vida cotidiana, ou seja, ela passou a ser uma extensão da vida em todos os seus aspectos e sob todas as suas modalidades[13].
Da mesma forma, o início da Internet fez nascer, de forma ambígua, uma noção de construção do que se passou a chamar de “comunidades virtuais”, que teve o mérito de colocar em evidência os novos suportes tecnológicos para a sociabilidade, mas induziu a uma confusão daquele termo “comunidade”, principalmente em razão das suas fortes conotações ideológicas. O debate sobre comunitarismo é antigo entre os sociólogos, referindo-se, em regra, à perda de formas significativas de vida devido ao surgimento das metrópoles e o conseqüente enfraquecimento e seleção dos laços entre as famílias[14].
A comunidade idealizada, com a qual se compara as comunidades virtuais, seria resultado de uma estrutura humana natural, onde não haveria motivo para reflexão, crítica ou experimentação de seus membros, pois ela é fiel ao seu modelo ideal. Esse modelo pressupõe que o grupo seja distinto de outros agrupamentos humanos (e portanto visível em contraste com o diferente), pequeno o suficiente a ponto de estar a vista de seus membros e auto-suficiente[15], de maneira a oferecer todas as atividades e atender a “todas as necessidades das pessoas que fazem parte dela. A pequena comunidade é um arranjo do berço ao túmulo”[16]. Essa comunidade, portanto, depende do bloqueio da comunicação com o mundo exterior e sua unidade é produto de sua homogeneidade, de sua mesmidade[17].
Por essas razões, essa mesmidade é desmontada quando suas condições vão desaparecendo, ou seja, quando o “de dentro” e o “de fora”, o “nós” e “eles” vão-se embaçando, em um processo relacionado com a intensificação da comunicação com o exterior. Rachaduras nos seus muros de proteção tornam-se evidentes, assim, com o surgimento dos meios de transporte mecânicos que possibilitaram que a informação viajasse mais rápido que as mensagens orais do círculo da mobilidade humana “natural”[18]. Entretanto,
O golpe mortal na “naturalidade” do entendimento comunitário foi desferido, porém, pelo advento da informática: a emancipação do fluxo de informação proveniente do transporte dos corpos. A partir do momento em que a informação passa a viajar independente de seus portadores, e numa velocidade muito além da capacidade dos meios mais avançados de transporte (como no tipo de sociedade que todos habitamos nos dias de hoje), a fronteira entre o “dentro”e o “fora” não pode mais ser estabelecida e muito menos mantida[19].
Dessa maneira, aquelas formas territoriais de comunidades, apesar de não terem desaparecido por completo, desempenha hoje um papel secundário na estruturação das relações sociais das sociedades desenvolvidas. Isso não significa que não haja sociabilidade baseada em lugares, mas quer dizer que as sociedades não evoluem em direção a um padrão homogêneo de relações sociais.
Para a compreensão das novas formas de interação social na era da Internet, portanto, deve-se reformular o conceito de comunidade, mitigando seu componente cultural e enfatizando seu papel de apoio aos indivíduos e às famílias. Assim, uma definição apropriada para comunidade pode ser aquela proposta por Barry Wellman, citado por Castells, para quem “comunidades são redes de laços interpessoais que proporcionam sociabilidade, apoio, informação, um senso de integração e identidade social”[20].
Desta maneira, pode-se afirmar que a transformação das relações nas sociedades complexas é decorrente da substituição de comunidades espaciais por redes como forma fundamental de sociabilidade, fazendo com que o novo padrão fosse construído a partir da família nuclear em casa, de onde as redes são formadas de acordo com os interesses e valores de cada membro[21].
Na verdade, torna-se difícil determinar a Internet como um meio especial, uma vez que a mesma sinaliza uma imensa variedade de alternativas de comunicações mediadas por computador, tais como salas de bate-papo, e-mails, mensageiros instantâneos, voz sobre IP e vídeo conferência. A Internet, portanto, está se integrando ao padrão normal da vida social[22].
O que se verifica é que todas essas circunstâncias levam a uma tendência dominante de ascensão do individualismo, cujo padrão dominante são as relações terciárias[23], ou o que Wellman chama de “comunidades personalizadas”, que não configuram uma cética perda da comunidade, nem seu utópico ganho, mas sim uma transformação complexa e fundamental da natureza das comunidades, partindo de grupos para formação de redes sociais[24].
Até porque, quando uma rede de computadores conecta pessoas forma uma rede social. Assim, como máquinas conectadas por cabos formam uma rede de computadores, uma rede social é um grupo de pessoas conectadas por relações sócio-significativas[25].
Diante desses fatos, questiona-se: qual o papel das novas possibilidades de comunicação via Internet? Estudos têm demonstrado que a Internet é eficaz à manutenção de laços fracos, que em outra situação seriam perdidos, cuja fragilidade decorre principalmente do fato de raramente resultam em relações pessoais duradouras. Isso porque as pessoas podem facilmente entrar e sair da rede, não necessariamente revelam sua identidade e percorrem diferentes padrões on-line. Contudo, ainda que as conexões específicas não sejam duráveis, o fluxo é constante e muitos utilizam a Internet como uma das suas manifestações sociais, com destaque ao fato de que esse padrão é baseado no individualismo[26].
Por outro lado, também quanto aos laços fortes a Internet parece ser positiva, tendo em vista que as variadas formas de família são auxiliadas pelo uso, por exemplo, do e-mail, que surge como um fácil instrumento de “estar ali” à distância e como uma forma de interação mais profunda quando não se dispõe de energia em determinado momento[27].
O certo é que a preponderância da sociabilidade individualista resulta do fato de que as pessoas estão cada vez mais organizadas em redes sociais mediadas por computador, devendo-se considerar, de toda sorte, que a tecnologia não é o padrão desse processo, mas o meio que oferece o suporte material para a difusão desse tipo de relação social, situação que ainda se constela com a ocorrência de comunicações físicas, em um sistema final sobre o qual pode-se referenciar como híbrido[28].
Essa tendência determina o triunfo do indivíduo, o que significa a ocorrência de custos para a sociedade ainda não claros, ainda que seja evidente a construção, por meio da tecnologia, de uma nova sociedade em rede[29].
[1] CASTELLS, Manuel. A Galáxia da Internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 7.
[2] GATES, Bill. A Hora da Colheita. Revista Veja Tecnologia. Edição n. 2022. Ed. Abril. Agosto de 2007. p. 71.
[3] CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 7.
[4] CASTELLS, A Galáxia da Internet, pp. 7/8.
[5] CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 8.
[6] CASTELLS, A Galáxia da Internet, pp. 34/35.
[7] CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 53.
[8] KELLY, Kevin. A Tecnologia nos Faz Melhores. Revista Veja Tecnologia. Edição n. 2022. Ed. Abril. Agosto de 2007. p. 47.
[9] KELLY, A Tecnologia nos Faz Melhores, p. 49.
[10] CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 98.
[11] CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 98.
[12] CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 98.
[13] CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 99.
[14] CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 105.
[15] BAUMAN, Comunidade, p. 17.
[16] REDFIELD, Robert. The Little Community e Peasant Society and Culture. Chicago: University of Chicago, 1971. p. 4 e ss. Apud BAUMAN, Comunidade, p. 17.
[17] BAUMAN, Comunidade, p. 17.
[18] BAUMAN, Comunidade, p. 18.
[19] BAUMAN, Comunidade, pp. 18/19.
[20] WELLMAN, Barry. Physical Place and Cyberplace: the rise of networked individualism. International Journal of Urban and Regional Researsh, 1 (edição especial sobre redes, classe e lugar). p. 1. Apud CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 106.
[21] CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 107.
[22] WELLMAN, Barry. The Global Village: Internet e community. The Arts & Science Review. Vol. 1, n. 1. Toronto: Toronto University, 2004. p. 29.
[23] CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 107.
[24] WELLMAN, The Global Village, p. 29.
[25] WELLMAN, Barry. An Eletronic Group is Virtually a Social Network. In KIESLER, Sara. Culture of The Internet. New Jersey: Laurence Earlbaum, 1997. p. 179.
[26] CASTELLS, A Galáxia da Internet, pp. 108/109.
[27] CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 109.
[28] CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 109.
[29] CASTELLS, A Galáxia da Internet, p. 111.
2 comentários:
Não vou me aprofundar.... tb pretendo fazer um blog acadêmico... (nas férias... rsrsrs), somente gostaria de deixar consignado o fato de que a internet oferece uma informação globalizada, com vários hiperlinks que podem conduzir a reprodução de conceitos e à dominação. Penso em Bourdieu e seu conceito de "consumidores passivos"..., talvez consumidores passivos da informação... sem qq conhecimento ou racionalidade... perdidos nos links virtuais...
Seu texto me fez pensar... acho que vou escrever alguma coisa sobre hiperlink...
Um abraço, Silvia Bonini.
Olá Silvia,
Obrigado pela participação.
Realmente, essa nova mídia eletrônica flexível transforma a maneira como estruturamos e produzimos o conhecimento e, portanto, também nossa cultura.
Os hiperlinks têm efeitos muito mais profundos que se possa imaginar em um primeiro momento. Bom tema.
Um abraço,
Rodrigo
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