Introdução
O autor demonstra, já na introdução da obra, a intensão de afastar-se da construção da história do direito fundada na autoridade, continuidade, acumulação, previsibilidade e formalismo de nossa tradição teórica-empírica.
Intende, assim, questionar o conhecimento dogmático (colocando de lado sua concepção elitista), buscando uma visão sócio-político da história de caráter crítico-ideológica.
Há menção pelo Autor da pouca importância dada à disciplina da História do Direito nos cursos jurídicos desde sua formação, resultando em uma literatura, até hoje, formada principalmente de “estudos descritivos e pouco sistemáticos, marcados por um enfoque tradicional e algumas vezes erudito, mas sem uma contextualização crítica maior” (p. 05).
Nessa perspectiva, há intenção de se “reinventar brevemente a trajetória da historicidade jurídica nacional, quer apontando seus mitos, falácias e contradições, quer evidenciando seu perfil e sua natureza ideológica” (p. 07), lembrando-se que “a formação jurídica nacional foi sempre comprometida com as classes dominantes, em uma contraditória tradição legal que buscava conciliar práticas ‘burocráticas-patrimonialistas com a retórica do formalismo liberal e individualista’” (p. 07).
Enfim, ressalta o autor que não há intenção de apresentar uma obra com uma história completa do Direito no Brasil, “mas uma breve introdução histórico-crítica acerca de determinados momentos” (fl. 09), com a finalidade precípua de se compreender o entrelaçamento entre os processos histórico-sociais, considerando seus avanços e recuos, que determinam a realidade jurídica brasileira contemporânea.
Capítulo I – PARADIGMAS, HISTORIOGRAFIA CRÍTICA E DIREITO MODERNO
Nesse capítulo, o autor procurou analisar as relações entre a História e o Direito, contemplando questões como mudanças de paradigmas e marcos-teóricos, em um contexto de busca por uma “outra historicidade das idéias e das instituições de Direito” (fl. 08).
1.1 Questões paradigmáticas para repensar a história.
As mencionadas relações entre a História e o Direito têm grande valor para a correta percepção da nossa situação presente. Por isso, o Autor busca a conscientização do leitor das diferenças existentes entre a História oficial e a História subjacente.
A “nova” História busca “recuperar a experiência histórica das bases”, redefinindo suas fontes em busca de “outros tipos de evidências confiáveis”, pois “agora ‘tudo tem uma história’” (pp. 12/13).
É dessa forma que o autor, com base em José Honório Rodrigues, entende que deve ser um objetivo político do historiador “contribuir para capacitar o povo a fazer história” (p. 14). Portanto, temos que rever a nossa História, partindo dessa visão crítica dos acontecimentos.
1.2 Historiografia jurídica tradicional: natureza e função
Tradicionalmente, a História do Direito tem sido vinculada a um saber formalista, abstrato e erudito. Todavia, nos últimos vinte anos, vem ocorrendo uma renovação no interesse pela matéria, interesse esse “de natureza crítico-ideológica” (p. 15), de cunho renovador da cultura jurídica nacional.
O autor, corroborando posicionamento de A. M. Hespanha, diz que aquela História “oficial” possui dois objetivos muito claros, em defesa dos princípios e valores liberal-burgueses: a) desvalorizar preconceituosamente a ordem jurídica pré-burguesa; b) pregar a construção de uma sociedade liberta da arbitrariedade e historicidade anteriores.
A historiografia tradicional, então, “tornou-se um mecanismo de endeusamento da ordem jurídica, política e social do modo de produção capitalista”, “apresentado como uma situação natural” (p. 16). Nessa medida, sendo uma disciplina de justificação da ordem legal, ela foi perdendo significação. Surge daí a necessidade de uma nova abordagem, que tenha por características a problematização, a desmistificação e a transformação. Epistemologia
1.3 Novos marcos na historicidade do direito
A renovação acima mencionada, de acordo com o autor, deve ser gerada a partir da “dialética da produção e das relações sociais concretas” (p. 17). Ela (a renovação), na América Latina, é influenciada por cinco “eventos epistemológicos”, que passam a ser referenciados no texto.
1) A emergência de uma corrente progressista de cunho neomarxista, com a releitura da obra de Gramsci. Com o auge no movimento de 68, apresenta o discurso dos “novos sujeitos sociais e os novos conteúdos da revolução”.
2) A Escola de Frankfurt, segundo a qual haveria necessidade de se reconstruir a racionalidade em um contexto emancipador. A filosofia assumiria, então, uma instrumentalidade visando a tomada de consciência dos sujeitos e a ruptura de sua condição de opressão.
3) A Escola francesa dos “Annales”, que tinha como principais objetivos: a) ultrapassar o positivismo histórico; b) retirar barreiras para restabelecimento da “unidade real da vida”; c) procura de uma História social, “não só como ciência do passado”. A Escola visava a aderência a uma abordagem interdisciplinar que buscasse a transformação da realidade estudada.
4) Pensamento libertador latino-americano, através do qual se busca a afirmação da alteridade emancipadora, “mediante um Direito livre da injustiça e da coerção”.
5) Por último, o chamado “Direito Alternativo”, consubstanciado, na verdade, uma “hermenêutica jurídica alternativa”, que busca dentro do sistema existente encontrar falhas e lacunas que permitam recuperar “a dimensão transformadora do direito”.
Os elementos acima mencionados são contribuições para criação de “novos referenciais metodológicos” “no estudo histórico das idéias e das instituições no campo do Direito” (p. 23).
Objetiva-se, portanto, a revisão crítica de nossa história, principalmente na questão das “práticas de regulamentação e de controle social” (p. 24).
1.4 Pressupostos da modernidade jurídica burguesa: idéias e instituições.
A juridicidade criada no século da Revolução Burguesa e o seguinte teve sempre como alvo a justificação dos interesses daquela classe, armando-se uma teoria jurídica que sustentasse o paradigma liberal através de características e institutos muito típicos dessa visão ideológica.
O indivíduo é absolutizado, havendo uma priorização jurídica da igualdade formal, assentada numa abstração que não leva em consideração as desigualdades pré-existentes. Surgem, então, juristas que vêm colaborar com essas construções, em uma releitura do direito romano, adaptada aos interesses dos burgueses-proprietários.
O jusnaturalismo clássico contribui, então, com o moderno direito liberal na transposição das seguintes características: a) igualdade formal; b) normas gerais, abstratas e impessoais; e c) criação do Direito Público paralelo ao Direito privado.
Como ressalta o autor, citando Eliseu Figueira, “tais princípios de abstração, generalidade e impessoalidade têm no modelo liberal-individualista ‘um significado ideológico, o de ocultar a desigualdade real dos agentes econômicos, para desse modo se conseguir a aparência de uma igualdade formal, a igualdade perante a lei’” (p. 27).
Passa-se a discorrer sobre alguns institutos da juridicidade moderna, a começar pelo “direito de propriedade”, que “exclui do seu uso e gozo qualquer outro não-proprietário” (p. 28).
Outro instituto característico é o “contrato”, “símbolo máximo do poder da vontade individual” (p. 29) que esconde a desigualdade existente entre as pessoas, uma vez que pressupõe uma igualdade formal, somente existente entre os próprios burgueses. Citando Orlando Gomes, lembra-se que “a apregoada liberdade contratual” “tem sido uma ‘fonte das mais clamorosas injustiças’” (p. 29)
Para entender o Direito Moderno, afirma o autor, deve-se conhecer as “categorias nucleares” do “sujeito de direito” e do “direito subjetivo”. Aquele é o “ente moral”, livre e igual; enquanto esse é a faculdade moral que permite ao sujeito defender seus interesses materiais e morais.
Menciona-se, ainda, como características do Direito Moderno, “princípios fins”, como a segurança e a certeza jurídica, diferenciando-as. Igualmente, transita-se por cosmovisões filosóficas hegemônicas, quais sejam, o jusnaturalismo e o positivismo jurídico.
O Jusnaturalismo tem como fundamento a existência de uma ordem jurídica a priori, na crença de um preceito superior. Todavia, a defesa desse direito pretensamente eterno e universal buscava esconder, na verdade, os reais beneficiários de seus princípios, fundados no liberal-contratualismo e racionalismo do século XVIII.
Contudo, “a expressão máxima do racionalismo moderno” foi o positivismo que, ao contrário do jusnaturalismo, rejeitava qualquer ordem a priori, pois “toda a sua validade e imputação fundamentavam-se na própria existência de uma organização normativa e hierarquizada” (p. 33). É fruto daquela sociedade burguesa fundada no progresso industrial, técnico e científico, na pretensão de pacificar as relações entre o capital e o trabalho através de regras de controle.
CAPÍTULO II – O Direito na Época do Brasil Colonial
2.1 Primórdios da estrutura político-econômica brasileira
Nesse capítulo, o Autor, tendo já explanado sobre os traços do Direito Moderno ocidental, procura explorar a questão da forma de transposição daquele modelo jurídico ao Brasil colônia, bem como de que forma essa transposição tem influência dos interesses da Metrópole e da situação social existente na Colônia.
Vê-se, pelo texto, que a convivência entre um sistema patrimonialista e, ao mesmo tempo, de burocracia liberal-individualista, representava um paradoxo, explicado por elementos econômicos, sociais, ideológicos e políticos. Para melhor compreensão do tema é que se passa a discorrer, na seqüência da obra, quanto àqueles elementos.
Como é sabido, o modo de produção colonial era baseado na complementariedade em relação à metrópole e a constituição de monopólios, principalmente agrícolas, de exportação. Nos primeiros séculos após o descobrimento, portanto, a produção brasileira refletiu, tão-somente, os interesses da metrópole.
No que concerne à formação social, é de se dizer que se baseava em uma derivação do sistema feudal, com lastro no latifúndio e na mão-de-obra escrava. Portanto, “o sistema aglutinava certas práticas de base feudal com uma incipiente economia de exportação centrada na produção escravista” (p. 39).
Já quanto à estrutura política, a administração era realizada em um contraditório sistema de pulverização do poder entre os donatários, senhores de escravos e proprietários de terras e a tentativa de centralização pela Coroa, sempre distante dos interesses da população, gerando um “Estado” sempre defensor das elites sociais e com tradição de “intervencionismo estatal no âmbito das instituições sociais e na dinâmica do desenvolvimento econômico” (p. 41).
Esses aspectos econômicos e políticos são essenciais para encontrar as raízes da formação social e política brasileira, inclusive a jurídica. Isso porque a ideologia propagada pela contra-reforma encontrou sua maior defesa na Península Ibérica, cujo desprezo pelas práticas mercantis lucrativas e subserviência aos dogmas católicos vieram a dificultar o aparecimento de uma burguesia rica e o desenvolvimento cultural, econômico e científico baseado na racionalidade. “Em conseqüência, Portugal distanciava-se do ideário renascentista, ... no apego à tradição estabelecida e na propagação de crenças religiosas pautadas na renúncia, no servilismo e na disciplina” (p. 43).
Somente com a reconciliação de Portugal com a Europa e com as drásticas reformas implementadas pelo Marquês de Pompal é que se possibilitou um movimento renovador que ofereceu condições ao advento do liberalismo português. Esse fato vai ser determinante na história brasileira, porque esse liberalismo será transposto à colônia, encontrando um espectro econômico e social em princípio inconciliáveis.
2.2 A legislação colonizadora e o Direito Nativo
Há menção, na obra, da imensa primazia do Direito português como influência para a formação jurídica no Brasil, a despeito das práticas informais negras e índias.
A primeira fase colonial (1520-1549) caracterizou-se “por uma prática político-administrativa tipicamente feudal” (p. 47), sendo o direito vigente uma transferência completa da legislação portuguesa. Contudo, as características da Colônia fizeram necessárias algumas “Leis Extravagantes”, como a “Lei da Boa Razão”, que minimizava a autoridade do Direito Romano e visava beneficiar e favorecer a Metrópole, em um modelo que viria a ser repetido por toda história brasileira de “dissociação entre a elite governante e a imensa massa da população” (p. 49).
O modelo jurídico então existente, portanto, buscava garantir a defesa dos interesses da estrutura elitista de poder, fundado, inicialmente, no idealismo jusnaturalista e, posteriormente, na exegese positivista, mas sempre com um descaso “pelas práticas costumeiras de um Direito nativo e informal” (p. 49). “Desde o século XVII, a elite dominante e seus letrados servis buscaram justificar, sob o aspecto religioso, moral e jurídico, um projeto cristão-colonialista, colocando em relevo a legitimidade da escravidão e a fundamentação de normas que institucionalizassem o controle” (p. 55).
Para que esse modelo elitista e patrimonialista funcionasse, era necessária a sua institucionalização por meio de preparados atores profissionais e regulares instâncias processuais. É o que passamos a ver:
2.3 Os operadores jurídicos e a administração da justiça
A princípio, durante o período das capitanias hereditárias, eram os donatários os responsáveis pela administração da justiça, situação que veio a modificar-se com o advento dos governadores-gerais, evoluindo para criação de uma justiça colônia, que visava tornar mais fácil impor um sistema de jurisdição centralizadora, de interesse da Coroa.
Uma estrutura inicial teve que ser dilatada diante do crescimento das cidades, surgindo um sistema composta de juízes singulares e os chamados “Tribunais de Relação”, órgãos colegiados a quem se dirigiam os recursos de agravo e apelação, mas que também tinha uma competência originária determinada, enquanto a terceira instância era representada pela “Casa da Suplicação”, na Metrópole.
Foram criados Tribunais de Relação no Brasil, primeiramente na Bahia e posteriormente no Rio de Janeiro, cuja composição era formada, quase na totalidade, por portugueses, ou ainda por brasileiros formados na Metrópole. “Os magistrados revelavam lealdade e obediência, ... resultando em benefícios nas futuras promoções e recompensas” (p. 63). Em geral, a escolha de magistrados era feita com base em um recrutamento que garantisse um padrão mínimo, mas vinculado a apadrinhamentos. Esses juristas deveriam ser formados na Universidade de Coimbra e ter exercido a profissão por pelo menos dois anos.
Tais operadores do direito (geralmente de classe média), cujos padrões eram rigidamente formais, encontraram um sistema baseado em laços de parentesco, dinheiro e poder. Esses contatos pessoais favoreciam a corrupção e, como conseqüência, era natural que os magistrados que faziam fortuna e alcançavam poder social aspirassem permanecer na Colônia, mesmo com a possibilidade de retorno à Metrópole.
Assim, “no Brasil-Colônia, a administração da justiça atuou sempre como instrumento de dominação”, em “atitudes e relações não-profissionais de ‘dominação tradicional’ com práticas administrativas profissionais marcadas pela especialização, hierarquia e carreira burocrática” (p. 68).
Todavia, também houve a presença da justiça eclesiástica e, não obstante nunca ter ocorrido um Tribunal de Inquisição em solo brasileiro, casos mais graves eram julgados em Portugal. Nesse sistema de dominação “não havia lugar para os judeus, cristãos-novos, muçulmanos, negros, mulatos, ciganos, heterodoxos ou contestadores de qualquer” (p. 70).
Portanto, tanto na administração convencional da justiça quanto nos tribunais eclesiásticos, o padrão políticos-administrativo era caracterizado por um perfil de teor predominantemente excludente.
CAPÍTULO III – ESTADO, ELITES E CONSTRUÇÃO DO DIREITO NACIONAL
O texto busca refletir sobra a formação da cultura jurídica nacional e de que maneira o ideal liberal influenciou na criação das instituições e nos operadores do direito em nosso território. Vejamos:
3.1 O liberalismo pátrio: natureza e especificidade
São princípios do liberalismo a liberdade pessoal, o individualismo, a tolerância, dignidade e crença na vida. Outras características suas são: no plano econômico, a propriedade privada, economia de mercado, ausência ou minimização do controle estatal, a livre empresa e a iniciativa privada; no plano político-jurídico, consentimento individual, representação política, divisão dos poderes, descentralização administrativa, soberania popular, direitos e garantias individuais, supremação constitucional e estado de direito.
Como se verá, a adaptação do liberalismo iluminista europeu foi amplamente limitado por interesses locais, resultando em uma estrutura político-administrativa patrimonialista e conservadora, criado para servir de suporte aos interesses das oligarquias. Tal situação denunciava a “ambigüidade da junção de ‘formas liberais sobre estruturas de conteúdo oligárquico’”, com aparência de formas democráticas (p. 76).
No início dos movimentos pela independência, houve uma compatibilização de interesses da população com as elites locais. Estes visavam a eliminação dos vínculos coloniais e aqueles a busca da igualdade econômicas e sociais. Conseguido o intento libertário, as formas liberais de poder determinaram a manutenção do status quo ante, em uma formação pseudo-democrática de dominação. Assim, “o Estado brasileiro nasce ‘em virtude da vontade do próprio governo (da elite dominante)” (p 77), acabando por prevalecer um liberalismo conservador praticado por minorias hegemônicas e antidemocráticas. A retórica conservadora sobre o liberalismo fundava-se numa concepção de democracia que negava às massas incultas a capacidade de participação (p. 78).
3.2 O liberalismo e a cultura jurídica no século XIX
O liberalismo, após o processo de desvinculação da Metrópole, representava a modernização do Estado. No início, houve um embate entre liberais radicais e conservadores, com a vitória desses, o que resultou em um sistema dissociado de práticas democráticas, conciliação com a estrutura patrimonialista colonial, introduzindo “uma cultura jurídico-institucional marcadamente formalista, retórica e ornamental” (p. 79).
Após a independência, dois fatores foram fundamentais para edificação de uma cultura jurídica nacional: a criação dos cursos de direito (Recife e São Paulo) e a criação de uma Constituição e leis próprias brasileiras.
Quanto às faculdades de direito, sua finalidade primeira era atender as necessidades burocráticas do Estado. A faculdade de Recife se constituiu na vanguarda científica do Brasil, enquanto a Academia de São Paulo aderiu ao periodismo e à militância política, sendo um centro privilegiado de formação de intelectuais destinados à cooptação pela burocracia estatal.
O segundo grande fator para emancipação da cultura jurídica brasileira foi a elaboração própria do sistema legal, a partir de uma constituição. Diga-se que a fachada liberal desse sistema, apoiado pela monarquia, ocultava o escravismo e excluía a maior parte da população do país. Destacam-se, ainda, o Código Criminal de 1830 e Código de Processo Criminal de 1832, que extinguiu a estrutura colonial portuguesa, que era apoiada sobre os ouvidores e juízes de forma, na tentativa de criação de uma burocracia profissionalizada de administração da Justiça. Reforçava-se, dessa forma, a dominação patrimonialista, com exercício da Justiça apoiada no “mais ‘absoluto policialismo judiciário’” (p. 88).
É de se ressaltar, ainda, o Código Comercial, de 1850 e Código Civil que, não obstante projetos existentes desde de 1860, somente foi aprovado em 1916, tendo-se em conta que “para a burguesia, a ordenação do comércio e da produção da riqueza era mais imperiosa do que a proteção e a garantia dos direitos” civis (p. 88). Isso não impediu, contudo, que o projeto de Clóvis Beviláqua tivesse uma “mentalidade patriarcal, individualista e machista de uma sociedade agrária e preconceituosa” (p. 89) e que traduzisse “intentos de uma classe média consciente e receptiva aos ideais liberais mas igualmente comprometida com o poder oligárquico familiar” (p. 90).
3.3 Magistrados e Judiciário no tempo do Império
Esses profissionais, formados em Coimbra, tinham um “procedimento pautado na superioridade e na prepotência magisterial”, “preparados e treinados para servir aos interesses da administração colonial” (p. 91). Como ressalta o Autor, os juízes foram pilares de sustentação na criação de uma organização política nacional e um dos principais agentes de articulação da unidade nacional. Estavam, dessa forma, identificados com o poder político, bem como eram controlados através de remoções, promoções, suspensões e aposentadorias do governo central, em uma transplantação dos vícios crônicos da Metrópole.
Em 1871 foi realizada a maior reforma do sistema jurídico no império, com o objetivo principal de separar as funções policiais e judiciárias misturadas em 1841 (e aumentando as restrições ao exercício de cargos políticos), em uma “tênue estratégia legal de transição do escravismo para a produção livre” (p. 95). As competências dos Juízes de Paz foram alargadas e, juntamente com os Tribunais do Júri, constituía um ataque frontal à elite judicial, no dizer de FLORY.
Enquanto os magistrados foram formados, em sua maioria, em Coimbra, os advogados tiveram sua educação no Brasil, sendo que a relação de cada um com o Poder Público era distinta. Todavia, “foi no cenário instituído por uma cultura marcada pelo individualismo político e pelo formalismo legalista que se projetou a singularidade de uma magistratura incumbida de edificar os quadros político-burocráticos do Império” (p. 98).
3.4 O perfil ideológico dos atores jurídicos: o bacharelismo liberal
De acordo com o Autor, o bacharel dos séculos XIX e XX não exerceram papel muito distinto do magistrado português no período colonial. O bacharelismo, na verdade, favorecia uma formação liberal-conservadora. Foi, contudo, o periodismo na universidade, principalmente no largo do São Francisco, que determinou a forma de atuação e a formação intelectual do acadêmico das leis. Assim, este adere ao conhecimento ornamental e ao cultivo da erudição lingüística, buscando sempre a primazia da segurança, ordem e liberdades individuais, criando, determinando, como já dito, um profissional essencialmente moderado e conservador. Foi o liberalismo, dessa forma, a grande bandeira ideológica defendida e ensinada nas academias jurídicas, sendo que o bacharel assimilou e viveu projeções liberais dissociadas de práticas democráticas. O Liberalismo, nesse contexto conservador, não estava necessariamente acompanhado de democracia, nem sequer a despatrimonialização do Estado Brasileiro.
A cultura jurídica brasileira foi conduzida, então, “a um estranho e conveniente ecletismo: à tradição de um patrimonialismo sócio-político autoritário (de inspiração lusitana) com uma cultura jurídica liberal-burguesa (de matiz francês, inglês e norte-americano)” (p. 102).
Rui Barbosa foi quem melhor sintetizou essa cultura jurídica tradicional, individualizante e formalista, cujo imaginário social era distante do Direito vivo e comunitário bem como da população, em uma atividade advocatícia descomprometida com a vida cotidiana.
De acordo com o Autor, contudo, “nada impede de se redefinir, contemporaneamente, o papel do advogado enquanto profissional e cidadão” (p. 104).
CAPÍTULO IV – HORIZONTES IDEOLÓGICOS DA CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA
O processo de colonização portuguesa no Brasil reproduziu uma juridicidade patrimonialista e conservadora, que gerou, posteriormente uma contraditória conciliação com práticas liberais e formalistas, em um contexto antidemocrático e elitista.
4.1 Trajetória sócio-política do Direito Público
Os principais elementos impulsionadores de uma juridicidade pública no Brasil foram as revoluções francesa e norte-americana, a vinda da Família Real bem como um exacerbado nacionalismo.
Diante de uma situação de exploração de povos periféricos, como o Brasil, propiciou-se a formação de um Direito Público que visava a limitação do poder absolutista, no que se chamou de Constitucionalismo, que é uma “concepção técnico-formal do liberalismo político na esfera do Direito” (p. 106).
Todavia, após a independência, resultado de uma união entre o povo e a elite, foi outorgada uma Constituição Monárquica que representou apenas os intentos do absolutismo real e os interesses dos grandes proprietários. Assim, os direitos políticos eram cometidos à grupos hegemônicos, em uma estrutura social pouco propícia a novas idéias, revolucionárias ou liberais.
Ocorre que a perda de poder da elite agrária, a crise militar e o estremecimento das relações entre Igreja e Estado proporcionou o surgimento de movimentos antimonarquistas, em um ambiente liberal-conservador que, apesar de alterar a correlação de forças, não teve a capacidade de alterar a estrutura dominante.
Durante o período Imperial, o Brasil possuía sua base econômica na exploração da cana de açúcar, principalmente na Bahia e em Pernambuco, situação que se modificou com o surgimento de um novo produto exportador, o café, que moveu o eixo econômico para Minas Gerais e São Paulo, permitindo o aparecimento de uma oligarquia cafeeira.
Assim é que aparece a primeira república, cujo texto constitucional de 1891 “expressava valores assentados na filosofia política republicano-positivista” sendo que “a retórica do legalismo federalista ... beneficiava somente seguimentos oligárquicos regionais” e, diante da nova estrutura social, com o aparecimento de uma burguesia urbana, “o liberalismo político antidemocrático não só beneficiava os intentos dos grupos oligárquicos hegemônicos, como, sobretudo, asseguraria que a facção dominante da burguesia agrária detivesse poder exclusivo até fins da década de 20” (pp. 109/110).
Como se vê, tanto a constituição monárquica de 1824 quanto a republicana de 1891 deixaram de levar em consideração os interesses das grandes massas rurais e urbanas, consubstanciando-se em instrumentos de controle político-econômico baseados em procedimentos burocráticos-patrimonialistas, que permitiam a corrupção, o favorecimento e o nepotismo.
Foi com o colapso da economia agroexportadora e a falência das instituições da República Velha que se digladiaram pelo poder forças sociais antagônicas que não conseguiram sobrepor-se umas às outras, resultando na projeção do próprio Estado para ocupar o vazio, gerando uma ainda mais dissociada produção jurídica em relação aos interesses populares.
Já a Constituição de 1934, tida por alguns como avanço pela previsão de direitos sociais (sob influência das constituições do México e de Weimer), na verdade igualmente expressava mais o interesse de regulamentação das elites agrárias locais, sendo utilizada como instrumento para aparar os choques entre as classes.
Na seqüência, a Carta de 1937, inspirada no Facismo europeu, instituiu o autoritarismo corporativista e a ditadura do executivo, além de criar obstáculos à garantia dos direitos do cidadão. A Constituição de 1947, não obstante restabeler a representatividade formal, tratou-se “de um arranjo burguês nacionalista entre forças conservadoras e grupos liberais reformistas” (p. 114).
Em 67 e 69, houve uma reprodução da aliança conservadora da burguesia agrária/industrial, sendo as constituições daqueles anos claramente antidemocráticas, tendo por características a centralização e a arbitrariedade.
Quanto à Constituição de 1988, há de se reconhecer avanços, podendo, contudo, tanto servir “‘à legitimação da vontade das elites e à preservação do status quo’, quanto ‘poderá representar um instrumento de efetiva modernização da sociedade”’ (p. 114). Ressalte-se que ela vem sendo profundamente atacada, com restrições à área social.
Como se vê, o nosso Constitucionalismo jamais refletiu as aspirações e necessidades da sociedade, servindo de legitimação das elites hegemônicas e seus privilégios, sendo “marcado ideologicamente por uma doutrina de nítido perfil liberal-conservador. ... [Assim,] as instâncias do Direito Público jamais foram resultantes de uma sociedade democrática e de uma cidadania participativa ... [o que] fez com que inexistisse ... a consolidação de um Constitucionalismo de base popular-burguesa ... [configurando uma] ‘conciliação-compromisso’ entre o patrimonialismo autoritário modernizante e o liberalismo burguês conservador” (p. 116).
4.2 As instituições privadas e a tradição jurídica individualista
O regime econômico brasileiro baseado na escravatura tinha grande receio na instituição de direitos civis, que poderiam minar as bases produtivas. Assim, enquanto o país criava a constituição e legislações penal, processual e mercantil, a regulamentação civil permanece vinculada à previsões portuguesas. A legislação comercial exorbitou, cobrindo atos da vida civil, visando suprir com certa segurança algumas lacunas.
Dessa forma, somente com a abolição do sistema escravocrata é que se concretizou a extinção das ordenações, ocorrendo, contudo, que o projeto de normatização Civil de Clóvis Beviláqua, elaborado em 1899, somente foi promulgado em 1916. Esse Código oferecia mais ênfase ao patrimônio privado do que às pessoas, em um perfil tipicamente conservador e pouco inovador. É certo, portanto, que “a ordem jurídica positiva republicana, por demais individualista, ritualizada e dogmática em suas diretrizes ordenadoras, quase nunca traduziu as profundas aspirações e intentos do todo social. ... Temos assim toda uma legislação positivo-dogmática, marcada pela tradição individualista de proteção e de conservação do Direito de Propriedade” (pp. 123/124).
4.3 Historicidade e natureza do pensamento jusfilosófico nacional
Em princípio, durante a colonização, não se pode falar em uma “teoria jurídica”, uma vez que a concepção de lei, direito e justiça estava vinculada unicamente às diretrizes da Igreja. Os primeiros trabalhos de cunho jusfilosófico, ao contrário do que se poderia imaginar, preocupavam-se em não desagradar a metrópole. Resulta disso foi um “ecletismo”, que foi a principal sistematização do pensamento brasileiro no século XIX. Ecletismo é “uma reunião de teses conciliáveis tomadas de diferentes sistemas de Filosofia, e que são justapostas, deixando de lado, pura e simplesmente, as partes não-conciliáveis destes sistemas”. Esse “ecletismo”, no dizer de Roberto Gomes, representa o “mito brasileiro da imparcialidade”.
No final do século XIX, inicia-se a influência do Positivismo, cujo apelo cientificista apresentava-se como discurso hegemônico e uniforme, impondo uma série de implicações negativas à cultura jurídica brasileira, como vinculação à mentalidade legal dogmática e a manutenção da ordem vigente.
O autor passa, então, a comentar sobre expoentes de diversas “Escolas” jurídicas, mencionando seus principais atores e suas características. Refere-se ao surgimento, durante a crise sócio-econômica que sacudiu a Velha República, de novas teses como o Culturalismo, a Conciliação, o Nacionalismo de esquerda e o Desenvolvimentismo.
A corrente Culturalista fundou o Instituto Brasileiro de Filosofia. Como exemplo dessa corrente temos a obra “Fundamentos do Direito”, de Miguel Reale, apresentando pela primeira vez a teoria tridimensional do direito, que buscava superar as limitações das epistemologias idealistas e empírico-formais. Tal pensamento, a princípio inovador, acabou não tendo alcance transformador, por continuar a ser um saber ligado à normatividade.
A verdade é que nossa cultura jurídica é marcada por uma visão formalista do direito, reproduzindo, em regra, um saber jurídico retórico, apenas como um instrumento de poder. Dessa forma, essa cultura não têm ligação com as reais reivindicações e necessidades da sociedade periférica brasileira.
Deve-se, assim, “articular e operacionalizar um projeto de cunho crítico-interdisciplinar no Direito, ... implementadores de avanços e soluções para a presente historicidade” (p. 140). “As novas tendências paradigmáticas que compõe o que se convencionou chamar de ‘pensamento crítico’ ou de ‘crítica jurídica’ rompem e desmitificam as dimensões político-ideológicas que sustentam a racionalidade do dogmatismo juspositivista contemporâneo” (p. 141).
De acordo com o autor deve-se, portanto, abrir uma ampla frente de “crítica jurídica”, denunciando as intenções “político-ideológicas do normativismo estatal, quando apontam as falácias e as abstrações técnico-formalistas dos discursos legais, ... dessacralizando as ‘crenças teóricas dos juristas em torno da problemática da verdade e da objetividade’” (p. 141).
Meio Ambiente e democracia nas sociedades da informação e do conhecimento e as experiências práticas no Estado do Acre
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5 de jun. de 2009
Do Tratado de Tordesilhas à Guerra Fria - Reflexões sobre o Sistema Mundial - Antônio José Telo
Blumenal/SC: Editora da FURB, 1996. 149 páginas.
Introdução
O Autor menciona, na introdução, a sua compreensão de que o Tratado de Tordesilhas e o Séc. XV têm tudo a ver com a Guerra Fria, tendo em vista que essa é resultado de um processo iniciado com aquele, que representa a formação do primeiro sistema mundial e reflete um sistema coerente de uma realidade vivida ainda hoje. Desta maneira, é necessário um amplo recuo histórico para compreensão de nossos tempos.
A evolução da ciência moderna permitiu ao homem abrir horizontes até então desconhecidos e criou-se uma percepção de que ele poderia dominar e explorar indefinidamente a natureza, o que hoje volta a ser questionável, em um regresso ao mundo pré-século XV. Igualmente, lembrando que foi a partir daquele século que se criaram os Estados-nações, hoje surgem um leque de outras formas de organizações no âmbito das relações internacionais. Outro aspecto, o cultural, reflete uma revitalização da diversidade em um mundo que parecia estar condenado à uniformidade básica.
Nesse contexto, os conceitos clássicos só respondem limitadamente aos novos problemas e o livro procura contribuir para compreensão do complexo processo histórico ocorrido nos últimos 500 anos.
Portugal e a Criação do 1° Sistema Mundial
Há quinhentos anos, com a assinatura do Tratado de Tordesilhas, as terras “por descobrir” foram divididas ao meio pelos reinos de Portugal e Castela, sendo a base do entendimento global que os permitiu exercer uma hegemonia naval bipartida, à volta do qual se articulou a peculiar relação de forças do primeiro sistema mundial, de onde se formou uma ampla rede de ligações multifacetadas e que alterou o cotidiano da humanidade.
O Papel de Portugal
No Séc. XV, o comércio transformava e Europa, sendo que as regiões no norte da Itália e dos Países Baixos eram pontos estratégicos de circulação de mercadorias e chave para domínio do continente. O Mediterrâneo era, então, a via do reduzido comércio intercontinental e os produtos transportados por via marítima para o norte da Europa passavam obrigatoriamente por Portugal, então uma zona periférica. Foi essa ligação com zonas exteriores à península que permitiu a formação da nacionalidade portuguesa de forma independente à Castela.
Naquele Século as redes continentais eram tênues e dependentes de múltiplos intermediários. Isso fazia com que o comércio só fosse possível de produtos de pequeno peso e volume, não perecível e de alto valor. Para nascer o primeiro sistema mundial seria necessário criar uma capacidade técnica até então inexistente: a navegação de grandes oceanos, longe das costas, e que abriria caminho à unidade econômica e cultural do planeta, o que confirma a regra de que cada sistema mundial possui uma ou várias técnicas decisivas e que condiciona sua relação de forças.
Vejamos: Dentre as quatro grandes redes de comércio marítimo existentes (Pacífico – Chineses; Índico – Árabes; Mediterrâneo/Atlântico – Italianos; Mar do Norte/Báltico – cidades do norte da Europa), nenhum possuía a técnica de navegação oceânica intercontinental (mais próximo a China).
O desenvolvimento dessa técnica coube ao pequeno Portugal, devido à necessidade de exploração da costa africana (lembrando que o avanço territorial continental de Portugal estava limitado pelo vizinho mais poderoso, a Espanha, e o caminho mais óbvio à expansão era a costa africana). Dentre os países mais propícios a explorar esse caminho (Península, França e Inglaterra), Portugal era o único que já havia consolidado a formação do Estado-nação (consciência nacional e concentração do poder real), o que o permitiu canalizar recursos para o aproveitamento do que melhor tinha nas técnicas de navegação providas pelos Árabe, pelo Mediterrâneo cristão e pelo norte da Europa, em um contexto em que o Estado tinha proeminência nesse processo.
Surgem, assim, os novos tipos de navios que vão abrir as rotas oceânicas, primeiramente com as caravelas (meados do Séc. XV) e, posteriormente, com as naus, que tinham capacidade de lidar com o grande volume de comércio, em um processo inovador e revolucionário. Essas embarcações são “o primeiro exemplo da evolução programada e gradual de um produto final (navio oceânico) que engloba em si um amplo conjunto de tecnologias, levada a cabo pelo Estado central para alcançar um objetivo de grande estratégia” (p. 22), processo este “inventado” por Portugal.
Além disso, Portugal adquiriu um conhecimento único dos sistemas de ventos do Atlântico sul e das Canárias, bem como das ciências náuticas, aproveitadas dos árabes e europeus, o que lhe concedeu uma superioridade que garantia o monopólio do caminho à Índia. O Controle da costa marroquina e dos arquipélagos do Atlântico, por onde passavam todas as grandes rotas do 1° sistema mundial e era “ponto de encontro de todos os regressos”, também teve papel central. Essas colônias serviram de “laboratório” para os processos de colonização que depois seriam transplantados para o Brasil.
Em síntese: Um pequeno poder concentra recursos por quase um século (XV) no desenvolvimento de uma capacidade técnica para concretizar uma estratégia própria, sem concorrência dos mais poderosos, já que estes não perceberem a importância do comércio da costa africana. A vantagem técnica de Portugal permitiu, então, amarrar Castela em um acordo Global (nascimento dos poderes globais) que dividiu o mundo ao meio.
Os Equilíbrios do 1° Sistema Mundial
O Tratado de Tordesilhas resulta em um grande salto qualitativo, onde pela primeira vez há uma interligação regular entre os continentes, gerando alterações migratórias, inclusive de vegetais e animais, que geram, por exemplo, a quase aniquilação de populações inteiras no continente americano.
Todavia, impressiona o fato de Portugal ter mantido, por mais de um século, a hegemonia oceânica. O país possuía um exército minúsculo perto das maiores potências européias. Ocorre que essas lutavam entre si pelo domínio do centro do sistema europeu, empenhando aí todas as suas forças (e que foi responsável por uma imensa revolução militar e pela formação dos Estados-nação). Sem as guerras decorrentes dessa disputa, haveria maior empenho na conquista do poder oceânico e Portugal não poderia oferecer resistência.
O poder português baseava-se, assim, em dois pilares: controle das grandes rotas com recursos mínimos e o não envolvimento em guerras permanentes. Isso era possível pela sua vantagem técnica e a falta de interesses dos poderes em disputar a hegemonia naval. Já a Espanha, único potencial concorrente do controle oceânico, concentra seus esforços pelo controle do mar mediterrâneo, envolvendo-se em dezenas de guerras e enfrentando poderosos adversários, inclusive os Turcos (vantagem para Portugal, já que os mesmos poderiam perturbar o controle português no Índico), o que permite ao pequeno país de Portugal ser o grande poder naval oceânico do 1° sistema mundial.
A Espanha, percebendo a rentabilidade do ouro e da prata na América, prefere respeitar o Tratado de Tordesilhas, o que o permite manter controle sobre o Atlântico sem retirar forças que combatiam os Turcos e os Franceses.
Nasce um novo processo de exploração marítima com os corsários, aventureiros particulares que, devido à inferioridade em relação às forças dos Estados, desenvolveram navios mais ágeis e renovaram a maneira de pensar o poder naval, tornando-se precursores das sociedades por ações e onde se desenvolveram muitas das técnicas de organização aplicadas futuramente às grandes companhias de comércio. Mas somente a partir dos anos 60 do século XVI que o grande domínio Ibérico começou a ser enfrentado por França e Inglaterra, uma vez afastada a hipótese de um único poder conquistar a hegemonia continental.
O Império do Mar Português
Os adversários de Portugal eram, inicialmente, os Turcos e, posteriormente, os corsários, ambos sistematicamente vencidos pelas naus que possuíam armamento mais desenvolvido. Assim, os portugueses, no Império Oriental, concentraram-se no controle das rotas comerciais oceânicas de longa distância, sem ter, contudo, preocupações de colonização, mantendo o monopólio das ligações intercontinentais por mar, que eles sabiam fazer. Era a carreira da Índia, linha vital do “império do mar” e responsável por mais da metade do comércio entre Europa e a Ásia, já que as linhas terrestres estavam em crise naquele período.
A Queda dos Poderes Ibéricos
A falta de concorrência durante a hegemonia naval oceânica ibérica faz com que Portugal e Espanha deixem de criar inovações das técnicas navais, o que se demonstrou ser fatal. Na Inglaterra, França e nas Províncias Unidas ocorre o contrário. Os Corsários desenvolveram navios rápidos e menores, com maior capacidade de artilharia, já que não precisavam carregar grandes cargas, o que os permite, fomentado pelos Estados de origem e em razão da superioridade técnica, iniciar um domínio da rotas marítimas.
Ademais, o poder econômico não coincidia com o poder naval, e a falência econômica dos poderes do sul (Portugal, Espanha e França) desenvolve uma rebelião dos países do norte, que encaravam a subordinação política e comercial como um peso desnecessário e prejudicial, já agora em uma situação em que a qualquer hegemonia continental estava afastada (liberando recursos para a disputa naval).
Na segunda metade do Séc. XVI surgem diversas lutas por autonomia política dos poderes do norte, o que passava pela disputa do comércio intercontinental e, portanto, ameaçando a hegemonia naval bipartida dos poderes ibéricos. Antes podendo se manter neutro, Portugal é incitado a se envolver nos conflitos, optando por unir-se à Coroa Espanhola para um longo embate naval com a Inglaterra e as Províncias Unidas.
Neste processo, além da evolução técnica, outros fatores, antes vantagens competitivas de Portugal, contribuíram para sua queda: seu antes pioneirismo do Estado-nação já era comum na Europa; e a criação de exércitos nacionais passou a ser realidade também em outros países.
O Estado português, na exploração do comércio marítimo, exercia um capitalismo de Estado, o que se tornou uma imensa desvantagem no final do Séc. XVI, já que a aristocracia burocrática formava uma máquina que não favorecia a inovação e a mudança. Enquanto isso, nos poderes do norte, a iniciativa privada (que geria o comércio como um negócio) é que toma a vanguarda e, diante de insucessos de combates no Índico, os erros eram discutidos e corrigidos, valorizando a técnica e a inovação.
Na gestão da Companhia das Índias Orientais Inglesa ou Holandesa, os indivíduos tinham ampla liberdade e eram selecionados por mérito, cujas decisões eram analisadas a posteriori e eventuais erros punidos severamente, ao contrário da máquina portuguesa.
Outro ponto se refere às transformações ecológicas que alteram os sistemas de forças durante o 1° sistema mundial, a exemplo do acesso a madeiras nobres para construção naval e a formação das primeiras plantações em larga escala. “Os poderes ibéricos eram verdadeiros aprendizes de feiticeiro. Iniciaram transformações de larga escala, na realidade, numa escala nunca imaginada, que acabaram por beneficiar sobretudo os adversários” (p. 51).
O Fim do 1° Sistema
O autor menciona como um período concreto de transição do 1° para o 2° sistema global aquele entre os anos de 1596 e 1606, com a formação das Companhias das Índias e as tentativas de colonização permanente inglesas e holandesas na América, dando especial importância na modificação do titular do poder naval e as técnicas decorrentes. O 2° sistema também começa com uma hegemonia bipartida (o que volta a acontecer entre 1914 e 1945 entre EUA e Inglaterra), mas nunca houve uma divisão oficial (Tordesilhas) e clara como dos países Ibéricos e que contribuiu para a inexistência de uma rivalidade global entre Espanha e Portugal, como se poderia esperar.
O Poder Naval nas Teorias do Sistema Mundial
As Teorias Clássicas do Equilíbrio Europeu
A atividade social e sua possível lógica de funcionamento em nível global é o o objeto das teorias sobre o sistema mundial, que surge nas cidades-Estados da Itália do Séc. XV , sob o auspício de evitar um poder dominante perturbasse a paz e o equilíbrio da região, princípio que foi transplantado a toda a Europa a partir do momento que se percebeu a impossibilidade de qualquer Estado dominar o continente. A teoria clássica do equilíbrio europeu baseia-se na idéia de que a Europa era o centro do mundo, bem como de que a Inglaterra e a Holanda (com o poder naval) funcionariam como fiel da balança no equilíbrio continental, concedentes-lhes papel especial na ordem internacional. “Os poderes navais tendiam a atuar como os guardas da diversidade, na procura de uma ordem aceita e reconhecida como necessária ao bem-comum” (p. 59).
As Teorias dos Sistemas Mundiais
Após a I Guerra Mundial muito se perguntou as razões para escalada de violência após um século estável e pacífico, buscando-se a resposta nas responsabilidades de governos ou estadistas. Outros basearam-na na alteração das regras do sistema internacional, desenvolvendo um novo campo do saber: a história das relações internacionais, principalmente na Inglaterra, gerando uma multiplicidade de organismos transnacionais, ficando evidente, já à época, que outras regiões, que não somente a Europa, também interessavam ao equilíbrio global.
Esse efeito é acelerado ao fim da II Guerra. Na França, a escola de Palestina desenvolveu teorias globais numa perspectiva multidisciplinar e integrada. Autores franceses, nas décadas de 60 e 70, postulam que a ordem vigente era corolário das regras básicas estabelecidas no Séc. XV, baseando suas teorias nas relações de domínio e dependência econômicos.
Nos anos 80, investigadores americanos e ingleses apresentam uma abordagem diferente, com ênfase nas relações de poder político, onde se inclui a estrutura econômica, mas não em nível determinante, na interpretação das estruturas relacionais globais.
A Criação do Sistema Mundial
Há consenso de que somente a partir do Séc. XV é que se pode falar em um sistema mundial. Tal ocorre porque antes as relações entre e intra continentes era pequena e não causava grandes impactos. Após a abertura das grandes navegações, o maior salto ocorreu qualitativamente e não quantitativamente, já que, além do aspecto comercial, o que mais se destacou foi uma “completa alteração da agricultura e dos hábitos alimentares de todas as regiões, a começar pela Europa, e uma ampla migração das formas de vida, animais e vegetais, sem esquecer os microorganismos” (p. 63). Isso ocorreu de tal maneira a criar uma rede de interdependência planetária baseada na revolução técnica e científica em escala gigantesca, sendo a maior delas a capacidade de navegação intercontinental, o que permite a definição de um sistema mundial.
Portugal que, como já visto, havia adquirido, a partir de uma estratégia nacional, capacidade naval inigualável, passou a ter que conviver, assim como todos os outros países poderosos, com novos problemas, como a escravatura de povos não-cristãos, o direito de colonizar, as regras de comércio e sua organização em escala planetária. As respostas aceitas internacionalmente sobre estes temas formaram o esqueleto da ordem mundial emergente. O sistema Ibérico de divisão de poder resultava, pois, em um equilíbrio tal que se considera a primeira expressão do conceito de “equilíbrio europeu”, protagonizado posteriormente pela Inglaterra, cujos conceitos eram semelhantes, porém com forma de aplicação distinta.
Nos primeiros sistemas globais os Estados que se colocam na vanguarda tecnológica criam capacidades que os fazem projetar seu poder a longa distância, determinando alianças para impor essa ordem de forças e gerando um sistema global, onde o poder naval desempenha papel hegemônico.
A Medida do Poder Naval
Como base nos estudos de Thompson e Modelsk, o Autor apresenta as considerações que se seguem. Tendo em conta de que até há 60 anos só havia ligação entre todos os continentes pelo oceano, vê-se a importância da análise do poder naval para avaliação das relações de poder entre nações. A partir de investigações estatísticas das forças navais nos últimos 500 anos, observou-se sua influência na determinação de 5 ciclos, dominados por Portugal no primeiro, Países Baixos o segundo, Inglaterra o terceiro e o quarto e, finalmente, EUA o quinto, ocorrendo a passagem dos ciclos por meio de “guerras globais”, a partir das quais um novo poder detentor de novas tecnologias estabelece alianças, reformula regras e consolida sua hegemonia, com concentração de mais de 50% do poder, o que somente se interrompe em razão de um novo ciclo.
Críticas à Teoria – Internas e Externas
O autor, apesar de conceder grande importância aos estudos de Thompson e Modelski, cujo ápice se deu na década de 80, critica alguns de seus pontos. Primeiramente, quanto ao estabelecimento de ciclos mais ou menos constantes de 120 anos (a própria idéia de ciclo é questionável porque a realidade social não é repetitiva). Em segundo lugar, considerar como elemento fundamental a força naval parece um erro, já que a revolução científica e técnica demonstra ser mais consetâneo (o papel do poder naval estaria, então, incluído).
Quanto ao desenvolvimento científico, o autor identifica três períodos: os Sécs. XV e XVI; a primeira Revolução Industrial, no Séc. XIX; e as sociedades pós-industriais e suas múltiplas tecnologias depois de 1945, os quais considera sistemas mundiais distintos. Assim, enquanto o sistema mundial modifica-se no final do Séc. XVI, a época histórica (mais vasta e englobante) mantém-se até a Revolução Industrial. O autor afirma, ainda, que as ondas de inovação são acompanhadas por uma redefinição das relações fundamentais de cada civilização (indivíduo com o coletivo/natureza/divino), conduzindo a uma nova fase do ecossistema mundial.
Não obstante concordar com Thompson e Modelski, ao considerar os aspectos de poder e política como sobreposto ao econômico, o Autor afirma que eles caem no extremo, desconsiderando este aspecto. Diz, então, que os pesos dos aspectos político, econômico ou ecológico são variáveis e relativos, conforme a época.
Ainda discordando de Thompson e Modelski, Telo sustenta que um grande poder responsável pelo equilíbrio de uma região também é importante para o equilíbrio global, ou seja, do sistema como um todo. Não fosse assim, o Império Otomano, p. ex., jamais alcançaria o estatuto de poder global. Do mesmo modo, seria um equívoco estabelecer a existência de um único poder hegemônico em cada “ciclo”, já que a realidade é complexa e não evolui sempre segundo um modelo, nem com fases certas e previsíveis.
Relativamente ao papel do poder naval a partir de 1945, este deixou de ser a expressão mais acabada do poder global, isso ocorrendo pelo surgimento das novas tecnologias e pelo aparecimento das armas nucleares. Além do que, o poder naval não pode ser medido exclusivamente em termos de navios capazes de controlar grandes rotas oceânicas, pois, como já dito, a realidade é mais complexa e não é expressa diretamente pelas séries estatísticas dos autores citados. As mudanças qualitativas demonstram que “é deturpador procurar avaliar a alteração da realidade global nos últimos cinco séculos através de um qualquer índice único” (p. 76).
Poder Naval, Sistemas Mundiais e Épocas Históricas
A realidade global é analisada por meio de três conceitos interligados: o a) sistema internacional; b) sistema mundial; e c) época histórica. Enquanto o primeiro é uma relação de forças minimamente estáveis entre os poderes globais e entre estes e a periferia, o segundo é a afirmação de uma hegemonia que possui ampla aceitação. Há uma tendência de pelo menos dois sistemas internacionais em cada sistema mundial, em um período inicial de hegemonia exclusiva ou bipolar e, na seqüência, um sistema multipolar. O terceiro, a época histórica, é marcado por inovações técnicas e científicas que alteram as sociedades, e cada uma pode ter um ou mais sistemas mundiais.
Nos últimos 500 anos tivemos três ondas de inovação: no Séc. XV, a época moderna; na revolução industrial, a época contemporânea; e na II Guerra Mundial, a pós-industrial. Isso se mostra na evolução do poder naval. Os navios do início do Século XIX não diferia radicalmente daqueles do Séc. XV e XVI. Todavia, poucas dezenas de anos depois, em razão da revolução industrial, surgiram novos navios com tal capacidade que apenas um exemplar seu seria capaz de derrotar toda uma esquadra do período anterior, isso em razão das novas armas e o uso do vapor.
A partir de 1945 ocorre algo semelhante, a ponto de um único SSBN de 1959 ser 100 vezes mais poderosa que toda a esquadra inglesa ao final da guerra. Essa mudança qualitativa é de tal ordem que altera as manifestações do poder global. A expressão do poder se dá, então, a partir da capacidade de manter um arsenal nuclear, causando uma subversão das regras do jogo e que demonstra estarmos diante de uma nova época histórica.
Portugal, pioneiro na expressão moderna do poder naval, entendeu que o “império do mar” não dependia de aspectos quantitativos econômicos, mas qualitativos técnicos, sendo aqueles resultados do processo e não sua condição prévia (não são os quantitativos que fazem a diferença). O país soube, no Séc. XV, inovar mais rapidamente, criando um diferencial de qualidade que o fez poderoso. É isso que faz a diferença.
A II Guerra Mundial: Porta de Entrada no Mundo Atual
I - A II Guerra como Transição entre Sistemas Mundiais
O Autor acredita que se pode considerar a II Grande Guerra como a fim da Idade Contemporânea, estabelecendo um novo Sistema Mundial. Verifica-se, primeiramente, a clara alteração do sistema internacional, antes multipolar desde o Séc. XIX, substituído por um sistema bipolar (a guerra fria), com hegemonia americana (supremacia no poder bélico, tecnológico e econômico).
Estudiosos acreditam que a I e a II Guerras Mundiais tendem a ser consideradas um só período de guerra, já que da primeira não surgiu um equilíbrio estável e duradouro. Esse período marcou a formação do sistema mundial que ainda vivemos, mas que já conheceu um segundo sistema internacional após a queda do muro de Berlim.
II – A II Guerra como Transição entre Épocas Históricas
A alteração de um sistema mundial não significa, necessariamente uma mudança de época histórica, já que esta é marcada por uma onda de inovações em todos os níveis da atividade social. O autor entende que II Guerra proporcionou tal alteração, passando o autor a demonstrar tal percepção, discorrendo sobre as Épocas Moderna, Contemporânea e Pós-Industrial.
A Época Moderna caracterizou-se, num processo de quase um século, pelos “descobrimentos”, pela Reforma e pelo Renascimento, com mudanças em todos os níveis, com criação da imprensa, armas de fogo e navios transoceânicos, na primeira fase da “aldeia global”. Houve migrações de animais e vegetais, fim de civilizações e criação de uma economia mundial, em uma das maiores mudanças que a humanidade já conheceu.
Uma segunda onda de mudanças se dá com a revolução industrial e a utilização da máquina a vapor que, associada à uma guerra global (1792-1815) decorrente da Revolução Francesa, cria a crença na capacidade técnica do homem, por meio da qual se dominaria a natureza e se garantiria a felicidade coletiva.
Na opinião do Autor, há uma terceira vaga de mudanças associadas à II Guerra Mundial. Não que a própria guerra seja o motor desse processo. Ao contrário, é ela também um reflexo das inovações técnicas e científicas, que permitem a um poder ascendente contestar a hegemonia anterior, iniciando um período de guerra global. Essas inovações também são fatores fundamentais para determinar o vencedor, ainda que o inovador possa não conseguir manter a dinâmica do processo, dependendo a vitória final de um conjunto complexo de variáveis.
III – As Inovações da II Guerra Mundial
No período anterior à II Guerra Mundial, o Japão (organizando a esquadra em volta do porta-aviões) e a Alemanha (com suas divisões blindadas e táticas de guerra relâmpago) souberam melhor organizar os avanços tecnológicos que não eram originalmente seus, o que lhe possibilitou vencer inicialmente a guerra. Outros países tinham acesso às novas técnicas, mas foram eles que melhor compreenderam como se utilizar do pulo científico em curso. A inversão dessa tendência em favor dos aliados se deu justamente por terem copiado as organizações e táticas do eixo, aplicando-as com uma capacidade industrial e humana superior, e a vitória se deu pela formação de novas técnicas que só eles desenvolveram.
Assim, a bomba atômica, resultante de um gigantesco investimento, apresenta-se como o melhor exemplo do efeito demolidor que uma nova tecnologia radical pode gerar, mudando a forma como as guerras entre grandes poderes se desenvolvem e se resolvem. Nas armas daquela guerra estavam incorporadas um amplo conjunto de novas técnicas, em árias como a química (plástico, p. ex.) e a eletrônicas (computadores, p. ex.), demonstrando que estávamos perante uma notável onda de inovações científicas da humanidade.
IV – A Sociedade Pós-Industrial
Os aspectos mencionados acima constituem apenas um dos elementos que demonstram o início de outra época histórica. As estruturas sociais e políticas se alteram no curso da primeira metade do Séc. XX, desde a I Guerra. Como exemplo, no Pós II Guerra, o comunismo difere-se claramente daquele dos anos 30, bem como surgem movimentos nacionalistas na Ásia e na África, com origens na I Guerra. Além tecnologias como a televisão, o computador e o tecido sintético, atingem a maturidade, as mulheres buscam a igualdade e novos conceitos de família e educação aparecem. A ciência e a técnica articulam, portanto, um amplo leque de modificações interativas que justificariam o entendimento do surgimento de um novo sistema internacional, um novo sistema mundial e uma nova época histórica.
V – A II Guerra e a Europa
A Europa saiu altamente debilitada da guerra e, inclusive a Inglaterra, uma das três “vencedoras”, percebeu o fim de sua liderança mundial. Os EUA, tendo por política manter a Europa no sistema ocidental, estabeleceu programas de auxílio econômico e militar, iniciando a criação de organismos característicos da nova ordem, como a OCDE e a OTAN. Foi essa fraqueza que propiciou a gestação da Europa como conhecemos hoje, em negação à via da força e que demonstra a impossibilidade de uma hegemonia única se afirmar.
VI – A II Guerra e Portugal
Para Portugal, as mudanças decorrentes da guerra não se dá no mesmo ritmo do resto da Europa. Não por um destino do “secular atraso”, já que o país costumeiramente é arrastado pelo turbilhão político das grandes mudanças em razão de sua posição geográfica. As novas tecnologias demoram a chegar, mais por decisão política consciente, o que faz com que o país passe diretamente de uma sociedade agrícola para uma de serviços, sem conhecer o estágio industrial.
Na questão estratégica, o enfraquecimento da Inglaterra desfez um apoio externo que sustentava o país por longo tempo. O governo demorou a perceber a ascensão americana, além de ter preferido, em um primeiro momento, refutar a União Européia e qualquer situação de perda da soberania, em um resgate do Império como alternativa ao discurso liberal dominante no sistema ocidental. Disso resultou a Guerra colonial, que culminou na Revolução dos Cravos, que reestabeleceu a democracia no pais (perdida desde 1926).
Na questão econômica, o desenvolvimento se dá a partir de um dirigismo do Estado, diga-se ditatorial, que freia o crescimento (evitando abalos bruscos internos) e invade largas esferas da iniciativa privada.
No campo social, o meio rural assiste alterações do padrão de comportamento, com uma politização anormal, que se vira contra o Estado novo, decorrentes principalmente dos crescentes conflitos. O meio urbano, por sua vez, conhece ondas de greves com as quais o regime parecia que não iria resistir até o fim da guerra. O desabastecimento e aumento dos preços, entretanto, são minimizados pelos aliados, o que contribui para a derrota dos comunistas.
Outras mudanças sociais ocorreram, principalmente pela mistura cultural resultante dos imigrantes da guerra que se fixam no país e da invasão cultural, que mudam a mentalidade do povo. Com a necessidade de maior mobilização de efetivos durante a guerra, ocorre uma politização das forças (pela participação da classe média estudada nas tropas), o que exigiu uma posterior desarticulação pelo regime, deixando, contudo, sementes ao chão.
Como se vê, em Portugal, em decorrência da guerra, não houve uma mudança radical imediata como no sistema global. Esta, todavia, forçou a adaptação ulterior do país à nova ordem, provocando, ao cabo, o fim do Estado Novo.
O Sistema Internacional da Guerra Fria (1945-1991)
Sistemas Mundiais e Sistemas Internacionais
Repassando esses conceitos, lembra-se que “sistema mundial” é o conjunto de regras estáveis de convívio internacional, cujas soluções são normalmente oferecidas pelo poder hegemônico e que garantem seu domínio. Mesmo com o enfraquecimento do poder que o criou, só é colocado em causa e substituído quando surgem problemas de dimensão qualitativamente diferentes. Os sistemas mundiais podem possuir fases, os chamados sistemas internacionais, cujas alterações se dão em menor escala, principalmente quanto ao relacionamento entre os principais poderes e entre estes e a periferia.
Após 1945 cria-se o sistema mundial dominado pelos EUA, com um primeiro sistema internacional bipolar que existiu até 1991 – a guerra fria. Atualmente, estamos em período de transição, cuja duração, pode-se dizer, é imprevisível.
O Sistema Mundial da Hegemonia Americana
A II Guerra Mundial amadurece o desenvolvimento científico de uma série de tecnologias que altera as regras do jogo internacional, sendo a arma nuclear a mais significativa. Esta torna suicida os conflitos armados diretos entre os grandes poderes. O conflito, então, assume então indiretas em zonas secundárias ou confrontos diretos apenas nos campos político e econômico. Tal circunstância altera o processo de desenvolvimento dos ciclos mundiais. As guerras globais deixam, portanto, de ter um sentido estratégico.
Outra diferença ocorre na interdependência mundial em diversos âmbitos, em uma “aldeia global” decorrente de uma revolução nas comunicações. Apresentam-se as primeiras idéias de que os direitos ecológicos e do indivíduo não podem ser resolvidos pelos Estados-nação, propiciando uma proliferação de organismos internacionais que vêm alterar as relações internacionais, tanto regionais como globais.
A 1ª Fase da Guerra Fria
Os EUA saem da II Guerra com imensas vantagens quantitativas e qualitativas no campo econômico e militar sobre o resto do mundo, o que o permitiu balizar as novas instituições e regras de convívio internacional, bem como criar o sistema de comércio internacional. Manteve o monopólio nuclear até 1960-63, sempre buscando a formação de alianças que garantissem a economia de mercado.
Para garantir sua hegemonia, os EUA aturam, no pós-guerra, em duas frentes: a Europa e o Japão. Na Europa, visando evitar uma crise financeira, oferece-se o Plano Marshall, de rápido e grande sucesso, que garante a evolução de regimes democráticos e os faz compreender as vantagens da hegemonia que se avizinha, e que é completado pela criação da OTAN, a principal aliança defensiva daquele período. O guarda-chuva nuclear norte-americano permitiu que os europeus concentrassem recursos para recuperação de suas economias.
A aplicação do sistema ocidental no pacífico é mais complexa. Primeiramente, os EUA imaginaram a China como seu parceiro natural, o que foi obstado pela vitória dos comunistas em 1949. Os americanos, então, fomentam o renascimento econômicos do Japão para consolidar uma esfera de influência da economia de mercado na periferia oriental euro-asiática.
A URSS, entendendo esses movimentos como uma ameaça, canaliza seus recursos para o campo militar (principalmente nuclear) e para consolidação das suas zonas de influência no pós-guerra, uma vez que os americanos eram mais fortes em todas as vertentes e mantinham a hegemonia de forma indireta. Os russos, por não terem os mesmos recursos que permitissem a “persuasão econômica” das nações e seu povo, baseavam seu poder na ausência de regimes democráticos na sua esfera.
Esse sistema de rivalidade bipolar deságua na formação dos “dois mundos”, de matizes filosóficos e ideológicos distintos, onde cada lado se justifica pela existência do outro e pela “ameaça externa”. Eram, pois, “irmãos na paranóia”, uma paranóia consciente, controlada e até desejada.
Um fator importante no jogo das relações passou a ser o movimento de independências. Os países europeus, em regra, perceberam que evitá-las gerava uma radicalização das posições e abria espaço para os comunistas, no que a melhor saída seria uma libertação controlada. Ademais, alguns países (China, Índia etc) não se alinharam a qualquer dos blocos, sem contudo chegar a formar uma “terceira força”. Seu aparecimento, todavia, passou a preocupar os blocos, principalmente o ocidental, pois o movimento poderia afastar zonas importantes das regras do sistema internacional e da economia de mercado.
A Segunda Fase da Guerra Fria (1960-1973)
A ascensão da URSS como potência nuclear e sua capacidade de ataque aos americanos induz os EUA a procurar um entendimento que evitasse um conflito global. A questão dos mísseis em Cuba foi a última grande crise, a partir da qual a tensão não mais voltaria a tais níveis, passando ambos a desenvolver doutrinas próprias de influências regionais.
Além disso, o crescimento econômico europeu e a sua unificação em torno da CEE (UE) aumentou peso econômico e político desse bloco. Um inicial distanciamento da Inglaterra em relação à UE (formando a EFTA com países periféricos da Europa) coexiste com um distanciamento Francês da influência americana. O Japão, por sua vez, torna-se a locomotiva no mercado do pacífico, aceitando a hegemonia, mas mantendo autonomia em diversos pontos. Na América Latina, erros dos EUA permitem a vitória comunista em Cuba. O desenvolvimento econômico de países como o Brasil, permite que se este procure alargar a autonomia em relação aos americanos.
Há, portanto, uma tendência à criação de centros alternativos de poder, embora ainda aceitando a hegemonia americana, o que foi apressado pela inversão da balança comercial americana e diminuição de seu ritmo de crescimento.
Já a URSS tem dificuldade em modernizar sua economia, já que grande parte de seus recursos são canalizados para o setor militar, distanciando o país das novas técnicas da eletrônica e da informática que estavam na base do desenvolvimento japonês e alemão.
Dessa maneira, nos anos 60, o peso relativo dos EUA e da URSS diminui e enfraquece o sistema bipolar ocidental/oriental, com o afastamento de importantes aliados como a França e a China e uma multiplicação de organismos internacionais. Nessa década encerra-se o período das autonomias, com o surgimento de novos países e criação de sub-centros regionais de poder. Há transferência em larga escala, ao terceiro mundo, das indústrias ligadas à primeira revolução industrial, sendo que a explosão populacional e a questão ambiental tornam-se problemas.
O Arranque das “Revoluções Democráticas”
Até 1973, a economia mundial, movida pelas novas tecnologias, pela destruição causada na guerra e pela abertura de novos mercados, passou por um dos períodos mais prolongados de crescimento. Tal fato altera as estruturas sociais, passando o centro de contestação dos trabalhados industriais para aqueles do setor de serviço e os estudantes, que não tinham um discurso político claro. No centro do sistema surge uma ampla classe média e sociedades pós-industriais democráticas, com exigência de bem-estar bem superior àquele anterior a 1945
Assim, um conjunto de minicrises e a desaceleração das principais economias chega ao ápice com a crise do petróleo de 73, no que se seguiu períodos de estagnação ou baixo crescimento da economia mundial.
A Terceira Fase da Guerra Fria (1973-1991)
Marcada por um movimento de transição para regimes democráticos, essa fase determina a migração das indústrias tradicionais para os países periféricos, cujo desenvolvimento deve-se, primeiramente, pela busca de maiores rentabilidades e, posteriormente, por meio do aumento da dívida externa e investimento das transnacionais. Esse movimento de transferência deve-se à mão-de-obra barata, cuja vantagem para os países periféricos é anulada com aplicação de tecnologias produtivas pelos países centrais.
Estrangulados pela queda das exportações e pela pressão demográfica, vários países têm que renegociar sua dívida externa para não haver rotura do sistema. As maiores taxas de crescimento se dão em países como Brasil e China, porém às custas de um grande aumento da dívida externa, dos impactos ambientais e das populações urbanas em péssimas condições.
Com a derrota no Vietnã, os EUA passam por um período de crises internas, possibilitando um aumento da influência soviética em países tão diversos como a Angola, Etiópia, Nicarágua e Afeganistão. Já no governo Reagan, longe dos efeitos daquela guerra (Vietnã), os EUA iniciam um programa de rearmamento baseado em novas tecnologias, visando reestabelecer o equilíbrio por meio da recuperação da vantagem qualitativa, o que forçaria a URSS elevar os gastos militares e provocando mudanças internas no país.
A expansão soviética no período 73/77 leva-os a um impasse, pois o controle dos países periféricos exige um enorme esforço financeiro sem resultados estáveis, o que, para uma economia que já era apenas um terço da americana, resultava no impedimento de modernizar a sua própria sociedade. Todavia, o pior impacto foi ideológico, pois enquanto promovia a idéia libertação dos povos oprimidos, suas intervenções militares propagavam o contrário. Por exemplo, a invasão, com tropas próprias, do Afeganistão, país islâmico, gerou descrédito interno, mormente porque grande parte da população professava tal religião. Essas guerras periféricas, a partir de 1975, dão início ao colapso soviético.
Esses fatos, acrescidos da necessidade de gastos com a evolução quantitativa e qualitativa do arsenal militar, da queda das exportações, das revoluções democráticas e do surgimento de novas tecnologias que não domina resultam na menor capacidade de manutenção de sua esfera de influência e na diminuição da qualidade de vida de seus cidadãos.
Porém, a perda da força de mobilização da ideologia comunista, movimentos religiosos e o fim do “perigo externo” dão ponto final à capacidade soviética de responder aos problemas, gerando seu colapso. Não havia como lidar com todas essas questões ao mesmo tempo. Os dirigentes concluem, então, que a solução seria implementar reformas de fundo. Antes de ocorrer o colapso súbito, surge o reformista Gorbatchev, cujas reformas produziram uma dinâmica incontrolável que exigia sempre mais abertura, em um colapso gradual do sistema. Este ruiu a partir das esferas periféricas, não tardando a provocar pressões internas dos sindicatos, da Igreja e da classe média pela democratização.
O colapso final se dá com a queda do muro de Berlim, o desmonte do Império da URSS e a revolta da população pela democratização e melhoria do nível de vida, finalizando o sistema internacional da guerra fria e iniciando um longo período de transição para um novo sistema.
Conclusões do Escritor
Apesar das aparências, o sistema da guerra fria possuía apenas um centro, já que a URSS conseguiu um espaço de influência por possuir as armas nucleares e por se aproveitar do processo de descolonização. Todavia, foram os EUA que o estruturaram, até em razão da sua larga vantagem militar, tecnológica e econômica. Acabada a guerra fria, inicia-se um período de transição, com a manutenção da hegemonia americana, porém com peso relativo diferente daquele de 1945.
O autor entende, por fim, que podem ocorrer uma das três situações: a) renovação da hegemonia graças a uma nova revolução técnica; b) o desgaste da hegemonia e formação de um mundo multipolar; e c) formação de instituições transnacionais que alterem a regra do jogo.
Conclusões Pessoais
O Autor português oferece ao leitor uma visão panorâmica da evolução dos sistemas mundiais, iniciados pelas explorações marítimas de Portugal, tendo como principal mérito identificar ao leitor os mecanismos que regulam e determinam a formação das hegemonias e de que forma, cada região e cada país, insere-se na grande aldeia global.
Entender que a evolução científica e a criação de novas tecnologias estão na raiz da modificação das forças mundiais, permite uma visão mais aguçada sobre os movimentos das políticas externas dos países dominantes, bem como oferece a base da compreensão sobre o que são sistemas bipolares e multipolares.
Sem entregar um mapa minucioso das relações internacionais, a obra caminha por conceitos que lhe são básicos, mas que muitas vezes estão ocultos nas ações dos países, que procuram trabalhar suas áreas de influência utilizando como instrumento uma enorme quantidade de variáveis econômicas, bélicas e políticas.
Apesar de o livro ser uma junção de textos independentes, guarda uma unidade e uma correlação de informações que, no processo de transição a que vivemos, de sistema mundial e, quiçá, de época histórica, têm especial valor para uma constante análise pessoal do leitor quanto aos acontecimento contemporâneos, como a guerra do Iraque, a tecnologia nuclear no Irã e o ostracismo da América Latina.
Introdução
O Autor menciona, na introdução, a sua compreensão de que o Tratado de Tordesilhas e o Séc. XV têm tudo a ver com a Guerra Fria, tendo em vista que essa é resultado de um processo iniciado com aquele, que representa a formação do primeiro sistema mundial e reflete um sistema coerente de uma realidade vivida ainda hoje. Desta maneira, é necessário um amplo recuo histórico para compreensão de nossos tempos.
A evolução da ciência moderna permitiu ao homem abrir horizontes até então desconhecidos e criou-se uma percepção de que ele poderia dominar e explorar indefinidamente a natureza, o que hoje volta a ser questionável, em um regresso ao mundo pré-século XV. Igualmente, lembrando que foi a partir daquele século que se criaram os Estados-nações, hoje surgem um leque de outras formas de organizações no âmbito das relações internacionais. Outro aspecto, o cultural, reflete uma revitalização da diversidade em um mundo que parecia estar condenado à uniformidade básica.
Nesse contexto, os conceitos clássicos só respondem limitadamente aos novos problemas e o livro procura contribuir para compreensão do complexo processo histórico ocorrido nos últimos 500 anos.
Portugal e a Criação do 1° Sistema Mundial
Há quinhentos anos, com a assinatura do Tratado de Tordesilhas, as terras “por descobrir” foram divididas ao meio pelos reinos de Portugal e Castela, sendo a base do entendimento global que os permitiu exercer uma hegemonia naval bipartida, à volta do qual se articulou a peculiar relação de forças do primeiro sistema mundial, de onde se formou uma ampla rede de ligações multifacetadas e que alterou o cotidiano da humanidade.
O Papel de Portugal
No Séc. XV, o comércio transformava e Europa, sendo que as regiões no norte da Itália e dos Países Baixos eram pontos estratégicos de circulação de mercadorias e chave para domínio do continente. O Mediterrâneo era, então, a via do reduzido comércio intercontinental e os produtos transportados por via marítima para o norte da Europa passavam obrigatoriamente por Portugal, então uma zona periférica. Foi essa ligação com zonas exteriores à península que permitiu a formação da nacionalidade portuguesa de forma independente à Castela.
Naquele Século as redes continentais eram tênues e dependentes de múltiplos intermediários. Isso fazia com que o comércio só fosse possível de produtos de pequeno peso e volume, não perecível e de alto valor. Para nascer o primeiro sistema mundial seria necessário criar uma capacidade técnica até então inexistente: a navegação de grandes oceanos, longe das costas, e que abriria caminho à unidade econômica e cultural do planeta, o que confirma a regra de que cada sistema mundial possui uma ou várias técnicas decisivas e que condiciona sua relação de forças.
Vejamos: Dentre as quatro grandes redes de comércio marítimo existentes (Pacífico – Chineses; Índico – Árabes; Mediterrâneo/Atlântico – Italianos; Mar do Norte/Báltico – cidades do norte da Europa), nenhum possuía a técnica de navegação oceânica intercontinental (mais próximo a China).
O desenvolvimento dessa técnica coube ao pequeno Portugal, devido à necessidade de exploração da costa africana (lembrando que o avanço territorial continental de Portugal estava limitado pelo vizinho mais poderoso, a Espanha, e o caminho mais óbvio à expansão era a costa africana). Dentre os países mais propícios a explorar esse caminho (Península, França e Inglaterra), Portugal era o único que já havia consolidado a formação do Estado-nação (consciência nacional e concentração do poder real), o que o permitiu canalizar recursos para o aproveitamento do que melhor tinha nas técnicas de navegação providas pelos Árabe, pelo Mediterrâneo cristão e pelo norte da Europa, em um contexto em que o Estado tinha proeminência nesse processo.
Surgem, assim, os novos tipos de navios que vão abrir as rotas oceânicas, primeiramente com as caravelas (meados do Séc. XV) e, posteriormente, com as naus, que tinham capacidade de lidar com o grande volume de comércio, em um processo inovador e revolucionário. Essas embarcações são “o primeiro exemplo da evolução programada e gradual de um produto final (navio oceânico) que engloba em si um amplo conjunto de tecnologias, levada a cabo pelo Estado central para alcançar um objetivo de grande estratégia” (p. 22), processo este “inventado” por Portugal.
Além disso, Portugal adquiriu um conhecimento único dos sistemas de ventos do Atlântico sul e das Canárias, bem como das ciências náuticas, aproveitadas dos árabes e europeus, o que lhe concedeu uma superioridade que garantia o monopólio do caminho à Índia. O Controle da costa marroquina e dos arquipélagos do Atlântico, por onde passavam todas as grandes rotas do 1° sistema mundial e era “ponto de encontro de todos os regressos”, também teve papel central. Essas colônias serviram de “laboratório” para os processos de colonização que depois seriam transplantados para o Brasil.
Em síntese: Um pequeno poder concentra recursos por quase um século (XV) no desenvolvimento de uma capacidade técnica para concretizar uma estratégia própria, sem concorrência dos mais poderosos, já que estes não perceberem a importância do comércio da costa africana. A vantagem técnica de Portugal permitiu, então, amarrar Castela em um acordo Global (nascimento dos poderes globais) que dividiu o mundo ao meio.
Os Equilíbrios do 1° Sistema Mundial
O Tratado de Tordesilhas resulta em um grande salto qualitativo, onde pela primeira vez há uma interligação regular entre os continentes, gerando alterações migratórias, inclusive de vegetais e animais, que geram, por exemplo, a quase aniquilação de populações inteiras no continente americano.
Todavia, impressiona o fato de Portugal ter mantido, por mais de um século, a hegemonia oceânica. O país possuía um exército minúsculo perto das maiores potências européias. Ocorre que essas lutavam entre si pelo domínio do centro do sistema europeu, empenhando aí todas as suas forças (e que foi responsável por uma imensa revolução militar e pela formação dos Estados-nação). Sem as guerras decorrentes dessa disputa, haveria maior empenho na conquista do poder oceânico e Portugal não poderia oferecer resistência.
O poder português baseava-se, assim, em dois pilares: controle das grandes rotas com recursos mínimos e o não envolvimento em guerras permanentes. Isso era possível pela sua vantagem técnica e a falta de interesses dos poderes em disputar a hegemonia naval. Já a Espanha, único potencial concorrente do controle oceânico, concentra seus esforços pelo controle do mar mediterrâneo, envolvendo-se em dezenas de guerras e enfrentando poderosos adversários, inclusive os Turcos (vantagem para Portugal, já que os mesmos poderiam perturbar o controle português no Índico), o que permite ao pequeno país de Portugal ser o grande poder naval oceânico do 1° sistema mundial.
A Espanha, percebendo a rentabilidade do ouro e da prata na América, prefere respeitar o Tratado de Tordesilhas, o que o permite manter controle sobre o Atlântico sem retirar forças que combatiam os Turcos e os Franceses.
Nasce um novo processo de exploração marítima com os corsários, aventureiros particulares que, devido à inferioridade em relação às forças dos Estados, desenvolveram navios mais ágeis e renovaram a maneira de pensar o poder naval, tornando-se precursores das sociedades por ações e onde se desenvolveram muitas das técnicas de organização aplicadas futuramente às grandes companhias de comércio. Mas somente a partir dos anos 60 do século XVI que o grande domínio Ibérico começou a ser enfrentado por França e Inglaterra, uma vez afastada a hipótese de um único poder conquistar a hegemonia continental.
O Império do Mar Português
Os adversários de Portugal eram, inicialmente, os Turcos e, posteriormente, os corsários, ambos sistematicamente vencidos pelas naus que possuíam armamento mais desenvolvido. Assim, os portugueses, no Império Oriental, concentraram-se no controle das rotas comerciais oceânicas de longa distância, sem ter, contudo, preocupações de colonização, mantendo o monopólio das ligações intercontinentais por mar, que eles sabiam fazer. Era a carreira da Índia, linha vital do “império do mar” e responsável por mais da metade do comércio entre Europa e a Ásia, já que as linhas terrestres estavam em crise naquele período.
A Queda dos Poderes Ibéricos
A falta de concorrência durante a hegemonia naval oceânica ibérica faz com que Portugal e Espanha deixem de criar inovações das técnicas navais, o que se demonstrou ser fatal. Na Inglaterra, França e nas Províncias Unidas ocorre o contrário. Os Corsários desenvolveram navios rápidos e menores, com maior capacidade de artilharia, já que não precisavam carregar grandes cargas, o que os permite, fomentado pelos Estados de origem e em razão da superioridade técnica, iniciar um domínio da rotas marítimas.
Ademais, o poder econômico não coincidia com o poder naval, e a falência econômica dos poderes do sul (Portugal, Espanha e França) desenvolve uma rebelião dos países do norte, que encaravam a subordinação política e comercial como um peso desnecessário e prejudicial, já agora em uma situação em que a qualquer hegemonia continental estava afastada (liberando recursos para a disputa naval).
Na segunda metade do Séc. XVI surgem diversas lutas por autonomia política dos poderes do norte, o que passava pela disputa do comércio intercontinental e, portanto, ameaçando a hegemonia naval bipartida dos poderes ibéricos. Antes podendo se manter neutro, Portugal é incitado a se envolver nos conflitos, optando por unir-se à Coroa Espanhola para um longo embate naval com a Inglaterra e as Províncias Unidas.
Neste processo, além da evolução técnica, outros fatores, antes vantagens competitivas de Portugal, contribuíram para sua queda: seu antes pioneirismo do Estado-nação já era comum na Europa; e a criação de exércitos nacionais passou a ser realidade também em outros países.
O Estado português, na exploração do comércio marítimo, exercia um capitalismo de Estado, o que se tornou uma imensa desvantagem no final do Séc. XVI, já que a aristocracia burocrática formava uma máquina que não favorecia a inovação e a mudança. Enquanto isso, nos poderes do norte, a iniciativa privada (que geria o comércio como um negócio) é que toma a vanguarda e, diante de insucessos de combates no Índico, os erros eram discutidos e corrigidos, valorizando a técnica e a inovação.
Na gestão da Companhia das Índias Orientais Inglesa ou Holandesa, os indivíduos tinham ampla liberdade e eram selecionados por mérito, cujas decisões eram analisadas a posteriori e eventuais erros punidos severamente, ao contrário da máquina portuguesa.
Outro ponto se refere às transformações ecológicas que alteram os sistemas de forças durante o 1° sistema mundial, a exemplo do acesso a madeiras nobres para construção naval e a formação das primeiras plantações em larga escala. “Os poderes ibéricos eram verdadeiros aprendizes de feiticeiro. Iniciaram transformações de larga escala, na realidade, numa escala nunca imaginada, que acabaram por beneficiar sobretudo os adversários” (p. 51).
O Fim do 1° Sistema
O autor menciona como um período concreto de transição do 1° para o 2° sistema global aquele entre os anos de 1596 e 1606, com a formação das Companhias das Índias e as tentativas de colonização permanente inglesas e holandesas na América, dando especial importância na modificação do titular do poder naval e as técnicas decorrentes. O 2° sistema também começa com uma hegemonia bipartida (o que volta a acontecer entre 1914 e 1945 entre EUA e Inglaterra), mas nunca houve uma divisão oficial (Tordesilhas) e clara como dos países Ibéricos e que contribuiu para a inexistência de uma rivalidade global entre Espanha e Portugal, como se poderia esperar.
O Poder Naval nas Teorias do Sistema Mundial
As Teorias Clássicas do Equilíbrio Europeu
A atividade social e sua possível lógica de funcionamento em nível global é o o objeto das teorias sobre o sistema mundial, que surge nas cidades-Estados da Itália do Séc. XV , sob o auspício de evitar um poder dominante perturbasse a paz e o equilíbrio da região, princípio que foi transplantado a toda a Europa a partir do momento que se percebeu a impossibilidade de qualquer Estado dominar o continente. A teoria clássica do equilíbrio europeu baseia-se na idéia de que a Europa era o centro do mundo, bem como de que a Inglaterra e a Holanda (com o poder naval) funcionariam como fiel da balança no equilíbrio continental, concedentes-lhes papel especial na ordem internacional. “Os poderes navais tendiam a atuar como os guardas da diversidade, na procura de uma ordem aceita e reconhecida como necessária ao bem-comum” (p. 59).
As Teorias dos Sistemas Mundiais
Após a I Guerra Mundial muito se perguntou as razões para escalada de violência após um século estável e pacífico, buscando-se a resposta nas responsabilidades de governos ou estadistas. Outros basearam-na na alteração das regras do sistema internacional, desenvolvendo um novo campo do saber: a história das relações internacionais, principalmente na Inglaterra, gerando uma multiplicidade de organismos transnacionais, ficando evidente, já à época, que outras regiões, que não somente a Europa, também interessavam ao equilíbrio global.
Esse efeito é acelerado ao fim da II Guerra. Na França, a escola de Palestina desenvolveu teorias globais numa perspectiva multidisciplinar e integrada. Autores franceses, nas décadas de 60 e 70, postulam que a ordem vigente era corolário das regras básicas estabelecidas no Séc. XV, baseando suas teorias nas relações de domínio e dependência econômicos.
Nos anos 80, investigadores americanos e ingleses apresentam uma abordagem diferente, com ênfase nas relações de poder político, onde se inclui a estrutura econômica, mas não em nível determinante, na interpretação das estruturas relacionais globais.
A Criação do Sistema Mundial
Há consenso de que somente a partir do Séc. XV é que se pode falar em um sistema mundial. Tal ocorre porque antes as relações entre e intra continentes era pequena e não causava grandes impactos. Após a abertura das grandes navegações, o maior salto ocorreu qualitativamente e não quantitativamente, já que, além do aspecto comercial, o que mais se destacou foi uma “completa alteração da agricultura e dos hábitos alimentares de todas as regiões, a começar pela Europa, e uma ampla migração das formas de vida, animais e vegetais, sem esquecer os microorganismos” (p. 63). Isso ocorreu de tal maneira a criar uma rede de interdependência planetária baseada na revolução técnica e científica em escala gigantesca, sendo a maior delas a capacidade de navegação intercontinental, o que permite a definição de um sistema mundial.
Portugal que, como já visto, havia adquirido, a partir de uma estratégia nacional, capacidade naval inigualável, passou a ter que conviver, assim como todos os outros países poderosos, com novos problemas, como a escravatura de povos não-cristãos, o direito de colonizar, as regras de comércio e sua organização em escala planetária. As respostas aceitas internacionalmente sobre estes temas formaram o esqueleto da ordem mundial emergente. O sistema Ibérico de divisão de poder resultava, pois, em um equilíbrio tal que se considera a primeira expressão do conceito de “equilíbrio europeu”, protagonizado posteriormente pela Inglaterra, cujos conceitos eram semelhantes, porém com forma de aplicação distinta.
Nos primeiros sistemas globais os Estados que se colocam na vanguarda tecnológica criam capacidades que os fazem projetar seu poder a longa distância, determinando alianças para impor essa ordem de forças e gerando um sistema global, onde o poder naval desempenha papel hegemônico.
A Medida do Poder Naval
Como base nos estudos de Thompson e Modelsk, o Autor apresenta as considerações que se seguem. Tendo em conta de que até há 60 anos só havia ligação entre todos os continentes pelo oceano, vê-se a importância da análise do poder naval para avaliação das relações de poder entre nações. A partir de investigações estatísticas das forças navais nos últimos 500 anos, observou-se sua influência na determinação de 5 ciclos, dominados por Portugal no primeiro, Países Baixos o segundo, Inglaterra o terceiro e o quarto e, finalmente, EUA o quinto, ocorrendo a passagem dos ciclos por meio de “guerras globais”, a partir das quais um novo poder detentor de novas tecnologias estabelece alianças, reformula regras e consolida sua hegemonia, com concentração de mais de 50% do poder, o que somente se interrompe em razão de um novo ciclo.
Críticas à Teoria – Internas e Externas
O autor, apesar de conceder grande importância aos estudos de Thompson e Modelski, cujo ápice se deu na década de 80, critica alguns de seus pontos. Primeiramente, quanto ao estabelecimento de ciclos mais ou menos constantes de 120 anos (a própria idéia de ciclo é questionável porque a realidade social não é repetitiva). Em segundo lugar, considerar como elemento fundamental a força naval parece um erro, já que a revolução científica e técnica demonstra ser mais consetâneo (o papel do poder naval estaria, então, incluído).
Quanto ao desenvolvimento científico, o autor identifica três períodos: os Sécs. XV e XVI; a primeira Revolução Industrial, no Séc. XIX; e as sociedades pós-industriais e suas múltiplas tecnologias depois de 1945, os quais considera sistemas mundiais distintos. Assim, enquanto o sistema mundial modifica-se no final do Séc. XVI, a época histórica (mais vasta e englobante) mantém-se até a Revolução Industrial. O autor afirma, ainda, que as ondas de inovação são acompanhadas por uma redefinição das relações fundamentais de cada civilização (indivíduo com o coletivo/natureza/divino), conduzindo a uma nova fase do ecossistema mundial.
Não obstante concordar com Thompson e Modelski, ao considerar os aspectos de poder e política como sobreposto ao econômico, o Autor afirma que eles caem no extremo, desconsiderando este aspecto. Diz, então, que os pesos dos aspectos político, econômico ou ecológico são variáveis e relativos, conforme a época.
Ainda discordando de Thompson e Modelski, Telo sustenta que um grande poder responsável pelo equilíbrio de uma região também é importante para o equilíbrio global, ou seja, do sistema como um todo. Não fosse assim, o Império Otomano, p. ex., jamais alcançaria o estatuto de poder global. Do mesmo modo, seria um equívoco estabelecer a existência de um único poder hegemônico em cada “ciclo”, já que a realidade é complexa e não evolui sempre segundo um modelo, nem com fases certas e previsíveis.
Relativamente ao papel do poder naval a partir de 1945, este deixou de ser a expressão mais acabada do poder global, isso ocorrendo pelo surgimento das novas tecnologias e pelo aparecimento das armas nucleares. Além do que, o poder naval não pode ser medido exclusivamente em termos de navios capazes de controlar grandes rotas oceânicas, pois, como já dito, a realidade é mais complexa e não é expressa diretamente pelas séries estatísticas dos autores citados. As mudanças qualitativas demonstram que “é deturpador procurar avaliar a alteração da realidade global nos últimos cinco séculos através de um qualquer índice único” (p. 76).
Poder Naval, Sistemas Mundiais e Épocas Históricas
A realidade global é analisada por meio de três conceitos interligados: o a) sistema internacional; b) sistema mundial; e c) época histórica. Enquanto o primeiro é uma relação de forças minimamente estáveis entre os poderes globais e entre estes e a periferia, o segundo é a afirmação de uma hegemonia que possui ampla aceitação. Há uma tendência de pelo menos dois sistemas internacionais em cada sistema mundial, em um período inicial de hegemonia exclusiva ou bipolar e, na seqüência, um sistema multipolar. O terceiro, a época histórica, é marcado por inovações técnicas e científicas que alteram as sociedades, e cada uma pode ter um ou mais sistemas mundiais.
Nos últimos 500 anos tivemos três ondas de inovação: no Séc. XV, a época moderna; na revolução industrial, a época contemporânea; e na II Guerra Mundial, a pós-industrial. Isso se mostra na evolução do poder naval. Os navios do início do Século XIX não diferia radicalmente daqueles do Séc. XV e XVI. Todavia, poucas dezenas de anos depois, em razão da revolução industrial, surgiram novos navios com tal capacidade que apenas um exemplar seu seria capaz de derrotar toda uma esquadra do período anterior, isso em razão das novas armas e o uso do vapor.
A partir de 1945 ocorre algo semelhante, a ponto de um único SSBN de 1959 ser 100 vezes mais poderosa que toda a esquadra inglesa ao final da guerra. Essa mudança qualitativa é de tal ordem que altera as manifestações do poder global. A expressão do poder se dá, então, a partir da capacidade de manter um arsenal nuclear, causando uma subversão das regras do jogo e que demonstra estarmos diante de uma nova época histórica.
Portugal, pioneiro na expressão moderna do poder naval, entendeu que o “império do mar” não dependia de aspectos quantitativos econômicos, mas qualitativos técnicos, sendo aqueles resultados do processo e não sua condição prévia (não são os quantitativos que fazem a diferença). O país soube, no Séc. XV, inovar mais rapidamente, criando um diferencial de qualidade que o fez poderoso. É isso que faz a diferença.
A II Guerra Mundial: Porta de Entrada no Mundo Atual
I - A II Guerra como Transição entre Sistemas Mundiais
O Autor acredita que se pode considerar a II Grande Guerra como a fim da Idade Contemporânea, estabelecendo um novo Sistema Mundial. Verifica-se, primeiramente, a clara alteração do sistema internacional, antes multipolar desde o Séc. XIX, substituído por um sistema bipolar (a guerra fria), com hegemonia americana (supremacia no poder bélico, tecnológico e econômico).
Estudiosos acreditam que a I e a II Guerras Mundiais tendem a ser consideradas um só período de guerra, já que da primeira não surgiu um equilíbrio estável e duradouro. Esse período marcou a formação do sistema mundial que ainda vivemos, mas que já conheceu um segundo sistema internacional após a queda do muro de Berlim.
II – A II Guerra como Transição entre Épocas Históricas
A alteração de um sistema mundial não significa, necessariamente uma mudança de época histórica, já que esta é marcada por uma onda de inovações em todos os níveis da atividade social. O autor entende que II Guerra proporcionou tal alteração, passando o autor a demonstrar tal percepção, discorrendo sobre as Épocas Moderna, Contemporânea e Pós-Industrial.
A Época Moderna caracterizou-se, num processo de quase um século, pelos “descobrimentos”, pela Reforma e pelo Renascimento, com mudanças em todos os níveis, com criação da imprensa, armas de fogo e navios transoceânicos, na primeira fase da “aldeia global”. Houve migrações de animais e vegetais, fim de civilizações e criação de uma economia mundial, em uma das maiores mudanças que a humanidade já conheceu.
Uma segunda onda de mudanças se dá com a revolução industrial e a utilização da máquina a vapor que, associada à uma guerra global (1792-1815) decorrente da Revolução Francesa, cria a crença na capacidade técnica do homem, por meio da qual se dominaria a natureza e se garantiria a felicidade coletiva.
Na opinião do Autor, há uma terceira vaga de mudanças associadas à II Guerra Mundial. Não que a própria guerra seja o motor desse processo. Ao contrário, é ela também um reflexo das inovações técnicas e científicas, que permitem a um poder ascendente contestar a hegemonia anterior, iniciando um período de guerra global. Essas inovações também são fatores fundamentais para determinar o vencedor, ainda que o inovador possa não conseguir manter a dinâmica do processo, dependendo a vitória final de um conjunto complexo de variáveis.
III – As Inovações da II Guerra Mundial
No período anterior à II Guerra Mundial, o Japão (organizando a esquadra em volta do porta-aviões) e a Alemanha (com suas divisões blindadas e táticas de guerra relâmpago) souberam melhor organizar os avanços tecnológicos que não eram originalmente seus, o que lhe possibilitou vencer inicialmente a guerra. Outros países tinham acesso às novas técnicas, mas foram eles que melhor compreenderam como se utilizar do pulo científico em curso. A inversão dessa tendência em favor dos aliados se deu justamente por terem copiado as organizações e táticas do eixo, aplicando-as com uma capacidade industrial e humana superior, e a vitória se deu pela formação de novas técnicas que só eles desenvolveram.
Assim, a bomba atômica, resultante de um gigantesco investimento, apresenta-se como o melhor exemplo do efeito demolidor que uma nova tecnologia radical pode gerar, mudando a forma como as guerras entre grandes poderes se desenvolvem e se resolvem. Nas armas daquela guerra estavam incorporadas um amplo conjunto de novas técnicas, em árias como a química (plástico, p. ex.) e a eletrônicas (computadores, p. ex.), demonstrando que estávamos perante uma notável onda de inovações científicas da humanidade.
IV – A Sociedade Pós-Industrial
Os aspectos mencionados acima constituem apenas um dos elementos que demonstram o início de outra época histórica. As estruturas sociais e políticas se alteram no curso da primeira metade do Séc. XX, desde a I Guerra. Como exemplo, no Pós II Guerra, o comunismo difere-se claramente daquele dos anos 30, bem como surgem movimentos nacionalistas na Ásia e na África, com origens na I Guerra. Além tecnologias como a televisão, o computador e o tecido sintético, atingem a maturidade, as mulheres buscam a igualdade e novos conceitos de família e educação aparecem. A ciência e a técnica articulam, portanto, um amplo leque de modificações interativas que justificariam o entendimento do surgimento de um novo sistema internacional, um novo sistema mundial e uma nova época histórica.
V – A II Guerra e a Europa
A Europa saiu altamente debilitada da guerra e, inclusive a Inglaterra, uma das três “vencedoras”, percebeu o fim de sua liderança mundial. Os EUA, tendo por política manter a Europa no sistema ocidental, estabeleceu programas de auxílio econômico e militar, iniciando a criação de organismos característicos da nova ordem, como a OCDE e a OTAN. Foi essa fraqueza que propiciou a gestação da Europa como conhecemos hoje, em negação à via da força e que demonstra a impossibilidade de uma hegemonia única se afirmar.
VI – A II Guerra e Portugal
Para Portugal, as mudanças decorrentes da guerra não se dá no mesmo ritmo do resto da Europa. Não por um destino do “secular atraso”, já que o país costumeiramente é arrastado pelo turbilhão político das grandes mudanças em razão de sua posição geográfica. As novas tecnologias demoram a chegar, mais por decisão política consciente, o que faz com que o país passe diretamente de uma sociedade agrícola para uma de serviços, sem conhecer o estágio industrial.
Na questão estratégica, o enfraquecimento da Inglaterra desfez um apoio externo que sustentava o país por longo tempo. O governo demorou a perceber a ascensão americana, além de ter preferido, em um primeiro momento, refutar a União Européia e qualquer situação de perda da soberania, em um resgate do Império como alternativa ao discurso liberal dominante no sistema ocidental. Disso resultou a Guerra colonial, que culminou na Revolução dos Cravos, que reestabeleceu a democracia no pais (perdida desde 1926).
Na questão econômica, o desenvolvimento se dá a partir de um dirigismo do Estado, diga-se ditatorial, que freia o crescimento (evitando abalos bruscos internos) e invade largas esferas da iniciativa privada.
No campo social, o meio rural assiste alterações do padrão de comportamento, com uma politização anormal, que se vira contra o Estado novo, decorrentes principalmente dos crescentes conflitos. O meio urbano, por sua vez, conhece ondas de greves com as quais o regime parecia que não iria resistir até o fim da guerra. O desabastecimento e aumento dos preços, entretanto, são minimizados pelos aliados, o que contribui para a derrota dos comunistas.
Outras mudanças sociais ocorreram, principalmente pela mistura cultural resultante dos imigrantes da guerra que se fixam no país e da invasão cultural, que mudam a mentalidade do povo. Com a necessidade de maior mobilização de efetivos durante a guerra, ocorre uma politização das forças (pela participação da classe média estudada nas tropas), o que exigiu uma posterior desarticulação pelo regime, deixando, contudo, sementes ao chão.
Como se vê, em Portugal, em decorrência da guerra, não houve uma mudança radical imediata como no sistema global. Esta, todavia, forçou a adaptação ulterior do país à nova ordem, provocando, ao cabo, o fim do Estado Novo.
O Sistema Internacional da Guerra Fria (1945-1991)
Sistemas Mundiais e Sistemas Internacionais
Repassando esses conceitos, lembra-se que “sistema mundial” é o conjunto de regras estáveis de convívio internacional, cujas soluções são normalmente oferecidas pelo poder hegemônico e que garantem seu domínio. Mesmo com o enfraquecimento do poder que o criou, só é colocado em causa e substituído quando surgem problemas de dimensão qualitativamente diferentes. Os sistemas mundiais podem possuir fases, os chamados sistemas internacionais, cujas alterações se dão em menor escala, principalmente quanto ao relacionamento entre os principais poderes e entre estes e a periferia.
Após 1945 cria-se o sistema mundial dominado pelos EUA, com um primeiro sistema internacional bipolar que existiu até 1991 – a guerra fria. Atualmente, estamos em período de transição, cuja duração, pode-se dizer, é imprevisível.
O Sistema Mundial da Hegemonia Americana
A II Guerra Mundial amadurece o desenvolvimento científico de uma série de tecnologias que altera as regras do jogo internacional, sendo a arma nuclear a mais significativa. Esta torna suicida os conflitos armados diretos entre os grandes poderes. O conflito, então, assume então indiretas em zonas secundárias ou confrontos diretos apenas nos campos político e econômico. Tal circunstância altera o processo de desenvolvimento dos ciclos mundiais. As guerras globais deixam, portanto, de ter um sentido estratégico.
Outra diferença ocorre na interdependência mundial em diversos âmbitos, em uma “aldeia global” decorrente de uma revolução nas comunicações. Apresentam-se as primeiras idéias de que os direitos ecológicos e do indivíduo não podem ser resolvidos pelos Estados-nação, propiciando uma proliferação de organismos internacionais que vêm alterar as relações internacionais, tanto regionais como globais.
A 1ª Fase da Guerra Fria
Os EUA saem da II Guerra com imensas vantagens quantitativas e qualitativas no campo econômico e militar sobre o resto do mundo, o que o permitiu balizar as novas instituições e regras de convívio internacional, bem como criar o sistema de comércio internacional. Manteve o monopólio nuclear até 1960-63, sempre buscando a formação de alianças que garantissem a economia de mercado.
Para garantir sua hegemonia, os EUA aturam, no pós-guerra, em duas frentes: a Europa e o Japão. Na Europa, visando evitar uma crise financeira, oferece-se o Plano Marshall, de rápido e grande sucesso, que garante a evolução de regimes democráticos e os faz compreender as vantagens da hegemonia que se avizinha, e que é completado pela criação da OTAN, a principal aliança defensiva daquele período. O guarda-chuva nuclear norte-americano permitiu que os europeus concentrassem recursos para recuperação de suas economias.
A aplicação do sistema ocidental no pacífico é mais complexa. Primeiramente, os EUA imaginaram a China como seu parceiro natural, o que foi obstado pela vitória dos comunistas em 1949. Os americanos, então, fomentam o renascimento econômicos do Japão para consolidar uma esfera de influência da economia de mercado na periferia oriental euro-asiática.
A URSS, entendendo esses movimentos como uma ameaça, canaliza seus recursos para o campo militar (principalmente nuclear) e para consolidação das suas zonas de influência no pós-guerra, uma vez que os americanos eram mais fortes em todas as vertentes e mantinham a hegemonia de forma indireta. Os russos, por não terem os mesmos recursos que permitissem a “persuasão econômica” das nações e seu povo, baseavam seu poder na ausência de regimes democráticos na sua esfera.
Esse sistema de rivalidade bipolar deságua na formação dos “dois mundos”, de matizes filosóficos e ideológicos distintos, onde cada lado se justifica pela existência do outro e pela “ameaça externa”. Eram, pois, “irmãos na paranóia”, uma paranóia consciente, controlada e até desejada.
Um fator importante no jogo das relações passou a ser o movimento de independências. Os países europeus, em regra, perceberam que evitá-las gerava uma radicalização das posições e abria espaço para os comunistas, no que a melhor saída seria uma libertação controlada. Ademais, alguns países (China, Índia etc) não se alinharam a qualquer dos blocos, sem contudo chegar a formar uma “terceira força”. Seu aparecimento, todavia, passou a preocupar os blocos, principalmente o ocidental, pois o movimento poderia afastar zonas importantes das regras do sistema internacional e da economia de mercado.
A Segunda Fase da Guerra Fria (1960-1973)
A ascensão da URSS como potência nuclear e sua capacidade de ataque aos americanos induz os EUA a procurar um entendimento que evitasse um conflito global. A questão dos mísseis em Cuba foi a última grande crise, a partir da qual a tensão não mais voltaria a tais níveis, passando ambos a desenvolver doutrinas próprias de influências regionais.
Além disso, o crescimento econômico europeu e a sua unificação em torno da CEE (UE) aumentou peso econômico e político desse bloco. Um inicial distanciamento da Inglaterra em relação à UE (formando a EFTA com países periféricos da Europa) coexiste com um distanciamento Francês da influência americana. O Japão, por sua vez, torna-se a locomotiva no mercado do pacífico, aceitando a hegemonia, mas mantendo autonomia em diversos pontos. Na América Latina, erros dos EUA permitem a vitória comunista em Cuba. O desenvolvimento econômico de países como o Brasil, permite que se este procure alargar a autonomia em relação aos americanos.
Há, portanto, uma tendência à criação de centros alternativos de poder, embora ainda aceitando a hegemonia americana, o que foi apressado pela inversão da balança comercial americana e diminuição de seu ritmo de crescimento.
Já a URSS tem dificuldade em modernizar sua economia, já que grande parte de seus recursos são canalizados para o setor militar, distanciando o país das novas técnicas da eletrônica e da informática que estavam na base do desenvolvimento japonês e alemão.
Dessa maneira, nos anos 60, o peso relativo dos EUA e da URSS diminui e enfraquece o sistema bipolar ocidental/oriental, com o afastamento de importantes aliados como a França e a China e uma multiplicação de organismos internacionais. Nessa década encerra-se o período das autonomias, com o surgimento de novos países e criação de sub-centros regionais de poder. Há transferência em larga escala, ao terceiro mundo, das indústrias ligadas à primeira revolução industrial, sendo que a explosão populacional e a questão ambiental tornam-se problemas.
O Arranque das “Revoluções Democráticas”
Até 1973, a economia mundial, movida pelas novas tecnologias, pela destruição causada na guerra e pela abertura de novos mercados, passou por um dos períodos mais prolongados de crescimento. Tal fato altera as estruturas sociais, passando o centro de contestação dos trabalhados industriais para aqueles do setor de serviço e os estudantes, que não tinham um discurso político claro. No centro do sistema surge uma ampla classe média e sociedades pós-industriais democráticas, com exigência de bem-estar bem superior àquele anterior a 1945
Assim, um conjunto de minicrises e a desaceleração das principais economias chega ao ápice com a crise do petróleo de 73, no que se seguiu períodos de estagnação ou baixo crescimento da economia mundial.
A Terceira Fase da Guerra Fria (1973-1991)
Marcada por um movimento de transição para regimes democráticos, essa fase determina a migração das indústrias tradicionais para os países periféricos, cujo desenvolvimento deve-se, primeiramente, pela busca de maiores rentabilidades e, posteriormente, por meio do aumento da dívida externa e investimento das transnacionais. Esse movimento de transferência deve-se à mão-de-obra barata, cuja vantagem para os países periféricos é anulada com aplicação de tecnologias produtivas pelos países centrais.
Estrangulados pela queda das exportações e pela pressão demográfica, vários países têm que renegociar sua dívida externa para não haver rotura do sistema. As maiores taxas de crescimento se dão em países como Brasil e China, porém às custas de um grande aumento da dívida externa, dos impactos ambientais e das populações urbanas em péssimas condições.
Com a derrota no Vietnã, os EUA passam por um período de crises internas, possibilitando um aumento da influência soviética em países tão diversos como a Angola, Etiópia, Nicarágua e Afeganistão. Já no governo Reagan, longe dos efeitos daquela guerra (Vietnã), os EUA iniciam um programa de rearmamento baseado em novas tecnologias, visando reestabelecer o equilíbrio por meio da recuperação da vantagem qualitativa, o que forçaria a URSS elevar os gastos militares e provocando mudanças internas no país.
A expansão soviética no período 73/77 leva-os a um impasse, pois o controle dos países periféricos exige um enorme esforço financeiro sem resultados estáveis, o que, para uma economia que já era apenas um terço da americana, resultava no impedimento de modernizar a sua própria sociedade. Todavia, o pior impacto foi ideológico, pois enquanto promovia a idéia libertação dos povos oprimidos, suas intervenções militares propagavam o contrário. Por exemplo, a invasão, com tropas próprias, do Afeganistão, país islâmico, gerou descrédito interno, mormente porque grande parte da população professava tal religião. Essas guerras periféricas, a partir de 1975, dão início ao colapso soviético.
Esses fatos, acrescidos da necessidade de gastos com a evolução quantitativa e qualitativa do arsenal militar, da queda das exportações, das revoluções democráticas e do surgimento de novas tecnologias que não domina resultam na menor capacidade de manutenção de sua esfera de influência e na diminuição da qualidade de vida de seus cidadãos.
Porém, a perda da força de mobilização da ideologia comunista, movimentos religiosos e o fim do “perigo externo” dão ponto final à capacidade soviética de responder aos problemas, gerando seu colapso. Não havia como lidar com todas essas questões ao mesmo tempo. Os dirigentes concluem, então, que a solução seria implementar reformas de fundo. Antes de ocorrer o colapso súbito, surge o reformista Gorbatchev, cujas reformas produziram uma dinâmica incontrolável que exigia sempre mais abertura, em um colapso gradual do sistema. Este ruiu a partir das esferas periféricas, não tardando a provocar pressões internas dos sindicatos, da Igreja e da classe média pela democratização.
O colapso final se dá com a queda do muro de Berlim, o desmonte do Império da URSS e a revolta da população pela democratização e melhoria do nível de vida, finalizando o sistema internacional da guerra fria e iniciando um longo período de transição para um novo sistema.
Conclusões do Escritor
Apesar das aparências, o sistema da guerra fria possuía apenas um centro, já que a URSS conseguiu um espaço de influência por possuir as armas nucleares e por se aproveitar do processo de descolonização. Todavia, foram os EUA que o estruturaram, até em razão da sua larga vantagem militar, tecnológica e econômica. Acabada a guerra fria, inicia-se um período de transição, com a manutenção da hegemonia americana, porém com peso relativo diferente daquele de 1945.
O autor entende, por fim, que podem ocorrer uma das três situações: a) renovação da hegemonia graças a uma nova revolução técnica; b) o desgaste da hegemonia e formação de um mundo multipolar; e c) formação de instituições transnacionais que alterem a regra do jogo.
Conclusões Pessoais
O Autor português oferece ao leitor uma visão panorâmica da evolução dos sistemas mundiais, iniciados pelas explorações marítimas de Portugal, tendo como principal mérito identificar ao leitor os mecanismos que regulam e determinam a formação das hegemonias e de que forma, cada região e cada país, insere-se na grande aldeia global.
Entender que a evolução científica e a criação de novas tecnologias estão na raiz da modificação das forças mundiais, permite uma visão mais aguçada sobre os movimentos das políticas externas dos países dominantes, bem como oferece a base da compreensão sobre o que são sistemas bipolares e multipolares.
Sem entregar um mapa minucioso das relações internacionais, a obra caminha por conceitos que lhe são básicos, mas que muitas vezes estão ocultos nas ações dos países, que procuram trabalhar suas áreas de influência utilizando como instrumento uma enorme quantidade de variáveis econômicas, bélicas e políticas.
Apesar de o livro ser uma junção de textos independentes, guarda uma unidade e uma correlação de informações que, no processo de transição a que vivemos, de sistema mundial e, quiçá, de época histórica, têm especial valor para uma constante análise pessoal do leitor quanto aos acontecimento contemporâneos, como a guerra do Iraque, a tecnologia nuclear no Irã e o ostracismo da América Latina.
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