Cap. 2 – Para uma concepção pós-moderna do direito
Como já dito, a gestão científica dos excessos e défices da modernidade Fez do conhecimento científico um regulador hegemônico que absorveu o potencial emancipatório do novo paradigma. Nesse contexto, o direito moderno assumiu a tarefa de garantir a ordem necessária ao capitalismo, passando a constituir-se um racionalizador de segunda ordem da vida social, uma espécie de substituto da cientifização da sociedade. A ciência, como racionalidade hegemônica produtiva, e a transformação do direito em direito estatal científico são os dois lados da mesma moeda, o que justifica o isomorfismo entre ciência e direito modernos. Esse processo teve início com a recepção do direito romano na Europa do século XII, que é o acontecimento mais determinante para a criação da tradição jurídica ocidental, constituindo-se em um extraordinário movimento intelectual, com adoção do Corpus Juris Civilis de Justiniano. Tal fato teve imenso impacto em uma sociedade feudal que vivia em uma situação de pluralismo jurídico, que tornavam o “sistema jurídico” complexo, pesado, caótico e arbitrário. Portanto, a recepção do direito romano era extremamente conveniente à classe nascente. Esse processo teve início na cidade italiana de Bolonha no século XII, cujos alunos de direito, como diplomatas, juízes etc, rapidamente espalharam pela Europa, fazendo do jurista um monopolizador da administração pública e do sistema judicial em todo o continente, levando ao fato de que, ainda no século XVI, o que se considerava como “empreendimento racional” não era a ciência, mas o direito. Por outro lado, o direito natural racionalista, ou jusnaturalismo, que justificou tanto o despotismo iluminado quanto a revolução francesa, tinha por objetivo a sistematização e racionalização do direito, baseado no ideal de Cícero de reduzir o direito a uma arte ou ciência. De qualquer forma, o que fica evidente é que o direito foi sempre constituído por uma tensão entre regulação (autoridade) e emancipação (razão).
O raciocínio desenvolvido merece considerações também acerca das teorias do contrato social, que se questionam de como é possível a criação de uma vida coletiva diante da individualidade da escolha humana. O Iluminismo buscou na idéia de contrato social a resposta para o questionamento. Para Rousseau, seria contraditório que o livre contrato resultasse na perda de liberdade, razão pela qual a vontade geral seria o exercício essencial de soberania inalienável. Assim, o Estado, como resultado da vontade geral, é potenciado por um princípio absoluto de legitimidade. Em todo caso, a obra de Rousseau demonstra o dilema iluminista de estabelecimento de uma regulação social que fomente, e nunca sufoque, a emancipação prometida da modernidade, de forma a equilibrar liberdade e igualdade, a autonomia e a solidariedade, a razão e a ética, a autonomia e o consentimento, em busca da racionalização da vida coletiva e individual. Tanto Hobbes quanto Locke e o próprio Rousseau admitem que as assimetrias macros de seus projetos, tais como soberano/cidadãos e consentimento/coerção, acabam por fracassar na vida real, antecipando esses autores a antinomia da universalidade do paradigma político-jurídico moderno e o mundo particularista do capitalismo divido por classes. Afinal, a complexidade do paradigma moderno se apresenta pelo fato do direito ser, ao mesmo tempo, vontade do soberano bem como consentimento e autoprescrição dos cidadãos.
De fato, a partir do século XIX, o paradigma da modernidade ficou associado ao desenvolvimento do capitalismo. Um primeiro período do capitalismo, o capitalismo liberal, induziu o Estado a minimizar ideais éticos de modo a ajustá-los às suas necessidades de regulação, transformando a soberania do povo na soberania do Estado-nação, guiado pela regra da maioria, enquanto o direito passou a ser um dócil instrumento de regulação do mercado, caracterizado pelo cientificismo e o estatismo. Por essa razão, o positivismo epistemológico da ciência e do direito são construções ideológicas destinadas a reter o progresso social unicamente ao desenvolvimento capitalista. Aliás, a dominação jurídica se legitima por um sistema racional de leis universais e abstratas provenientes do estado, que ordenam uma administração burocrática e profissional, aplicando à toda a sociedade uma justiça baseada na racionalidade lógico-formal. Pela exposição, percebe-se que o direito estatal cientificista apresentou-se como uma utopia automática de regulação social isomórfica à utopia da tecnologia criada pela ciência moderna, fazendo com que esse direito, inicialmente secundário à pacificação social, passasse a um artefato científico de primeira ordem. Todavia, um segundo período da modernidade surgiu, em geral chamado de capitalismo organizado, onde havia o reconhecimento, inicialmente, de que os défices de cumprimento de promessas era inevitável, para depois simplesmente eliminar a própria idéia de défice. É nesse segundo período que a gestão econômica e a gestão política capitalista levou a um novo modelo de regulação social, que se designou de fordismo, que se baseava na convergência do princípio do Estado e do mercado, redefinindo o paradigma político-jurídico, onde a solidariedade, a justiça e a igualdade somente era compatíveis com a autonomia, a identidade a liberdade na medida em que era realisticamente exeqüível em uma sociedade capitalista. Porém, a complexa rede de sistema sociais exigiam, para o equilíbrio dos défices e excessos do desenvolvimento econômico e social, um campo jurídico potencialmente infinito, o que se mostrou uma utopia jurídica que simbolizava, simetricamente, um novo conceito de caos e de ordem. O Estado é quem ofereceu a “condição inicial” de ordem epistemológica para o funcionamento do direito nas sociedades capitalistas, situação que sofreu uma erosão nesse segundo período em razão da inadequação daquela utopia, fazendo com que o direito deixasse de ser legitimador do Estado para ser seu instrumento, lançando-se, assim, as sementes de sua banalização. Nas últimas três décadas o modelo fordista se deteriorou, assim como o Estado-Providência, representando uma época que pode ser designada como capitalismo desorganizado, um período de transição não só de um regime capitalista por outro, mas também de uma ampla modificação do paradigma societal. Este terceiro período é particularmente caracterizado pela sobreposição, no pilar da regulação, do princípio do mercado sobre os do Estado e da comunidade, decorrente do grande crescimento dos sistemas mundiais de produção e comércio, que minou a capacidade do Estado de regular o mercado interno, parecendo colocar a perder o estatuto do Estado como unidade privelegiada de análise e prática social. Nesse sentido, os Estados periféricos estão cada vez mais constrangidos pelo capital internacional controlados por organizações controladas a partir dos estados centrais, levando aos países em desenvolvimento uma crise do Estado-Providência sem que os mesmos os tivesse verdadeiramente experimentado. Essa deficiência do Estado parece apontar para o fortalecimento de um terceiro setor, localizado entre o Estado e o mercado, que organize a produção e reprodução de movimentos sociais e organizações não-governamentais que difundam uma nova solidariedade que não pode ser suprida pelo mercado nem pelo Estado pós-intervencionista. Até porque a submissão de histórias e formas de vida concretas a uma burocratização abstrata de uma regulação jurídica estatal, apesar de visar a integração, promove a desintegração social. Esse direito Estatal moderno está, portanto, indiscutivelmente em crise, devido à sua redução à especificidade operacional de instrumento da intervenção do Estado, decorrente do cientificismo propagado pelo positivismo jurídico, que funcionou como um espelho que, simultaneamente, refletia e dissimulava o estatismo do direito. O problema, contudo, antes de ser técnico, é político, pois a escolha entre as diferentes possibilidades em geral não são feitas em razões de ordem técnica, mas baseados em considerações sobre o volume de recursos ou sobre o caráter mais ou menos participativo do desenvolvimento institucional, o que demonstra que as decisões finais envolvem o processo político como um todo. O verdadeiro debate deve se centrar, portanto, na questão da colonização e do papel do Estado-Providência, demonstrando que a utopia jurídica de engenharia social por meio do direito sugere uma avaliação política sobe o papel do Estado. A saída dessa crise é a obra mais progressiva da atualidade e determina um radical repensar sobre a ciência e o direito modernos, um repensar tão radical que pode ser concebido como um “des-pensar”.
A regulação social, no paradigma moderno, seria uma mera emanação das descobertas científicas sobre a ordem social, fazendo ser crível dizer que a crise da ciência é também a crise do direito, pois ambos evoluíram pari passu. A cientifização jurídica ocorreu para maximizar a operacionalidade do direito como instrumento não científico de controle social, mas como as pretensões epistemológicas do direito são derivados do conhecimento científico da sociedade, suas condições teóricas são subordinadas às condições sociais do poder jurídico. Aliás, a transformação social da modernidade capitalista se assenta em quatro grandes possíveis interpretações: a de que o capitalismo e o liberalismo triunfaram (Fukuyama); a modernidade é um projeto inacabado (Habermas); a de que a modernidade dobrou-se ao capitalismo, assumindo uma forma pós-moderna (Daniel Bell, Lyotard, Baudrillard); e de que a modernidade colapsou como projeto epistemológico e cultural, abrindo um leque de possibilidades futuras para a sociedade, inclusive um futuro não capitalista (pós-modernidade de oposição). Essas transições, contudo, tendem a durar longos períodos, às vezes por mais de um século, sendo que no presente caso a transição ocorre não apenas entre modos de produção, mas entre formas de sociabilidade em sentido amplo, inclusive nas dimensões econômica, social, política e cultural.
Retrospectivamente, observa-se que o Estado constitucional do século XIX foi construído como uma perfeita máquina de engenharia social, cuja constituição formal, mecânica e artificial lhe concederia força jamais antes alcançada por qualquer outra entidade política. O sistema mundial, assim como os processos gêmeos de naturalização do Estado e do direito Estatal, revelam estratégicas ideológicas e pragmáticas. Dessa maneira, o des-pensar do direito passa, necessariamente, pela separação do Estado e do direito, tendo por propósito demonstrar que nem só o Estado deteve historicamente o monopólio do direito, assim como nunca se deixou monopolizar por ele. Até porque a rejeição arbitrária de pluralidade de ordens jurídicas reduziu muito o potencial emancipatório do direito moderno. Essa pretensão de separação, contudo, não significa deixar de se reconhecer a centralidade do direito estatal no sistema inter-estatal, mas apenas questiona seu protagonismo como único ator em uma constelação de diferentes ordens jurídicas. Essa ordem jurídica monolítica possui um simbolismo tão forte e aceito pela cultura jurídico-política que pô-la em questionamento equivale a des-pensar o direito.
Na verdade, a dicotomia Estado/sociedade civil, com ajuda do direito, escondeu certas relações de poder na sociedade, pois a idéia do Estado como única forma de político jurídico não significou que não existissem outras formas de poder. Assim, formas relativamente democráticas de poder estatal passaram a coexistir com formas mais ou menos despóticas de poder social, sem que se questionasse a natureza democrática do regime político.
O que parece é que o sistema jurídico foi, para o Estado moderno, o garante da confiança em massa de a sociedade moderna precisa. Porém, tendo em vista que no sistema mundial os mecanismos nacionais de comando estão se degradando diante da intensificação das transações transnacionais, fez com que o questionamento dos sistemas jurídicos também desgastasse a credibilidade da confiança proporcionada pelo Estado. Para o sucesso do projeto, deve-se alertar que a separação do direito em relação ao Estado pode servir tanto a políticas progressistas quanto reacionárias. Por outro lado, essa proposta de separação, se houver pretensão de reconstrução do direito e da política em uma perspectiva pós-moderna de oposição, deve ser complementada por uma rearticulação do direito com a revolução, em um movimento conjunto e simultâneo. Essa proposta de aproximação com a revolução parece paradoxal, se levarmos em consideração o hábito de considerar direito e revolução como conceitos antagônicos. Contudo, a tradição jurídica ocidental foi marcada por revoluções recorrentes, de onde se originaram novos sistemas jurídicos que, após consolidados, negaram ou minimizaram o impacto da revolução anterior.
Em conclusão, pode-se afirmar que a racionalização da ordem social, como um equilíbrio entre regulação e emancipação, foi confiada à ciência que, tendo em vista insuficiências de conhecimento somente superáveis em longo prazo, teve que se socorrer do direito. A crise do direito, portanto, significa uma crise mais vasta do padrão normal de mudança social observado desde o século XIX, demonstrando que estamos entrando num período de transição paradigmática para uma sociabilidade pós-moderna ainda imprevisível, mas resultado de um longo processo de suspensão “anormal” das determinações sociais, criando riscos e inseguranças, mas também oportunidades para inovação e criatividade. Repensar o direito nessas circunstâncias exige a escavação de terrenos da tradição moderna em busca de memórias alternativas do futuro, a exemplo do Estado da república renascentista, que buscava o bem-estar geral de uma sociedade autogovernada.