27 de jun. de 2007

A Crítica da Razão Indolente - Cap. 2

Cap. 2 – Para uma concepção pós-moderna do direito

Como já dito, a gestão científica dos excessos e défices da modernidade Fez do conhecimento científico um regulador hegemônico que absorveu o potencial emancipatório do novo paradigma. Nesse contexto, o direito moderno assumiu a tarefa de garantir a ordem necessária ao capitalismo, passando a constituir-se um racionalizador de segunda ordem da vida social, uma espécie de substituto da cientifização da sociedade. A ciência, como racionalidade hegemônica produtiva, e a transformação do direito em direito estatal científico são os dois lados da mesma moeda, o que justifica o isomorfismo entre ciência e direito modernos. Esse processo teve início com a recepção do direito romano na Europa do século XII, que é o acontecimento mais determinante para a criação da tradição jurídica ocidental, constituindo-se em um extraordinário movimento intelectual, com adoção do Corpus Juris Civilis de Justiniano. Tal fato teve imenso impacto em uma sociedade feudal que vivia em uma situação de pluralismo jurídico, que tornavam o “sistema jurídico” complexo, pesado, caótico e arbitrário. Portanto, a recepção do direito romano era extremamente conveniente à classe nascente. Esse processo teve início na cidade italiana de Bolonha no século XII, cujos alunos de direito, como diplomatas, juízes etc, rapidamente espalharam pela Europa, fazendo do jurista um monopolizador da administração pública e do sistema judicial em todo o continente, levando ao fato de que, ainda no século XVI, o que se considerava como “empreendimento racional” não era a ciência, mas o direito. Por outro lado, o direito natural racionalista, ou jusnaturalismo, que justificou tanto o despotismo iluminado quanto a revolução francesa, tinha por objetivo a sistematização e racionalização do direito, baseado no ideal de Cícero de reduzir o direito a uma arte ou ciência. De qualquer forma, o que fica evidente é que o direito foi sempre constituído por uma tensão entre regulação (autoridade) e emancipação (razão).

O raciocínio desenvolvido merece considerações também acerca das teorias do contrato social, que se questionam de como é possível a criação de uma vida coletiva diante da individualidade da escolha humana. O Iluminismo buscou na idéia de contrato social a resposta para o questionamento. Para Rousseau, seria contraditório que o livre contrato resultasse na perda de liberdade, razão pela qual a vontade geral seria o exercício essencial de soberania inalienável. Assim, o Estado, como resultado da vontade geral, é potenciado por um princípio absoluto de legitimidade. Em todo caso, a obra de Rousseau demonstra o dilema iluminista de estabelecimento de uma regulação social que fomente, e nunca sufoque, a emancipação prometida da modernidade, de forma a equilibrar liberdade e igualdade, a autonomia e a solidariedade, a razão e a ética, a autonomia e o consentimento, em busca da racionalização da vida coletiva e individual. Tanto Hobbes quanto Locke e o próprio Rousseau admitem que as assimetrias macros de seus projetos, tais como soberano/cidadãos e consentimento/coerção, acabam por fracassar na vida real, antecipando esses autores a antinomia da universalidade do paradigma político-jurídico moderno e o mundo particularista do capitalismo divido por classes. Afinal, a complexidade do paradigma moderno se apresenta pelo fato do direito ser, ao mesmo tempo, vontade do soberano bem como consentimento e autoprescrição dos cidadãos.

De fato, a partir do século XIX, o paradigma da modernidade ficou associado ao desenvolvimento do capitalismo. Um primeiro período do capitalismo, o capitalismo liberal, induziu o Estado a minimizar ideais éticos de modo a ajustá-los às suas necessidades de regulação, transformando a soberania do povo na soberania do Estado-nação, guiado pela regra da maioria, enquanto o direito passou a ser um dócil instrumento de regulação do mercado, caracterizado pelo cientificismo e o estatismo. Por essa razão, o positivismo epistemológico da ciência e do direito são construções ideológicas destinadas a reter o progresso social unicamente ao desenvolvimento capitalista. Aliás, a dominação jurídica se legitima por um sistema racional de leis universais e abstratas provenientes do estado, que ordenam uma administração burocrática e profissional, aplicando à toda a sociedade uma justiça baseada na racionalidade lógico-formal. Pela exposição, percebe-se que o direito estatal cientificista apresentou-se como uma utopia automática de regulação social isomórfica à utopia da tecnologia criada pela ciência moderna, fazendo com que esse direito, inicialmente secundário à pacificação social, passasse a um artefato científico de primeira ordem. Todavia, um segundo período da modernidade surgiu, em geral chamado de capitalismo organizado, onde havia o reconhecimento, inicialmente, de que os défices de cumprimento de promessas era inevitável, para depois simplesmente eliminar a própria idéia de défice. É nesse segundo período que a gestão econômica e a gestão política capitalista levou a um novo modelo de regulação social, que se designou de fordismo, que se baseava na convergência do princípio do Estado e do mercado, redefinindo o paradigma político-jurídico, onde a solidariedade, a justiça e a igualdade somente era compatíveis com a autonomia, a identidade a liberdade na medida em que era realisticamente exeqüível em uma sociedade capitalista. Porém, a complexa rede de sistema sociais exigiam, para o equilíbrio dos défices e excessos do desenvolvimento econômico e social, um campo jurídico potencialmente infinito, o que se mostrou uma utopia jurídica que simbolizava, simetricamente, um novo conceito de caos e de ordem. O Estado é quem ofereceu a “condição inicial” de ordem epistemológica para o funcionamento do direito nas sociedades capitalistas, situação que sofreu uma erosão nesse segundo período em razão da inadequação daquela utopia, fazendo com que o direito deixasse de ser legitimador do Estado para ser seu instrumento, lançando-se, assim, as sementes de sua banalização. Nas últimas três décadas o modelo fordista se deteriorou, assim como o Estado-Providência, representando uma época que pode ser designada como capitalismo desorganizado, um período de transição não só de um regime capitalista por outro, mas também de uma ampla modificação do paradigma societal. Este terceiro período é particularmente caracterizado pela sobreposição, no pilar da regulação, do princípio do mercado sobre os do Estado e da comunidade, decorrente do grande crescimento dos sistemas mundiais de produção e comércio, que minou a capacidade do Estado de regular o mercado interno, parecendo colocar a perder o estatuto do Estado como unidade privelegiada de análise e prática social. Nesse sentido, os Estados periféricos estão cada vez mais constrangidos pelo capital internacional controlados por organizações controladas a partir dos estados centrais, levando aos países em desenvolvimento uma crise do Estado-Providência sem que os mesmos os tivesse verdadeiramente experimentado. Essa deficiência do Estado parece apontar para o fortalecimento de um terceiro setor, localizado entre o Estado e o mercado, que organize a produção e reprodução de movimentos sociais e organizações não-governamentais que difundam uma nova solidariedade que não pode ser suprida pelo mercado nem pelo Estado pós-intervencionista. Até porque a submissão de histórias e formas de vida concretas a uma burocratização abstrata de uma regulação jurídica estatal, apesar de visar a integração, promove a desintegração social. Esse direito Estatal moderno está, portanto, indiscutivelmente em crise, devido à sua redução à especificidade operacional de instrumento da intervenção do Estado, decorrente do cientificismo propagado pelo positivismo jurídico, que funcionou como um espelho que, simultaneamente, refletia e dissimulava o estatismo do direito. O problema, contudo, antes de ser técnico, é político, pois a escolha entre as diferentes possibilidades em geral não são feitas em razões de ordem técnica, mas baseados em considerações sobre o volume de recursos ou sobre o caráter mais ou menos participativo do desenvolvimento institucional, o que demonstra que as decisões finais envolvem o processo político como um todo. O verdadeiro debate deve se centrar, portanto, na questão da colonização e do papel do Estado-Providência, demonstrando que a utopia jurídica de engenharia social por meio do direito sugere uma avaliação política sobe o papel do Estado. A saída dessa crise é a obra mais progressiva da atualidade e determina um radical repensar sobre a ciência e o direito modernos, um repensar tão radical que pode ser concebido como um “des-pensar”.

A regulação social, no paradigma moderno, seria uma mera emanação das descobertas científicas sobre a ordem social, fazendo ser crível dizer que a crise da ciência é também a crise do direito, pois ambos evoluíram pari passu. A cientifização jurídica ocorreu para maximizar a operacionalidade do direito como instrumento não científico de controle social, mas como as pretensões epistemológicas do direito são derivados do conhecimento científico da sociedade, suas condições teóricas são subordinadas às condições sociais do poder jurídico. Aliás, a transformação social da modernidade capitalista se assenta em quatro grandes possíveis interpretações: a de que o capitalismo e o liberalismo triunfaram (Fukuyama); a modernidade é um projeto inacabado (Habermas); a de que a modernidade dobrou-se ao capitalismo, assumindo uma forma pós-moderna (Daniel Bell, Lyotard, Baudrillard); e de que a modernidade colapsou como projeto epistemológico e cultural, abrindo um leque de possibilidades futuras para a sociedade, inclusive um futuro não capitalista (pós-modernidade de oposição). Essas transições, contudo, tendem a durar longos períodos, às vezes por mais de um século, sendo que no presente caso a transição ocorre não apenas entre modos de produção, mas entre formas de sociabilidade em sentido amplo, inclusive nas dimensões econômica, social, política e cultural.

Retrospectivamente, observa-se que o Estado constitucional do século XIX foi construído como uma perfeita máquina de engenharia social, cuja constituição formal, mecânica e artificial lhe concederia força jamais antes alcançada por qualquer outra entidade política. O sistema mundial, assim como os processos gêmeos de naturalização do Estado e do direito Estatal, revelam estratégicas ideológicas e pragmáticas. Dessa maneira, o des-pensar do direito passa, necessariamente, pela separação do Estado e do direito, tendo por propósito demonstrar que nem só o Estado deteve historicamente o monopólio do direito, assim como nunca se deixou monopolizar por ele. Até porque a rejeição arbitrária de pluralidade de ordens jurídicas reduziu muito o potencial emancipatório do direito moderno. Essa pretensão de separação, contudo, não significa deixar de se reconhecer a centralidade do direito estatal no sistema inter-estatal, mas apenas questiona seu protagonismo como único ator em uma constelação de diferentes ordens jurídicas. Essa ordem jurídica monolítica possui um simbolismo tão forte e aceito pela cultura jurídico-política que pô-la em questionamento equivale a des-pensar o direito.

Na verdade, a dicotomia Estado/sociedade civil, com ajuda do direito, escondeu certas relações de poder na sociedade, pois a idéia do Estado como única forma de político jurídico não significou que não existissem outras formas de poder. Assim, formas relativamente democráticas de poder estatal passaram a coexistir com formas mais ou menos despóticas de poder social, sem que se questionasse a natureza democrática do regime político.

O que parece é que o sistema jurídico foi, para o Estado moderno, o garante da confiança em massa de a sociedade moderna precisa. Porém, tendo em vista que no sistema mundial os mecanismos nacionais de comando estão se degradando diante da intensificação das transações transnacionais, fez com que o questionamento dos sistemas jurídicos também desgastasse a credibilidade da confiança proporcionada pelo Estado. Para o sucesso do projeto, deve-se alertar que a separação do direito em relação ao Estado pode servir tanto a políticas progressistas quanto reacionárias. Por outro lado, essa proposta de separação, se houver pretensão de reconstrução do direito e da política em uma perspectiva pós-moderna de oposição, deve ser complementada por uma rearticulação do direito com a revolução, em um movimento conjunto e simultâneo. Essa proposta de aproximação com a revolução parece paradoxal, se levarmos em consideração o hábito de considerar direito e revolução como conceitos antagônicos. Contudo, a tradição jurídica ocidental foi marcada por revoluções recorrentes, de onde se originaram novos sistemas jurídicos que, após consolidados, negaram ou minimizaram o impacto da revolução anterior.

Em conclusão, pode-se afirmar que a racionalização da ordem social, como um equilíbrio entre regulação e emancipação, foi confiada à ciência que, tendo em vista insuficiências de conhecimento somente superáveis em longo prazo, teve que se socorrer do direito. A crise do direito, portanto, significa uma crise mais vasta do padrão normal de mudança social observado desde o século XIX, demonstrando que estamos entrando num período de transição paradigmática para uma sociabilidade pós-moderna ainda imprevisível, mas resultado de um longo processo de suspensão “anormal” das determinações sociais, criando riscos e inseguranças, mas também oportunidades para inovação e criatividade. Repensar o direito nessas circunstâncias exige a escavação de terrenos da tradição moderna em busca de memórias alternativas do futuro, a exemplo do Estado da república renascentista, que buscava o bem-estar geral de uma sociedade autogovernada.


A Crítica da Razão Indolente - Cap. 1

Cap. 1 – Da ciência moderna ao novo senso comum

A situação sócio-cultural contemporânea é caracterizada pela absorção do pilar da emancipação pelo da regulação, eis que a administração dos excessos e défices da modernidade foi confiada à ciência e ao direito. A hipercientificização do pilar da emancipação criou grandes promessas que ficaram por cumprir, demonstrando que a ciência, longe de diminuir excessos e défices, ajudou a renová-los e até mesmo agravar alguns. Em verdade, mesmo o pilar da regulação, entre seus três princípios – Estado, comunidade e mercado, este último se sobrepôs aos demais, levando, aliás, ao descrédito da própria regulação em razão dessas contradições internas, porém sem promover a emancipação.

Uma vez que a capacidade de ação não foi acompanhada pela previsão, as conseqüências da ciência acabam sendo menos científicas que a ação científica em si. Dessa maneira, é necessário uma volta à simplicidade, como fez Rousseau ao perguntar, com resposta negativa, se o progresso das ciências e das artes contribuiria para purificar ou para corromper nossos costumes. Portanto, a compreensão do impacto sócio-cultural da crise da ciência moderna exige um questionamento básico em relação à sua própria epistemologia.

O modelo de racionalidade científica moderna, global, exclui qualquer conhecimento que não siga seus princípios epistemológicos e regras metodológicas, e desconfia de evidências da experiência imediata, que entende vulgar e ilusórias. A ciência moderna, portanto, além de distanciar a natureza do ser humano, busca na matemática e na lógica seus instrumentos privilegiados de análise, visando prever comportamento futuro dos fenômenos. Entretanto, o determinismo mecanicista resultante desse processo levou menos à compreensão do real e mais à sua dominação e transformação, combinando com os interesses de uma burguesia que via na sociedade, que começava a dominar, um estágio final de evolução da humanidade. O estudo mecanicista da sociedade, decorrente da idéia de que se poderia descobrir as leis da sociedade da mesma maneira que as da natureza, pode ser distinguido em duas vertentes: uma que aplicasse todos os princípios metodológicos e epistemológico da ciência natural; e outra que reivindica estatuto próprio, com base nas especificidades do ser humano. A primeira vertente precisa reduzir os fatos sociais, como pretendia Durkheim, às suas dimensões externas, observáveis e mensuráveis. A segunda busca o conhecimento intersubjetivo em métodos qualitativos e não quantitativos, que sejam descritivos e compreensivos, em uma concepção antipositivista. Todavia, ambas concepções, em última análise, pertencem ao paradigma da ciência moderna, ainda que a segunda represente um sinal de crise e contenha alguns componentes da transição para um novo paradigma científico.

A crise da racionalidade científica moderna é evidente, resultado interativo de uma série de condições. Após a euforia da ciência no Séc. XIX e sua aversão à filosofia, como demonstra o positivismo, chegamos a um momento que desejamos muito termos, além do conhecimento das coisas, um conhecimento de nós mesmos, além de pretender-se que condições sociais e culturais passem a ter relevância nas investigações científicas. Essas reflexões epistemológicas fazem questionar o conceito de lei e de sua causalidade, demonstrando versar mais sobre conteúdo do conhecimento científico do que sobre sua forma. Isso porque o rigor científico, fundado na matemática, quantifica e que, ao quantificar, desqualifica, objetivando os fenômenos deforma a degradá-los e desqualificá-los, de maneira a, ao afirmar a personalidade do cientista, destrói a da natureza.

Deve surgir, portanto, um novo paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente, demonstrando-se que a nova revolução científica é estruturalmente diferente daquela do Séc. XVI, pois na modernidade se encontra tudo o necessário para a solução dos seus excessos e défices, menos a própria solução, principalmente em razão de ter-se negligenciado o princípio da comunidade e a racionalidade estético-expressiva. Quanto ao princípio da comunidade, a participação e solidariedade são dimensões pouco colonizados pela ciência, sendo que, em relação à participação a colonização ocorreu, principalmente, pela limitação da esfera pública unicamente à cidadania e democracia representativa. Deve-se, assim, buscar um novo desequilíbrio, dessa vez em favor da emancipação em relação à regulação, eis que a pós-modernidade de oposição significa justamente esta cumplicidade epistemológica do princípio da comunidade e da racionalidade estético-expressiva.

É importante lembrar que a modernidade implica em uma articulação dinâmica entre o pilar da regulação e da emancipação, ficando o equilíbrio confiado à racionalidade moral-prática, à racionalidade estético expressiva e à racionalidade cognitivo-instrumental. Porém, nos últimos duzentos anos, esta última se impôs às outras duas, de forma que o estado de saber no conhecimento-emancipação passou a ser o estado de ignorância no conhecimento-regulação, e vice-versa. Como contraposição, deve-se considerar que o caos convida-nos à prudência, cujo princípio exige duas coisas: que, perante nossa incapacidade de previsão, privilegiemos as conseqüências negativas, não como uma visão pessimista, mas como estratégia epistemológica que possibilita desequilibrar o conhecimento em favor da emancipação; e que se revalorize a solidariedade, que converte a comunidade como campo privilegiado do conhecimento emancipatório. Assim, a opção epistemológica mais adequada ao momento de transição paradigmática é aquela que reinventa uma tradição marginalizada da modernidade ocidental: o conhecimento-emancipação.

Por outro lado, não há como não se considerar que toda natureza é cultura, tendo como conseqüência que, gradualmente, todas as ciências serão consideradas ciências sociais, já que, hoje em dia, não se diferencia natureza e cultura. Essa consideração permite perceber, nesse sentido, que a ciência moderna também é ocidental, capitalista e sexista. Por exemplo, pode-se observar que o princípio da seleção natural é uma história de progresso, expansão, invasão e colonização, constituindo-se praticamente uma história natural do capitalismo. Estudos feministas, por outro lado, demonstraram que as concepções científicas da natureza são construídas com base em princípios ocidentais e masculinos, como os da guerra, do individualismo, da concorrência e da agressividade. Como se pode observar, portanto, todo conhecimento científico-natural é científico-social. O conhecimento no paradigma emergente, no entanto, tende a ser não dualista, superando distinções tomadas como óbvias: vivo/inanimado, sujeito/objeto, natureza/cultura, subjetivo/objetivo etc, fazendo com que, à medida que as ciências naturais se aproximam das ciências sociais, estas aproximam-se das humanidades, fazendo com que a superação dessa dicotomia tenda a revalorizar os “estudos humanísticos”. Por todas essas razões, somente quando a ciência moderna tornar-se auto-reflexiva e perceba que essas intertextualidades são decorrentes de processos sociais cristalizados é que poderá transformar-se em projetos emancipatórios de um conhecimento pós-moderno.

O livro moderno da natureza foi construído, portanto, com base nos princípios do mercado e do Estado, utilizando a racionalidade cognitivo-instrumental, constituindo-se, em verdade, um livro de conhecimento-regulação. Nesse contexto, dois são os inimigos do conhecimento emancipatório pós-moderno: o monopólio e a renúncia de interpretação, que são combatidos pela proliferação de comunidades interpretativas, que não usam a cognição como instrumento, mas a política. Por essa razão, o conhecimento emancipatório, ao contrário da ciência de verdades objetivas, é construído com base na verdade retórica e discursiva. Aliás, a trajetória da própria retórica demonstra a colonização da racionalidade moral-prática do direito pela racionalidade científica, pois o direito sempre fora o campo favorito da retórica. Todavia, o positivismo jurídico determinaram o abandono da retórica pela ciência jurídica, a chamada “dogmática jurídica”. Assim, o conhecimento provável, decorrente de razoável argumentação, foi ultrapassado por um conhecimento científico exato. Todavia, já na década de 60 do Séc. XX, a retórica inicia sua reemergência. A retórica, aliás, é uma forma de conhecimento baseado em premissas prováveis para conclusões prováveis, que parte de premissas aceites que funcionam como ponto de partida, necessitando de um auditório relevante a ser convencido. Uma observação cuidadosa verificará, portanto, que ciência também é retórica – a retórica científica – que por utilizar apenas prova lógica, nega que é retórica. Afinal, a ciência, como ressalta Polanyi, possui métodos ambíguos que são aceites pela comunidade científica a partir de muitas premissas “tácitas” do conhecimento, demonstrando que a verdade científica é uma “verdade fiduciária” baseada na credibilidade dos cientistas, não havendo outra garantia “mais objetiva” que essa. Essa nova retórica, a retórica da ciência, deve ser suplantada e reconstruída para permitir a reinvenção do conhecimento-emancipação, fazendo com que a crítica radical à nova retórica leve a uma novíssima retórica, na busca de conhecimento prudente para uma vida decente. A novíssima retórica deverá potencializar a dimensão dialógica intersticial para permitir que o conhecimento progrida junto com o autoconhecimento.

Essas considerações demonstram que, a partir de uma dupla ruptura epistemológica, há necessidade de se procurar um novo senso comum para que o conhecimento-emancipação rompa com o senso comum conservador para transformar-se num senso comum emancipatório. Isso porque, deixado a si mesmo, o senso comum é conservador, demonstrando ser imprescindível o conhecimento-emancipação para passagem do colonialismo à solidariedade, enquanto, por outro lado, o conhecimento-emancipação só se concretiza quando se converte em senso comum. O novo senso comum, portanto, não despreza o conhecimento tecnológico, mas entende que ele deve traduzir-se em autoconhecimento e sabedoria de vida, integrando a prudência à nossa caminhada científica. O conhecimento emancipatório pós-moderno tem por princípio, dessa maneira, que emancipação somente ocorrerá se os tópicos básicos das relações sociais dominantes forem baseados em políticas de reconhecimento (identidade) e em políticas de redistribuição (igualdade), substituindo-se, em cada um dos seis campos de poder, a tópica da dominação pela emancipação. A construção desse novo senso comum possui como dimensões a solidariedade (dimensão ética), a participação (dimensão política) e o prazer (dimensão estética), visando substituir a racionalidade moral-prática moderna, que é baseada em uma ética antropocêntrica e individualista. Esse processo permitirá a construção de um novo senso comum político que seja participativo, pois a confinação do ideal democrático da política moderna à esfera pública limitou seu potencial emancipatório. Essa limitação, aliás, é um dos tópicos básicos do discurso político moderno, e sua superação, com a compressão política de todas as formas de poder, parece ser a melhor maneira de se lutar contra monopólios de interpretação sem renunciar à própria interpretação.

Pelo exposto, vê-se que a ciência, antes tida com a solução de todos os problemas, passou ela mesma a ser um problema, eis que os problemas sociais passaram a ter uma dimensão epistemológica no momento em que a ciência passou a estar na sua origem. Eis a razão pela qual se necessita de uma crítica da epistemologia hegemônica.

25 de jun. de 2007

Parte I - Introdução - A Crítica...

A Crítica da Razão Indolente - Boaventura de Souza Santos

Parte I

Epistemologia das estátuas quando olham para os pés: a ciência e o direito na transição paradigmática.

Introdução

As sociedades são as imagens de espelhos construídas por elas próprias para reproduzir suas identificações dominantes, assegurando as rotinas que as sustentam. Quanto mais o espelho é utilizado, mais adquire vida própria, passando de objeto trivial a super-sujeito, passando de espelho a estátua. Nesse caso, a sociedade entra em crise, uma crise da consciência especular. Entre os muitos espelhos, dois passaram a estátuas: a ciência e o direito.

O paradigma sócio-cultural moderno, que surgiu antes da dominação capitalista, provavelmente também acabará antes do fim do capitalismo. Essa transição, como todas, é semi-invisível e semicega, dificultando nomeá-la com exatidão, o que talvez justifique o uso do termo “pós-moderno”, autêntico em sua inadequação.

A atual transição paradigmática, por sua vez, permite um horizonte vasto de possibilidades de futuros alternativos, tanto quanto os que a própria modernidade viabilizou. A modernidade, contudo, possuía em sua matriz a semente de seu próprio fracasso: promessas incumpridas e défices irremediáveis. Nessas circunstâncias, já no Séc. XIX a ciência se apresentava como instância moral suprema, levando à colonização da racionalidade estético-expressiva pela idéia de emancipação científica e tecnológica da sociedade. Contudo, a administração dos défices e excessos da modernidade não se deu somente pelas mãos da ciência, já que o direito moderno teve uma participação subordinada, mas central, terminando por apresentar um isomorfismo com aquela por meio de experiências simbólicas de fusão e configurações combinadas de elementos.

Ao final, a versão prevalecente da modernidade foi uma dentre as várias possíveis. A obra busca, nesse sentido, conceitualizar um novo mapa de práticas emancipadoras, de forma a substituir o esgotamento da modernidade para este objetivo, neste importante momento de transição paradigmática.

24 de jun. de 2007

Crítica da Razão Indolente

A Crítica da Razão Indolente: Contra o desperdício da experiência

Boaventura de Souza Santos


Prefácio Geral

Estamos no ápice de um processo de degradação da tensão ente regulação e emancipação, que na modernidade capitalista se caracterizou pela preponderância de energias regulatórias. Trata-se de uma transição paradigmática, portanto de longo prazo, mas que no dia-a-dia é tratada como subparadigmática, pois as lutas sociais, para serem críveis, ocorrem no curto prazo. Essas lutas devem objetivar a expansão de espaços públicos não estatais visando republicizar o espaço estatal, hoje dominado por grupos privados, em um processo de radicalização da democracia.

Introdução Geral

Teoria crítica é aquela que não reduz a realidade ao que existe, acreditando ser possível encontrar alternativas do que é criticável no que existe. Todavia, como lembra Foucault, o poder panóptico da ciência moderna não permite uma saída dentro do sistema, uma vez que a própria resistência torna-se disciplinar, uma opressão consentida. A demonstração de que a ciência silencia sobre determinados assuntos viabiliza, por outro lado, a busca de “regimes de verdade” alternativos. A multiculturalidade, nesse sentido, permite uma hermenêutica de suspeição contra universalismos ou totalidades. Aliás, não há um princípio, uma teoria e agentes históricos únicos de transformação social, dominação e resistência. Como se vê, enfrenta-se problemas da modernidade para os quais não há soluções modernas. O caminho é a construção de uma teoria pós-moderna de oposição.

A modernidade apresenta duas formas de conhecimento: conhecimento regulação e conhecimento emancipação, sendo o caos a ignorância do primeiro e o colonialismo a ignorância do segundo.Um pensamento alternativo de alternativas, que não caia na armadilha do pensamento crítico moderno, deve partir da aceitação do conhecimento-emancipação, o que gera quatro conseqüências: a) substituir o monoculturalismo pelo multiculturalismo: deve-se superar o silêncio e a diferença, necessitando-se de uma teoria da tradução, que permita a ligação em rede de práticas emancipatórias finitas e incompletas; b) passagem da peritagem heróica ao conhecimento edificante: a ciência desenvolveu grande capacidade de agir mas pouca de prever. Por seu lado, o conhecimento-emancipação é alcançado assumindo-se as conseqüências de seu impacto; c) passagem da ação conformista à ação rebelde: a discussão na teoria crítica moderna baseada na dicotomia estrutura/ação foi absorvida pela epistemologia do conhecimento-regulação, distanciando da questão da solidariedade. Na verdade, a sociedade capitalista, fragmentada, plural e múltipla, cria campos de escolha de consumo que dão a impressão de exercício de autonomia e de libertação. A ação rebelde parece tão fácil que se transforma em conformismo alternativo. Assim, a transformação emancipatória passa pela promoção de subjetividades inconformistas e rebeldes; d) dicotomia espera/esperança: vivemos em uma sociedade de riscos indeterminados e inseguráveis, o que se traduz por uma espera sem esperança. O desafio da teoria crítica pós-moderna é assumir uma posição utópica, mais ativa e ambígua, oferecendo uma espera com esperança enquanto fomenta-se a transição, eis que as sociedades e as épocas mudam em razão do excesso de problemas em relação às soluções que tornam possíveis.

Em síntese, enquanto a modernidade reivindica o monopólio da idéia de uma “sociedade melhor”, o pós moderno de oposição busca um futuro melhor por meio de uma democracia radical, sem referência a universalismos abstratos que ocultem preconceitos. A obra, portanto, refere-se a uma abordagem pós-moderna de oposição, que articula a crítica da modernidade com a crítica da teoria crítica da modernidade.

Prefácio

Temos a sensação de estarmos vivendo entre um presente que quase acabou e um futuro que ainda não começou, em uma sociedade intervalar, de transição paradigmática. Neste livro analisa-se a natureza e os termos dessa transição.

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