27 de jun. de 2007

A Crítica da Razão Indolente - Cap. 1

Cap. 1 – Da ciência moderna ao novo senso comum

A situação sócio-cultural contemporânea é caracterizada pela absorção do pilar da emancipação pelo da regulação, eis que a administração dos excessos e défices da modernidade foi confiada à ciência e ao direito. A hipercientificização do pilar da emancipação criou grandes promessas que ficaram por cumprir, demonstrando que a ciência, longe de diminuir excessos e défices, ajudou a renová-los e até mesmo agravar alguns. Em verdade, mesmo o pilar da regulação, entre seus três princípios – Estado, comunidade e mercado, este último se sobrepôs aos demais, levando, aliás, ao descrédito da própria regulação em razão dessas contradições internas, porém sem promover a emancipação.

Uma vez que a capacidade de ação não foi acompanhada pela previsão, as conseqüências da ciência acabam sendo menos científicas que a ação científica em si. Dessa maneira, é necessário uma volta à simplicidade, como fez Rousseau ao perguntar, com resposta negativa, se o progresso das ciências e das artes contribuiria para purificar ou para corromper nossos costumes. Portanto, a compreensão do impacto sócio-cultural da crise da ciência moderna exige um questionamento básico em relação à sua própria epistemologia.

O modelo de racionalidade científica moderna, global, exclui qualquer conhecimento que não siga seus princípios epistemológicos e regras metodológicas, e desconfia de evidências da experiência imediata, que entende vulgar e ilusórias. A ciência moderna, portanto, além de distanciar a natureza do ser humano, busca na matemática e na lógica seus instrumentos privilegiados de análise, visando prever comportamento futuro dos fenômenos. Entretanto, o determinismo mecanicista resultante desse processo levou menos à compreensão do real e mais à sua dominação e transformação, combinando com os interesses de uma burguesia que via na sociedade, que começava a dominar, um estágio final de evolução da humanidade. O estudo mecanicista da sociedade, decorrente da idéia de que se poderia descobrir as leis da sociedade da mesma maneira que as da natureza, pode ser distinguido em duas vertentes: uma que aplicasse todos os princípios metodológicos e epistemológico da ciência natural; e outra que reivindica estatuto próprio, com base nas especificidades do ser humano. A primeira vertente precisa reduzir os fatos sociais, como pretendia Durkheim, às suas dimensões externas, observáveis e mensuráveis. A segunda busca o conhecimento intersubjetivo em métodos qualitativos e não quantitativos, que sejam descritivos e compreensivos, em uma concepção antipositivista. Todavia, ambas concepções, em última análise, pertencem ao paradigma da ciência moderna, ainda que a segunda represente um sinal de crise e contenha alguns componentes da transição para um novo paradigma científico.

A crise da racionalidade científica moderna é evidente, resultado interativo de uma série de condições. Após a euforia da ciência no Séc. XIX e sua aversão à filosofia, como demonstra o positivismo, chegamos a um momento que desejamos muito termos, além do conhecimento das coisas, um conhecimento de nós mesmos, além de pretender-se que condições sociais e culturais passem a ter relevância nas investigações científicas. Essas reflexões epistemológicas fazem questionar o conceito de lei e de sua causalidade, demonstrando versar mais sobre conteúdo do conhecimento científico do que sobre sua forma. Isso porque o rigor científico, fundado na matemática, quantifica e que, ao quantificar, desqualifica, objetivando os fenômenos deforma a degradá-los e desqualificá-los, de maneira a, ao afirmar a personalidade do cientista, destrói a da natureza.

Deve surgir, portanto, um novo paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente, demonstrando-se que a nova revolução científica é estruturalmente diferente daquela do Séc. XVI, pois na modernidade se encontra tudo o necessário para a solução dos seus excessos e défices, menos a própria solução, principalmente em razão de ter-se negligenciado o princípio da comunidade e a racionalidade estético-expressiva. Quanto ao princípio da comunidade, a participação e solidariedade são dimensões pouco colonizados pela ciência, sendo que, em relação à participação a colonização ocorreu, principalmente, pela limitação da esfera pública unicamente à cidadania e democracia representativa. Deve-se, assim, buscar um novo desequilíbrio, dessa vez em favor da emancipação em relação à regulação, eis que a pós-modernidade de oposição significa justamente esta cumplicidade epistemológica do princípio da comunidade e da racionalidade estético-expressiva.

É importante lembrar que a modernidade implica em uma articulação dinâmica entre o pilar da regulação e da emancipação, ficando o equilíbrio confiado à racionalidade moral-prática, à racionalidade estético expressiva e à racionalidade cognitivo-instrumental. Porém, nos últimos duzentos anos, esta última se impôs às outras duas, de forma que o estado de saber no conhecimento-emancipação passou a ser o estado de ignorância no conhecimento-regulação, e vice-versa. Como contraposição, deve-se considerar que o caos convida-nos à prudência, cujo princípio exige duas coisas: que, perante nossa incapacidade de previsão, privilegiemos as conseqüências negativas, não como uma visão pessimista, mas como estratégia epistemológica que possibilita desequilibrar o conhecimento em favor da emancipação; e que se revalorize a solidariedade, que converte a comunidade como campo privilegiado do conhecimento emancipatório. Assim, a opção epistemológica mais adequada ao momento de transição paradigmática é aquela que reinventa uma tradição marginalizada da modernidade ocidental: o conhecimento-emancipação.

Por outro lado, não há como não se considerar que toda natureza é cultura, tendo como conseqüência que, gradualmente, todas as ciências serão consideradas ciências sociais, já que, hoje em dia, não se diferencia natureza e cultura. Essa consideração permite perceber, nesse sentido, que a ciência moderna também é ocidental, capitalista e sexista. Por exemplo, pode-se observar que o princípio da seleção natural é uma história de progresso, expansão, invasão e colonização, constituindo-se praticamente uma história natural do capitalismo. Estudos feministas, por outro lado, demonstraram que as concepções científicas da natureza são construídas com base em princípios ocidentais e masculinos, como os da guerra, do individualismo, da concorrência e da agressividade. Como se pode observar, portanto, todo conhecimento científico-natural é científico-social. O conhecimento no paradigma emergente, no entanto, tende a ser não dualista, superando distinções tomadas como óbvias: vivo/inanimado, sujeito/objeto, natureza/cultura, subjetivo/objetivo etc, fazendo com que, à medida que as ciências naturais se aproximam das ciências sociais, estas aproximam-se das humanidades, fazendo com que a superação dessa dicotomia tenda a revalorizar os “estudos humanísticos”. Por todas essas razões, somente quando a ciência moderna tornar-se auto-reflexiva e perceba que essas intertextualidades são decorrentes de processos sociais cristalizados é que poderá transformar-se em projetos emancipatórios de um conhecimento pós-moderno.

O livro moderno da natureza foi construído, portanto, com base nos princípios do mercado e do Estado, utilizando a racionalidade cognitivo-instrumental, constituindo-se, em verdade, um livro de conhecimento-regulação. Nesse contexto, dois são os inimigos do conhecimento emancipatório pós-moderno: o monopólio e a renúncia de interpretação, que são combatidos pela proliferação de comunidades interpretativas, que não usam a cognição como instrumento, mas a política. Por essa razão, o conhecimento emancipatório, ao contrário da ciência de verdades objetivas, é construído com base na verdade retórica e discursiva. Aliás, a trajetória da própria retórica demonstra a colonização da racionalidade moral-prática do direito pela racionalidade científica, pois o direito sempre fora o campo favorito da retórica. Todavia, o positivismo jurídico determinaram o abandono da retórica pela ciência jurídica, a chamada “dogmática jurídica”. Assim, o conhecimento provável, decorrente de razoável argumentação, foi ultrapassado por um conhecimento científico exato. Todavia, já na década de 60 do Séc. XX, a retórica inicia sua reemergência. A retórica, aliás, é uma forma de conhecimento baseado em premissas prováveis para conclusões prováveis, que parte de premissas aceites que funcionam como ponto de partida, necessitando de um auditório relevante a ser convencido. Uma observação cuidadosa verificará, portanto, que ciência também é retórica – a retórica científica – que por utilizar apenas prova lógica, nega que é retórica. Afinal, a ciência, como ressalta Polanyi, possui métodos ambíguos que são aceites pela comunidade científica a partir de muitas premissas “tácitas” do conhecimento, demonstrando que a verdade científica é uma “verdade fiduciária” baseada na credibilidade dos cientistas, não havendo outra garantia “mais objetiva” que essa. Essa nova retórica, a retórica da ciência, deve ser suplantada e reconstruída para permitir a reinvenção do conhecimento-emancipação, fazendo com que a crítica radical à nova retórica leve a uma novíssima retórica, na busca de conhecimento prudente para uma vida decente. A novíssima retórica deverá potencializar a dimensão dialógica intersticial para permitir que o conhecimento progrida junto com o autoconhecimento.

Essas considerações demonstram que, a partir de uma dupla ruptura epistemológica, há necessidade de se procurar um novo senso comum para que o conhecimento-emancipação rompa com o senso comum conservador para transformar-se num senso comum emancipatório. Isso porque, deixado a si mesmo, o senso comum é conservador, demonstrando ser imprescindível o conhecimento-emancipação para passagem do colonialismo à solidariedade, enquanto, por outro lado, o conhecimento-emancipação só se concretiza quando se converte em senso comum. O novo senso comum, portanto, não despreza o conhecimento tecnológico, mas entende que ele deve traduzir-se em autoconhecimento e sabedoria de vida, integrando a prudência à nossa caminhada científica. O conhecimento emancipatório pós-moderno tem por princípio, dessa maneira, que emancipação somente ocorrerá se os tópicos básicos das relações sociais dominantes forem baseados em políticas de reconhecimento (identidade) e em políticas de redistribuição (igualdade), substituindo-se, em cada um dos seis campos de poder, a tópica da dominação pela emancipação. A construção desse novo senso comum possui como dimensões a solidariedade (dimensão ética), a participação (dimensão política) e o prazer (dimensão estética), visando substituir a racionalidade moral-prática moderna, que é baseada em uma ética antropocêntrica e individualista. Esse processo permitirá a construção de um novo senso comum político que seja participativo, pois a confinação do ideal democrático da política moderna à esfera pública limitou seu potencial emancipatório. Essa limitação, aliás, é um dos tópicos básicos do discurso político moderno, e sua superação, com a compressão política de todas as formas de poder, parece ser a melhor maneira de se lutar contra monopólios de interpretação sem renunciar à própria interpretação.

Pelo exposto, vê-se que a ciência, antes tida com a solução de todos os problemas, passou ela mesma a ser um problema, eis que os problemas sociais passaram a ter uma dimensão epistemológica no momento em que a ciência passou a estar na sua origem. Eis a razão pela qual se necessita de uma crítica da epistemologia hegemônica.

Um comentário:

MIGUEL DOS SANTOS GOMES disse...

BOM DIA RODRIGO. ESTOU PARA PARTICIPAR DO MESTRADO DE DIREITO AQUI PELA UERJ DO RIO DE JANEIRO. SOU NOVO NA AREA DE FILOSOFIA. SOU FORMADO EM DIREITO E EXERÇO A ADVOCACIA. TENHO 51 ANOS E GOSTARIA DEDICAR À VIDA ACADEMICA, SEJA DANDO AULA OU PESQUISANDO. UM DOS TEXTOS QUE ESTUDEI E ESTE DA CRITICA DA RAZAO INDOLENTE. O ACHEI MUITO COMPLICADO. VC TERIA COMO ME AJUDAR OU ME DAR DICAS PARA PARTICPAR DA PROVA.
AGRADEÇO DESDE JA PELA SUA ATENÇÃO. MEU E-MAIL É MIGUELGOMES@ADV.OABRJ.ORG.BR
MIGUEL SANTOS GOMES
ABRAÇOS

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