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5 de jul. de 2007

Capítulo 5 - A Crítica da Razão Indolente

Capítulo 5 – Os modos de produção do poder, do direito e do senso comum

Primeiramente, é de se dizer que a pluralidade de formas de direito, de poder e de conhecimento não é caótica, mas, ao contrário, é estruturada e relacional. Além disso, o conhecimento dessas pluralidades não colidem com o direito estatal, o poder estatal ou o conhecimento científico, pois confirma-os, ainda que os relativiza ao estabelecer formas mais vastas de constelações de ordens jurídicas, de poderes e de conhecimentos. Até porque, o enfraquecimento do poder do Estado não o torna menos fundamental para as funções políticas exigidas pelo sistema mundial.
O poder é sempre exercido em uma constelação de diferentes formas de poder combinadas. Entretanto, é necessário um princípio de estruturação do poder, pois se o poder está em todo lado, não está em lado algum, considerando-se que poder é, em sentido amplo, qualquer relação social regulada por uma troca desigual. Por essa razão, as relações de poder em nossas sociedades estão profundamente ligadas à desigualdade material, inclusive a educacional, pois esta tem o agravante de reduzir a capacidade representacional/comunicativa, significando limitação na defesa de interesses. Uma teoria crítica exige emancipação relativamente às relações de poder, já que a relação social é um exercício de poder na medida em que alguns conseguem impor a outros situações contrárias a seus interesses. Assim, uma relação emancipatória precisa se integrara uma constelação de práticas emancipatórias, pois assim haverá cada vez mais um número maior de relações cada vez mais iguais. Esse processo visa substituir o dualismo Estado/sociedade civil bem como debelar a especialização da política e do direito ligados unicamente ao Estado e a conseqüente separação entre direito e política.
As sociedades capitalistas que formam o sistema mundial possuem um mapa de estrutura-ação que se apresenta em seis espaços distintos: o espaço doméstico, o da produção, do mercado da comunidade, da cidadania e o espaço mundial. Cada espaço possui diferentes unidades de prática social, de instituições, de forma de poder, de forma de direito, de forma epistemológica e de dinâmica de desenvolvimento. Essa estrutura-ação é resultado de um longo processo histórico de relacionamentos entre poder, direito e conhecimento. A idéia básica é, portanto, tratá-los igualmente, sem os fundir em totalidades redutoras, destacando os fios da rede que os articulam, afastando-se, ainda, de uma análise centro-cêntrica ou ocidental-cêntrica. Nesse sentido, ao contrário, o Estado moderno buscou fundir os espaços da comunidade e da cidadania, não obstante o fato de que, na prática, o espaço da comunidade manteve-se como lugar autônomo de relações sociais. Ainda assim, o consumo deixou de ser um epifenômeno para se tornar um lugar estrutural de relações sociais e, portanto, de novas formas de poder, direito e conhecimento.
Relativamente ao mapa da estrutura-ação, conceitua-se como espaço doméstico o conjunto de relações sociais de produção e reprodução das domesticidades e do parentesco; o espaço da produção é o conjunto de relações sociais desenvolvidas em torno de processos de trabalho e relações entre produtores e entre estes e a natureza; o espaço do mercado é conjunto de relações sociais em torno de valores de troca e da satisfação mercadológica das necessidades; espaço da comunidade é o conjunto de relações sociais que ocorrem em torno de territórios físicos e simbólicos de identidades comuns; espaço da cidadania é o conjunto de relações que formam a esfera pública, onde se desenvolve a relação política entre cidadãos e o Estado . Esses espaços possuem uma dimensão institucional que se refere à reprodução de formas, procedimentos, aparatos e esquemas que organizam as relações sociais em seqüências repetitivas, estabelecendo padrões de normalidade e de senso comum. Por outro lado, os espaços se organizam em uma dinâmica de desenvolvimento, que determina a direção da ação social e normalidade da mudança social. Por fim, uma vez que os espaços estruturais funcionam em rede, as contradições parciais constituem campos sociais concretos que se relacionam com todos os outros campos.
Diferentes formas de troca desigual originam diferentes formas de poder. Assim, a reestruturação do capital em nível global exige um refinamento dos instrumentos analíticos que visem a compreensão das novas constelações de poder. Aliás, a dominação, que é a forma de poder do espaço da cidadania, é a única reconhecida pelas teorias liberal e marxista como gerado no sistema político centrado no Estado. Essa dominação é um poder cósmico, que aquele centrado no estado e limitado por relações burocráticas institucionalizadas, enquanto outras formas são poderes caósmicos, que são aqueles descentralizados e informais, exercidos por diversos microcentros de poder sem limites pré-definidos. Entretanto, as experiências de vida tendem a se reduzir à um desses componentes, dificultando a resistência contra o poder, que na realidade é resultado cósmico e caósmico simultâneo.
Em outro lado temos o direito, que é um corpo de procedimentos regularizados e de padrões normativos legitimados em um grupo, que visa a solução de litígios por meio de um discurso argumentativo, articulado e com ameaça de força. O direito estatal, que é a única forma de direito que se reconhece como tal, tende a se perceber como único representante do campo jurídico, não reconhecendo seu funcionamento em uma rede de direito mais vasta.
Esse direito territorial tem buscado gradualmente policiar as famílias por meio de uma série de intervenções, de forma que, hoje, o espaço doméstico é juridicamente constituído por uma articulação do direito doméstico e territorial. O direito da produção, vinculado ao mundo empresarial, refere-se aos regulamentos e padrões normativos que regulam as relações do trabalho, sendo, assim, um direito de comando, muitas vezes com características semelhantes às do direito militar. A sua relação com o direito estatal é uma articulação jurídica essencial nas sociedades capitalistas. Aliás, a desregulamentação do espaço da produção é a face visível do enfraquecimento do direito territorial. O direito do espaço do mercado é o direito da troca, regulando as trocas comerciais e, portanto, constelando-se com todas as outras formas, principalmente o estatal. O direito da comunidade é um dos mais complexos, uma vez que lida com situações diversas e, portanto, sua constelação é igualmente diversificada. O direito territorial ou direito estatal é aquele referente ao espaço da cidadania, sendo o direito central na maioria das ordens jurídicas. Ele tende a sobrestimar sua capacidade de regulação e, sendo derivado da dominação, é um direito cósmico, que se constela cosmicamente com todos os direitos caósmicos. Por fim, temos o direito sistêmico, vinculado ao espaço mundial, que organizam as relações dos Estados-nação no sistema inter-estatal, tendendo a ser forte em retórica e violência e fraco em burocracia.
Perceber a constelação de todos esses direitos é importante na medida em que demonstra sua vinculação com a vulnerabilização de certos grupos sociais, demonstrando a necessidade de resistência contra as ordens jurídicas, bem como explicita a exigência de uma constelação de práticas emancipatórias para que haja sucesso nessa luta, caso contrário uma luta isolada pode reforçar a regulação de outros espaços, anulando o resultado final do movimento.
Em relação às formas de conhecimento, é de se dizer que cada espaço estrutural constitui um senso comum específico e toda interação social é uma interação epistemológica e uma troca de conhecimento. Assim, não há na sociedade um único senso comum, mas seis grande sensos comuns e modos de produção de conhecimento-regulação. Eis porque todo conhecimento é parcial e local, limitado pelas relações sociais. Das formas de conhecimento, a ciência é aquela cega ao contexto, o que é a raiz do seu funcionamento cósmico, apesar de que, como essa cegueira somente é crível em um contexto específico, ela própria e contextualizada por conhecimentos caósmicos. Dessa maneira, a teoria crítica pós-moderna tem por tarefa promover argumentos emancipatórios e sensos comuns contra-hegemónicos em cada um dos espaços estrtururais, de maneira e expardir-se e tornar-se conhecimento-emancipação hegemônico. Para isso, não pode esquecer, sob pena de uma constelação ingênua, que, assim como o conhecimento emancipação, o conhecimento emancipação se desenvolve em uma constelação de conhecimentos.
A caracterização das sociedades se dá principalmente pelas fronteiras externas da sua limitação estrutural, pois é dentro desses limites que os espaços estruturais desenvolvem-se. Isto ocorre, primeiramente, por meio da fixação-de-fronteiras, que estabelece seus limites, e a abertura-de-novos-caminhos, que pode deslocá-los, constituindo tais dinâmicas a dimensão qualitativa dos espaços. Além disso, os espaços estruturais podem se desenvolver de forma quantitativa, ou seja, em alta o baixa tensão. Em alta tensão, o poder auxilia na organização da sociedade; em baixa tensão, subverte o processo de organização. Mais uma vez se vê que a luta anti-sistêmica deve levar em consideração a constelação das práticas sociais emancipatórias, exigindo-se criatividade e inovação para um conhecimento-emancipação menos dogmático, predisposto a superar incompletudes e epistemologicamente tolerante em relação aos conhecimentos parciais e locais e seus sensos comuns.
No espaço da cidadania há uma percepção de que somente o direito e o poder emanado e do Estado são considerados regras e política, respectivamente. Trata-se de um reducionismo que oculta de que o direito e o poder democráticos estatais funcionam em uma constelação com poderes e juridicidades em geral mais despóticos. Essa ocultação foi inculcada com sucesso em toda a sociedade, após o que não houve interesse em expandir os princípios jurídicos e democráticos do espaço da cidadania da modernidade aos demais espaços. Assim, o despotismo oculto permaneceu invisível, jamais sendo contrastado com o caráter relativamente democrático do direito e do poder no espaço da cidadania. Por essas razões, a “falsa consciência” do direito não se dá pela dificuldade de sua aplicação, mas em razão da construção social que estabelece o direito estatal como única forma de direito, situação nunca superada pela sociologia jurídica, ainda que crítica. Por isso, hoje as sociedades capitalistas são menos que democráticas, eis que o direito da cidadania, por mais democrático, constela com outras cinco formas de direito, em geral mais despóticos.
Em conclusão, pode-se afirmar que os espaços estruturais funcionam em uma complexa rede formada por seis dimensões. Esses espaços, ainda que autônomos, possuem uma dinâmica parcial que se movimenta na prática social e em constelação com outras dinâmicas parciais. As sociedades capitalistas, ainda que constituam uma articulação de seis modos de poder, de direito e de conhecimento, suprimem o caráter político, jurídico e epistemológico daqueles elementos quando não se formam a partir da dominação, do direito estatal e da ciência, respectivamente, o que determina a preponderância desses elementos em detrimento de uma imensa variedade de possibilidades existentes nos espaços estruturais. Isso é importante na medida em que o caráter político das relações sociais não ocorre somente no espaço de cidadania, mas em uma constelação das diversas formas de poder de diferentes espaços. Além disso, há a ocultação dessa limitação hegemônica existente por meio da dominação, do direito estatal e da ciência, levando à uma redução da política ao espaço da cidadania, da redução do direito ao direito estatal, e da redução do senso comum epistemológico ao conhecimento científico. Isso determina hábitos sociais, políticos e culturais, orientando a prática social, que se baseiam em premissas equivocadas. A identificação e a caracterização dessas constelações de regulação, que servem de meios de opressão das sociedades capitalistas, além da percepção da pluralidade de agentes e instrumentos sociais, podem contribuir para construção de um senso comum novo e emancipatório.

2 de jul. de 2007

A Crítica... Cap. 4

Cap. 4 – Para uma epistemologia da cegueira: por que razão é que as novas formas de “adequação cerimonial” não regulam nem emancipam

Há uma relação circular e empobrecida entre os fatos e a teoria, chamada de “adequação cerimonial” que determina o que é ou não normal. É fácil criticá-lo, mas é muito difícil criar uma alternativa credível para esse processo. Isso porque é simples identificar a cegueira dos outros, principalmente os do passado, porém o que dizemos hoje sobre a cegueira dos outros será visto, no futuro, como sinal de nossa própria cegueira. Por que pensamos ver plenamente o que vemos parcialmente? Vale a pena ver? A permanência da adequação cerimonial tem a ver com a conversão da ordem em saber colonialista e com a conversão da solidariedade em ignorância caótica. Para sair desse impasse há que se dar primazia ao conhecimento-emancipação sobre o conhecimento-regulação, implicando em que a solidariedade transforme-se em forma hegemônica de saber, bem como que se reconheça a positividade do caos como parte da ordem solidária.
Para compreender a representação dos limites da economia e das ciências sociais é útil fazer uso de ciências que se ocupam regularmente de situações extremas, a exemplo da arqueologia e da astronomia. Nelas é possível perceber que o primeiro limite à representação refere-se à determinação sobre o que é relevante, pois diferentes critérios são decorrentes de diferentes objetivos. Essa relevância do objeto é estabelecida sociologicamente, como produto de um fiat econômico disfarçado de evidência epistemológica. Para melhor compreensão desse processo, lembra-se que a regulação em grande escala (local) baseia-se na representação e na posição, enquanto a de pequena escala (mundial) baseia-se na orientação e no movimento. A escolha de uma ou de outra é uma decisão epistemológica, em uma convergência de interesses onde a economia cria a realidade que maximiza a eficácia da regulação que lhe favorece, de maneira a cobrir vastas regiões do globo e reduzir os pormenores e contrastes locais.
Por outro lado, estabelecida a relevância, deve-se estabelecer os graus de relevância, o que se faz por meio da perspectiva. A exemplo, as proporções de uma pintura, para que se alcance a verossimilhança da representação, parte de um ponto de vista fixo ideal que garante a proporção entre os objetos pintados e suas imagens. O pintor, portanto, pinta para um espectador ideal, construindo a ilusão da realidade e, portanto, de uma arte ilusionista. O cientista moderno age de forma semelhante, mas que acredita mais nas ilusões que cria do que o pintor. Uma vez que o pintor sempre colocou o espectador do lado de fora, conseguiu diferenciar entre o espectador ideal e o significativo, este sendo seu patrono. O cientista não foi capaz desta distinção, pois para ele tanto um quanto confundem-se em si próprio. A economia convencional foi onde mais drasticamente houve essa fusão, eis que tem em um único espectador privilegiado: o empresário capitalista, razão pela qual a fiança da economia passou a fazer parte da epistemologia científica moderna.
A questão da relevância passa, ainda, pela identificação do que é considerado relevante, o que ocorre por meio de dois processos: a detecção (traços de um fenômeno) e o reconhecimento (parâmetros de detecção e classificação). No primeiro predomina o nível da metodologia, enquanto no segundo predomina o nível da teoria. Assim, uma vez que o desenvolvimento dos métodos de pesquisa são mais desenvolvidos do que as teorias, principalmente nas ciências sociais, fica evidente que a capacidade de detecção excede a de reconhecimento. É na economia convencional que esse fosso se apresenta maior, pois ela intervém na vida social em modo de baixa resolução, mas legitima o funcionamento como se tivesse alta resolução.
O terceiro limite para uma adequação não cerimonial refere-se ao tempo e sua percepção. Isso porque os objetos somente podem ser considerados se determinados os seus espaços-tempos. Uma vez que essa identificação é difícil, a ciência tem buscado um enquadramento ilusório e arbitrário de simultaneidade entre sujeito e objeto, que leva à falácia da contemporaneidade, que parte da idéia de que um evento se distribui de forma igual entre os participantes de uma intervenção simultânea. Isso impede à economia convencional de identificar durações, ritmos, seqüências e relações entre sincronias e dessincronias, tendo duas conseqüências principais: a hiper-espacialização do tempo passado e as intervenções de alta velocidade.
O último limite da representação refere-se à interpretação e à avaliação, pois é através delas que os objetos são contextualizados na política e na cultura. Em verdade, a perspectiva renascentista foi conseguida pela imobilidade de uma visão única que caracteriza a ciência moderna, o que a afasta de qualquer conhecimento alternativo que não se adéqüe à imagem refletida no espelho. Assim, o privilégio epistemológico da ciência moderna é produto de um epistemicídio, com a destruição de conhecimentos e prática sociais, além da desqualificação de agentes, que tenham base em epistemologias alternativas. Essas alternativas rejeitadas são como entidades inexistentes, e a sociologia das ausências é um trabalho gigantesco justamente por necessitar de uma epistemologia das ausências que possui uma resolução pouco nítida.
As conseqüências da cegueira resultam em as representações distorcidas das conseqüências. É certo, de qualquer forma, que a imagem da ação científica é construída em pequena escala, a partir de uma visão única de um espectador privilegiado, com uma baixa resolução de identificação em razão do desequilíbrio entre métodos e teorias, havendo ainda uma distorção das temporalidades por uma falsa contemporaneidade entre camadas sociais, bem como uma baixa capacidade de perceber e aceitar práticas sociais alternativas.
Isso determina a necessidade de uma epistemologia da visão, que faz a pergunta pela validade partindo do colonialismo como ignorância e a solidariedade como saber. É um processo que se inicia com a epistemologia dos conhecimentos ausentes, que parte da premissa de que as práticas sociais são práticas de conhecimento, ainda que não se assentem na ciência. Esta, aliás, considerou o senso comum como superficial, ilusório e falso, tão-somente por não corresponder aos critérios epistemológicos estabelecidos pela ciência para si própria. Essas considerações demonstram uma saída baseada em uma dupla ruptura epistemológica: realizada a primeira, uma segunda é necessária, com a finalidade de tornar o conhecimento científico em um novo senso comum. Deve se basear, também, em uma epistemologia dos agentes ausentes, que é a demanda de subjetividades rebeldes contra práticas conformistas.
Desta forma, revisitando os limites da representação, é possível dizer que os critérios de relevância matematicamente estabelecidos tendem a deixar-se reificar pelo seu uso não problemático, enquanto a perspectiva curiosa produz ilusões que, em vez de imitar a sociedade, a reinventa. Somente uma constelação de conhecimentos, que proporcionem uma resolução cada vez maior, é que pode viabilizar esse projeto. Em todo caso, cada vez mais precisamos submeter as aplicações tecnológicas do conhecimento à contestação política e ética, por que assim alcançaremos um paradigma edificante de aplicação da técnica da ciência, um paradigma capaz de navegar, prudentemente, à vista das conseqüências.

1 de jul. de 2007

A Crítica da Razão Indolente - Cap. 3

Cap. 3 – Uma cartografia simbólica das representações sociais: o caso do direito
Ressalte-se, de início, que o direito é um conjunto de representações sociais que representam um modo específico de perceber a realidade, possuindo muita semelhança com os mapas, e tal como eles, é uma distorção regulada de territórios sociais.
Os mapas, para desempenhar suas funções, têm necessariamente que distorcer a realidade, o que fazem por meio de três mecanismos: a escala, a projeção e a simbolização. Vejamos algumas considerações básicas sobre a cartografia para posterior comparação ao sistema jurídico:
Os mapas são versões em miniatura da realidade, eis por que envolvem sempre uma decisão sobre os detalhes mais significativos a serem representados. Fácil perceber, então, que a decisão sobre a escala condiciona o tipo de mapa e vice-versa. Uma vez que cada fenômeno só pode ser representado em certa escala, mudá-la significa mudar o fenômeno a ser percebido. Nesse sentido, o poder busca representar a sociedade em uma escala que maximize as condições de reprodução de poder
Outro mecanismo de produção de mapas é a projeção, sendo que cada tipo diferente cria um campo de representação onde algumas inevitáveis distorções de várias características do espaço são feitas de acordo com regras conhecidas e precisas. A escolha da projeção, ainda que baseada em fator técnico, significa um compromisso ideológico com o uso a que se destina o mapa. Aliás, a cada período histórico ou tradição cultural, um ponto fixo serve como centro dos mapas, um espaço a que é atribuída uma posição privilegiada em torno do qual se dispersam os outros espaços.
A simbolização é o terceiro mecanismo de representação/distorção cartográfica. Nela se diferenciam os sinais icônicos e convencionais, sendo o primeiro sinais naturalísticos de relação de semelhança com a realidade, enquanto os segundos são mais arbitrários. Dependendo do uso de uns ou de outros, os mapas podem ser produzidos para serem vistos ou lidos.
A partir desses conceitos, pode-se estabelecer uma cartografia simbólica do direito, partindo da observação de que, ao contrário do que anuncia a filosofia política liberal e a ciência do direito, existem na sociedade várias formas de direito, sendo que o direito oficial, ainda que a mais importante, é apenas uma delas. Essa é a idéia essencial do pluralismo jurídico.
A relação do direito e a escala leva à evidência de que aquele opera unicamente segundo a escala do Estado, o que ocorre em três espaços: o local, o nacional e o global. O que difere estes espaços é o tamanho da escala, partindo da maior (local) para a menor (mundial), com que se regula a ação social. Essas diferentes ordens jurídicas, em diferentes escalas, a exemplo dos mapas, representam objetos jurídicos distintos, mas as práticas sociais não existem isoladas, mas interagem de diversas formas. Essas intersecções entre direitos de diversos espaços jurídicos são tão fortes que não se pode falar de legalidade, mas de interdireito e interlegalidade. Trata-se, portanto, de uma rede ações, que é uma seqüência interligada de ações determinadas por limites pré-definidos. Assim, a legalidade de grande escala (local) suscita redes de ações táticas e edificantes, enquanto a de pequena escala (mundial) suscita redes de ações estratégicas e instrumentais. Estabelece-se, por fim, patamares de regulação, que é o produto da combinação de três patamares: de detecção, que é o nível mínimo a ser objeto de regulação; de discriminação, que são as diferenças mínimias da ação social que justificam diferentes regulações; e de avaliação, referente às variação qualitativa suscetíveis de ganhar sentido na regulação. Estes três patamares variam de acordo com a escala, ainda que haja diferenças internas em cada patamar de regulação. O movimento, todavia, é o produto dos movimentos combinados e desiguais desses três patamares de regulação.
A forma de projeção cartográfica do direito permite a distinção da realidade social a ser regulada, pois diferentes projeções criam objetos jurídicos diversos, favorecendo certos interesses e concepções de solução de conflitos, em um processo que não é neutro. De acordo com a projeção aceita, cada ordem jurídica estabelece diferentes centros e periferias. Weber lembra que o direito surgiu como resultado de consensos de diferentes grupos de status, portanto, um direito voluntário, onde cada grupo ou indivíduo tinha uma qualidade jurídica própria que carregava onde fosse. A idéia de um direito aplicável a um certo território, independentemente das características de seus habitantes floresceu muito lentamente, tendo seu cume na Revolução Francesa, quando o Estado moderno se transformou em instituição coercitiva global e seu direito abstrato passou a ser aplicado a todos os indivíduos. Contudo, há evidências de que os meios contemporâneos de solução de conflitos têm sido regularmente construídos à margem do estado, o que é um sintoma de uma tensão entre o direito geocêntrico dos Estados-nação e o novo direito egocêntrico de agentes transnacionais.
A simbolização, que é a face visível da representação da realidade, permite a distinção de dois tipos ideais de simbolização jurídica: o estilo homérico e o estilo bíblico. O primeiro tem por característica a conversão do fluxo contínuo da ação social em uma sucessão de momentos descontínuos ritualizados, bem como é uma descrição formal e abstrata da ação social por meio de símbolos convencionais, referenciais e cognitivos. O segundo gera uma juridicidade imagética, descrevendo a realidade de forma a integrar as descontinuidades da ação social, fazendo-o por meio de sinais icônicos, emotivos e expressivos.
É dessa forma, utilizando um objeto comum como os mapas, que se busca trivializar o direito em busca de um novo senso comum jurídico. Em verdade, a fragmentação da realidade e da legalidade proposta pelo pluralismo jurídico não é caótica, mas regras de escala, projeção e simbolização de um universo ético e jurídico policêntrico. O cidadão comum, em razão da naturalização da cartografia do direito nacional estatal, tem dificuldades em reconhecer como jurídicas ordens normativas que usam princípios cartográficos distintos, fazendo com que um novo senso comum deva partir de uma concepção autônoma do que é o direito. Para isso, primeiramente é necessário analisar as práticas institucionais e quadros profissionais dominantes, que são os principais obstáculos epistemológicos do novo pensamento sociológico. Além disso é preciso revisar, sem dogmatismos sobre sua positividade ou negatividade, a escala, a projeção e a simbolização do direito, de maneira a integrar o formal e o informal. Por fim, deve-se proceder uma análise cuja cartografia equilibre análises estruturais e fenomenológica, de forma a estruturar no espaço simbólico as respostas adequadas à prática proposta.

A Crítica da Razão Indolente - Parte II - Introdução

Parte II – As armadilhas da paisagem: para uma epistemologia do espaço-tempo
Introdução
Os problemas da racionalidade moderna ocidental são decorrentes da confiança da administração de suas potencialidades pela ciência, que se transformou em força produtiva do capitalismo, bem como da confiança em um direito que foi apropriado pelo Estado e, por conseqüência, também pelos grupos sociais que controlam o Estado e que transformaram seus interesses em interesses nacionais.
A percepção de naturalidade de procedimentos dos sistemas de representação fazem com que a ciência e o direito se tornem invisíveis, mostrem sem se mostrarem. Eis que foi na luta contra a racionalidade estético-expressiva que eles se apresentaram como guardas de olhar arrogante da modernidade eurocêntrica. A cartografia simbólica, assim, pode ser uma excelente metáfora do direito, como um mapa cognitivo dos espaços de ordem e desordem.

27 de jun. de 2007

A Crítica da Razão Indolente - Cap. 1

Cap. 1 – Da ciência moderna ao novo senso comum

A situação sócio-cultural contemporânea é caracterizada pela absorção do pilar da emancipação pelo da regulação, eis que a administração dos excessos e défices da modernidade foi confiada à ciência e ao direito. A hipercientificização do pilar da emancipação criou grandes promessas que ficaram por cumprir, demonstrando que a ciência, longe de diminuir excessos e défices, ajudou a renová-los e até mesmo agravar alguns. Em verdade, mesmo o pilar da regulação, entre seus três princípios – Estado, comunidade e mercado, este último se sobrepôs aos demais, levando, aliás, ao descrédito da própria regulação em razão dessas contradições internas, porém sem promover a emancipação.

Uma vez que a capacidade de ação não foi acompanhada pela previsão, as conseqüências da ciência acabam sendo menos científicas que a ação científica em si. Dessa maneira, é necessário uma volta à simplicidade, como fez Rousseau ao perguntar, com resposta negativa, se o progresso das ciências e das artes contribuiria para purificar ou para corromper nossos costumes. Portanto, a compreensão do impacto sócio-cultural da crise da ciência moderna exige um questionamento básico em relação à sua própria epistemologia.

O modelo de racionalidade científica moderna, global, exclui qualquer conhecimento que não siga seus princípios epistemológicos e regras metodológicas, e desconfia de evidências da experiência imediata, que entende vulgar e ilusórias. A ciência moderna, portanto, além de distanciar a natureza do ser humano, busca na matemática e na lógica seus instrumentos privilegiados de análise, visando prever comportamento futuro dos fenômenos. Entretanto, o determinismo mecanicista resultante desse processo levou menos à compreensão do real e mais à sua dominação e transformação, combinando com os interesses de uma burguesia que via na sociedade, que começava a dominar, um estágio final de evolução da humanidade. O estudo mecanicista da sociedade, decorrente da idéia de que se poderia descobrir as leis da sociedade da mesma maneira que as da natureza, pode ser distinguido em duas vertentes: uma que aplicasse todos os princípios metodológicos e epistemológico da ciência natural; e outra que reivindica estatuto próprio, com base nas especificidades do ser humano. A primeira vertente precisa reduzir os fatos sociais, como pretendia Durkheim, às suas dimensões externas, observáveis e mensuráveis. A segunda busca o conhecimento intersubjetivo em métodos qualitativos e não quantitativos, que sejam descritivos e compreensivos, em uma concepção antipositivista. Todavia, ambas concepções, em última análise, pertencem ao paradigma da ciência moderna, ainda que a segunda represente um sinal de crise e contenha alguns componentes da transição para um novo paradigma científico.

A crise da racionalidade científica moderna é evidente, resultado interativo de uma série de condições. Após a euforia da ciência no Séc. XIX e sua aversão à filosofia, como demonstra o positivismo, chegamos a um momento que desejamos muito termos, além do conhecimento das coisas, um conhecimento de nós mesmos, além de pretender-se que condições sociais e culturais passem a ter relevância nas investigações científicas. Essas reflexões epistemológicas fazem questionar o conceito de lei e de sua causalidade, demonstrando versar mais sobre conteúdo do conhecimento científico do que sobre sua forma. Isso porque o rigor científico, fundado na matemática, quantifica e que, ao quantificar, desqualifica, objetivando os fenômenos deforma a degradá-los e desqualificá-los, de maneira a, ao afirmar a personalidade do cientista, destrói a da natureza.

Deve surgir, portanto, um novo paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente, demonstrando-se que a nova revolução científica é estruturalmente diferente daquela do Séc. XVI, pois na modernidade se encontra tudo o necessário para a solução dos seus excessos e défices, menos a própria solução, principalmente em razão de ter-se negligenciado o princípio da comunidade e a racionalidade estético-expressiva. Quanto ao princípio da comunidade, a participação e solidariedade são dimensões pouco colonizados pela ciência, sendo que, em relação à participação a colonização ocorreu, principalmente, pela limitação da esfera pública unicamente à cidadania e democracia representativa. Deve-se, assim, buscar um novo desequilíbrio, dessa vez em favor da emancipação em relação à regulação, eis que a pós-modernidade de oposição significa justamente esta cumplicidade epistemológica do princípio da comunidade e da racionalidade estético-expressiva.

É importante lembrar que a modernidade implica em uma articulação dinâmica entre o pilar da regulação e da emancipação, ficando o equilíbrio confiado à racionalidade moral-prática, à racionalidade estético expressiva e à racionalidade cognitivo-instrumental. Porém, nos últimos duzentos anos, esta última se impôs às outras duas, de forma que o estado de saber no conhecimento-emancipação passou a ser o estado de ignorância no conhecimento-regulação, e vice-versa. Como contraposição, deve-se considerar que o caos convida-nos à prudência, cujo princípio exige duas coisas: que, perante nossa incapacidade de previsão, privilegiemos as conseqüências negativas, não como uma visão pessimista, mas como estratégia epistemológica que possibilita desequilibrar o conhecimento em favor da emancipação; e que se revalorize a solidariedade, que converte a comunidade como campo privilegiado do conhecimento emancipatório. Assim, a opção epistemológica mais adequada ao momento de transição paradigmática é aquela que reinventa uma tradição marginalizada da modernidade ocidental: o conhecimento-emancipação.

Por outro lado, não há como não se considerar que toda natureza é cultura, tendo como conseqüência que, gradualmente, todas as ciências serão consideradas ciências sociais, já que, hoje em dia, não se diferencia natureza e cultura. Essa consideração permite perceber, nesse sentido, que a ciência moderna também é ocidental, capitalista e sexista. Por exemplo, pode-se observar que o princípio da seleção natural é uma história de progresso, expansão, invasão e colonização, constituindo-se praticamente uma história natural do capitalismo. Estudos feministas, por outro lado, demonstraram que as concepções científicas da natureza são construídas com base em princípios ocidentais e masculinos, como os da guerra, do individualismo, da concorrência e da agressividade. Como se pode observar, portanto, todo conhecimento científico-natural é científico-social. O conhecimento no paradigma emergente, no entanto, tende a ser não dualista, superando distinções tomadas como óbvias: vivo/inanimado, sujeito/objeto, natureza/cultura, subjetivo/objetivo etc, fazendo com que, à medida que as ciências naturais se aproximam das ciências sociais, estas aproximam-se das humanidades, fazendo com que a superação dessa dicotomia tenda a revalorizar os “estudos humanísticos”. Por todas essas razões, somente quando a ciência moderna tornar-se auto-reflexiva e perceba que essas intertextualidades são decorrentes de processos sociais cristalizados é que poderá transformar-se em projetos emancipatórios de um conhecimento pós-moderno.

O livro moderno da natureza foi construído, portanto, com base nos princípios do mercado e do Estado, utilizando a racionalidade cognitivo-instrumental, constituindo-se, em verdade, um livro de conhecimento-regulação. Nesse contexto, dois são os inimigos do conhecimento emancipatório pós-moderno: o monopólio e a renúncia de interpretação, que são combatidos pela proliferação de comunidades interpretativas, que não usam a cognição como instrumento, mas a política. Por essa razão, o conhecimento emancipatório, ao contrário da ciência de verdades objetivas, é construído com base na verdade retórica e discursiva. Aliás, a trajetória da própria retórica demonstra a colonização da racionalidade moral-prática do direito pela racionalidade científica, pois o direito sempre fora o campo favorito da retórica. Todavia, o positivismo jurídico determinaram o abandono da retórica pela ciência jurídica, a chamada “dogmática jurídica”. Assim, o conhecimento provável, decorrente de razoável argumentação, foi ultrapassado por um conhecimento científico exato. Todavia, já na década de 60 do Séc. XX, a retórica inicia sua reemergência. A retórica, aliás, é uma forma de conhecimento baseado em premissas prováveis para conclusões prováveis, que parte de premissas aceites que funcionam como ponto de partida, necessitando de um auditório relevante a ser convencido. Uma observação cuidadosa verificará, portanto, que ciência também é retórica – a retórica científica – que por utilizar apenas prova lógica, nega que é retórica. Afinal, a ciência, como ressalta Polanyi, possui métodos ambíguos que são aceites pela comunidade científica a partir de muitas premissas “tácitas” do conhecimento, demonstrando que a verdade científica é uma “verdade fiduciária” baseada na credibilidade dos cientistas, não havendo outra garantia “mais objetiva” que essa. Essa nova retórica, a retórica da ciência, deve ser suplantada e reconstruída para permitir a reinvenção do conhecimento-emancipação, fazendo com que a crítica radical à nova retórica leve a uma novíssima retórica, na busca de conhecimento prudente para uma vida decente. A novíssima retórica deverá potencializar a dimensão dialógica intersticial para permitir que o conhecimento progrida junto com o autoconhecimento.

Essas considerações demonstram que, a partir de uma dupla ruptura epistemológica, há necessidade de se procurar um novo senso comum para que o conhecimento-emancipação rompa com o senso comum conservador para transformar-se num senso comum emancipatório. Isso porque, deixado a si mesmo, o senso comum é conservador, demonstrando ser imprescindível o conhecimento-emancipação para passagem do colonialismo à solidariedade, enquanto, por outro lado, o conhecimento-emancipação só se concretiza quando se converte em senso comum. O novo senso comum, portanto, não despreza o conhecimento tecnológico, mas entende que ele deve traduzir-se em autoconhecimento e sabedoria de vida, integrando a prudência à nossa caminhada científica. O conhecimento emancipatório pós-moderno tem por princípio, dessa maneira, que emancipação somente ocorrerá se os tópicos básicos das relações sociais dominantes forem baseados em políticas de reconhecimento (identidade) e em políticas de redistribuição (igualdade), substituindo-se, em cada um dos seis campos de poder, a tópica da dominação pela emancipação. A construção desse novo senso comum possui como dimensões a solidariedade (dimensão ética), a participação (dimensão política) e o prazer (dimensão estética), visando substituir a racionalidade moral-prática moderna, que é baseada em uma ética antropocêntrica e individualista. Esse processo permitirá a construção de um novo senso comum político que seja participativo, pois a confinação do ideal democrático da política moderna à esfera pública limitou seu potencial emancipatório. Essa limitação, aliás, é um dos tópicos básicos do discurso político moderno, e sua superação, com a compressão política de todas as formas de poder, parece ser a melhor maneira de se lutar contra monopólios de interpretação sem renunciar à própria interpretação.

Pelo exposto, vê-se que a ciência, antes tida com a solução de todos os problemas, passou ela mesma a ser um problema, eis que os problemas sociais passaram a ter uma dimensão epistemológica no momento em que a ciência passou a estar na sua origem. Eis a razão pela qual se necessita de uma crítica da epistemologia hegemônica.

25 de jun. de 2007

Parte I - Introdução - A Crítica...

A Crítica da Razão Indolente - Boaventura de Souza Santos

Parte I

Epistemologia das estátuas quando olham para os pés: a ciência e o direito na transição paradigmática.

Introdução

As sociedades são as imagens de espelhos construídas por elas próprias para reproduzir suas identificações dominantes, assegurando as rotinas que as sustentam. Quanto mais o espelho é utilizado, mais adquire vida própria, passando de objeto trivial a super-sujeito, passando de espelho a estátua. Nesse caso, a sociedade entra em crise, uma crise da consciência especular. Entre os muitos espelhos, dois passaram a estátuas: a ciência e o direito.

O paradigma sócio-cultural moderno, que surgiu antes da dominação capitalista, provavelmente também acabará antes do fim do capitalismo. Essa transição, como todas, é semi-invisível e semicega, dificultando nomeá-la com exatidão, o que talvez justifique o uso do termo “pós-moderno”, autêntico em sua inadequação.

A atual transição paradigmática, por sua vez, permite um horizonte vasto de possibilidades de futuros alternativos, tanto quanto os que a própria modernidade viabilizou. A modernidade, contudo, possuía em sua matriz a semente de seu próprio fracasso: promessas incumpridas e défices irremediáveis. Nessas circunstâncias, já no Séc. XIX a ciência se apresentava como instância moral suprema, levando à colonização da racionalidade estético-expressiva pela idéia de emancipação científica e tecnológica da sociedade. Contudo, a administração dos défices e excessos da modernidade não se deu somente pelas mãos da ciência, já que o direito moderno teve uma participação subordinada, mas central, terminando por apresentar um isomorfismo com aquela por meio de experiências simbólicas de fusão e configurações combinadas de elementos.

Ao final, a versão prevalecente da modernidade foi uma dentre as várias possíveis. A obra busca, nesse sentido, conceitualizar um novo mapa de práticas emancipadoras, de forma a substituir o esgotamento da modernidade para este objetivo, neste importante momento de transição paradigmática.

24 de jun. de 2007

Crítica da Razão Indolente

A Crítica da Razão Indolente: Contra o desperdício da experiência

Boaventura de Souza Santos


Prefácio Geral

Estamos no ápice de um processo de degradação da tensão ente regulação e emancipação, que na modernidade capitalista se caracterizou pela preponderância de energias regulatórias. Trata-se de uma transição paradigmática, portanto de longo prazo, mas que no dia-a-dia é tratada como subparadigmática, pois as lutas sociais, para serem críveis, ocorrem no curto prazo. Essas lutas devem objetivar a expansão de espaços públicos não estatais visando republicizar o espaço estatal, hoje dominado por grupos privados, em um processo de radicalização da democracia.

Introdução Geral

Teoria crítica é aquela que não reduz a realidade ao que existe, acreditando ser possível encontrar alternativas do que é criticável no que existe. Todavia, como lembra Foucault, o poder panóptico da ciência moderna não permite uma saída dentro do sistema, uma vez que a própria resistência torna-se disciplinar, uma opressão consentida. A demonstração de que a ciência silencia sobre determinados assuntos viabiliza, por outro lado, a busca de “regimes de verdade” alternativos. A multiculturalidade, nesse sentido, permite uma hermenêutica de suspeição contra universalismos ou totalidades. Aliás, não há um princípio, uma teoria e agentes históricos únicos de transformação social, dominação e resistência. Como se vê, enfrenta-se problemas da modernidade para os quais não há soluções modernas. O caminho é a construção de uma teoria pós-moderna de oposição.

A modernidade apresenta duas formas de conhecimento: conhecimento regulação e conhecimento emancipação, sendo o caos a ignorância do primeiro e o colonialismo a ignorância do segundo.Um pensamento alternativo de alternativas, que não caia na armadilha do pensamento crítico moderno, deve partir da aceitação do conhecimento-emancipação, o que gera quatro conseqüências: a) substituir o monoculturalismo pelo multiculturalismo: deve-se superar o silêncio e a diferença, necessitando-se de uma teoria da tradução, que permita a ligação em rede de práticas emancipatórias finitas e incompletas; b) passagem da peritagem heróica ao conhecimento edificante: a ciência desenvolveu grande capacidade de agir mas pouca de prever. Por seu lado, o conhecimento-emancipação é alcançado assumindo-se as conseqüências de seu impacto; c) passagem da ação conformista à ação rebelde: a discussão na teoria crítica moderna baseada na dicotomia estrutura/ação foi absorvida pela epistemologia do conhecimento-regulação, distanciando da questão da solidariedade. Na verdade, a sociedade capitalista, fragmentada, plural e múltipla, cria campos de escolha de consumo que dão a impressão de exercício de autonomia e de libertação. A ação rebelde parece tão fácil que se transforma em conformismo alternativo. Assim, a transformação emancipatória passa pela promoção de subjetividades inconformistas e rebeldes; d) dicotomia espera/esperança: vivemos em uma sociedade de riscos indeterminados e inseguráveis, o que se traduz por uma espera sem esperança. O desafio da teoria crítica pós-moderna é assumir uma posição utópica, mais ativa e ambígua, oferecendo uma espera com esperança enquanto fomenta-se a transição, eis que as sociedades e as épocas mudam em razão do excesso de problemas em relação às soluções que tornam possíveis.

Em síntese, enquanto a modernidade reivindica o monopólio da idéia de uma “sociedade melhor”, o pós moderno de oposição busca um futuro melhor por meio de uma democracia radical, sem referência a universalismos abstratos que ocultem preconceitos. A obra, portanto, refere-se a uma abordagem pós-moderna de oposição, que articula a crítica da modernidade com a crítica da teoria crítica da modernidade.

Prefácio

Temos a sensação de estarmos vivendo entre um presente que quase acabou e um futuro que ainda não começou, em uma sociedade intervalar, de transição paradigmática. Neste livro analisa-se a natureza e os termos dessa transição.

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