Cap. 1 – Da ciência moderna ao novo senso comum
A situação sócio-cultural contemporânea é caracterizada pela absorção do pilar da emancipação pelo da regulação, eis que a administração dos excessos e défices da modernidade foi confiada à ciência e ao direito. A hipercientificização do pilar da emancipação criou grandes promessas que ficaram por cumprir, demonstrando que a ciência, longe de diminuir excessos e défices, ajudou a renová-los e até mesmo agravar alguns. Em verdade, mesmo o pilar da regulação, entre seus três princípios – Estado, comunidade e mercado, este último se sobrepôs aos demais, levando, aliás, ao descrédito da própria regulação em razão dessas contradições internas, porém sem promover a emancipação.
Uma vez que a capacidade de ação não foi acompanhada pela previsão, as conseqüências da ciência acabam sendo menos científicas que a ação científica em si. Dessa maneira, é necessário uma volta à simplicidade, como fez Rousseau ao perguntar, com resposta negativa, se o progresso das ciências e das artes contribuiria para purificar ou para corromper nossos costumes. Portanto, a compreensão do impacto sócio-cultural da crise da ciência moderna exige um questionamento básico em relação à sua própria epistemologia.
O modelo de racionalidade científica moderna, global, exclui qualquer conhecimento que não siga seus princípios epistemológicos e regras metodológicas, e desconfia de evidências da experiência imediata, que entende vulgar e ilusórias. A ciência moderna, portanto, além de distanciar a natureza do ser humano, busca na matemática e na lógica seus instrumentos privilegiados de análise, visando prever comportamento futuro dos fenômenos. Entretanto, o determinismo mecanicista resultante desse processo levou menos à compreensão do real e mais à sua dominação e transformação, combinando com os interesses de uma burguesia que via na sociedade, que começava a dominar, um estágio final de evolução da humanidade. O estudo mecanicista da sociedade, decorrente da idéia de que se poderia descobrir as leis da sociedade da mesma maneira que as da natureza, pode ser distinguido em duas vertentes: uma que aplicasse todos os princípios metodológicos e epistemológico da ciência natural; e outra que reivindica estatuto próprio, com base nas especificidades do ser humano. A primeira vertente precisa reduzir os fatos sociais, como pretendia Durkheim, às suas dimensões externas, observáveis e mensuráveis. A segunda busca o conhecimento intersubjetivo em métodos qualitativos e não quantitativos, que sejam descritivos e compreensivos, em uma concepção antipositivista. Todavia, ambas concepções, em última análise, pertencem ao paradigma da ciência moderna, ainda que a segunda represente um sinal de crise e contenha alguns componentes da transição para um novo paradigma científico.
A crise da racionalidade científica moderna é evidente, resultado interativo de uma série de condições. Após a euforia da ciência no Séc. XIX e sua aversão à filosofia, como demonstra o positivismo, chegamos a um momento que desejamos muito termos, além do conhecimento das coisas, um conhecimento de nós mesmos, além de pretender-se que condições sociais e culturais passem a ter relevância nas investigações científicas. Essas reflexões epistemológicas fazem questionar o conceito de lei e de sua causalidade, demonstrando versar mais sobre conteúdo do conhecimento científico do que sobre sua forma. Isso porque o rigor científico, fundado na matemática, quantifica e que, ao quantificar, desqualifica, objetivando os fenômenos deforma a degradá-los e desqualificá-los, de maneira a, ao afirmar a personalidade do cientista, destrói a da natureza.
Deve surgir, portanto, um novo paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente, demonstrando-se que a nova revolução científica é estruturalmente diferente daquela do Séc. XVI, pois na modernidade se encontra tudo o necessário para a solução dos seus excessos e défices, menos a própria solução, principalmente em razão de ter-se negligenciado o princípio da comunidade e a racionalidade estético-expressiva. Quanto ao princípio da comunidade, a participação e solidariedade são dimensões pouco colonizados pela ciência, sendo que, em relação à participação a colonização ocorreu, principalmente, pela limitação da esfera pública unicamente à cidadania e democracia representativa. Deve-se, assim, buscar um novo desequilíbrio, dessa vez em favor da emancipação em relação à regulação, eis que a pós-modernidade de oposição significa justamente esta cumplicidade epistemológica do princípio da comunidade e da racionalidade estético-expressiva.
É importante lembrar que a modernidade implica em uma articulação dinâmica entre o pilar da regulação e da emancipação, ficando o equilíbrio confiado à racionalidade moral-prática, à racionalidade estético expressiva e à racionalidade cognitivo-instrumental. Porém, nos últimos duzentos anos, esta última se impôs às outras duas, de forma que o estado de saber no conhecimento-emancipação passou a ser o estado de ignorância no conhecimento-regulação, e vice-versa. Como contraposição, deve-se considerar que o caos convida-nos à prudência, cujo princípio exige duas coisas: que, perante nossa incapacidade de previsão, privilegiemos as conseqüências negativas, não como uma visão pessimista, mas como estratégia epistemológica que possibilita desequilibrar o conhecimento em favor da emancipação; e que se revalorize a solidariedade, que converte a comunidade como campo privilegiado do conhecimento emancipatório. Assim, a opção epistemológica mais adequada ao momento de transição paradigmática é aquela que reinventa uma tradição marginalizada da modernidade ocidental: o conhecimento-emancipação.
Por outro lado, não há como não se considerar que toda natureza é cultura, tendo como conseqüência que, gradualmente, todas as ciências serão consideradas ciências sociais, já que, hoje em dia, não se diferencia natureza e cultura. Essa consideração permite perceber, nesse sentido, que a ciência moderna também é ocidental, capitalista e sexista. Por exemplo, pode-se observar que o princípio da seleção natural é uma história de progresso, expansão, invasão e colonização, constituindo-se praticamente uma história natural do capitalismo. Estudos feministas, por outro lado, demonstraram que as concepções científicas da natureza são construídas com base em princípios ocidentais e masculinos, como os da guerra, do individualismo, da concorrência e da agressividade. Como se pode observar, portanto, todo conhecimento científico-natural é científico-social. O conhecimento no paradigma emergente, no entanto, tende a ser não dualista, superando distinções tomadas como óbvias: vivo/inanimado, sujeito/objeto, natureza/cultura, subjetivo/objetivo etc, fazendo com que, à medida que as ciências naturais se aproximam das ciências sociais, estas aproximam-se das humanidades, fazendo com que a superação dessa dicotomia tenda a revalorizar os “estudos humanísticos”. Por todas essas razões, somente quando a ciência moderna tornar-se auto-reflexiva e perceba que essas intertextualidades são decorrentes de processos sociais cristalizados é que poderá transformar-se em projetos emancipatórios de um conhecimento pós-moderno.
O livro moderno da natureza foi construído, portanto, com base nos princípios do mercado e do Estado, utilizando a racionalidade cognitivo-instrumental, constituindo-se, em verdade, um livro de conhecimento-regulação. Nesse contexto, dois são os inimigos do conhecimento emancipatório pós-moderno: o monopólio e a renúncia de interpretação, que são combatidos pela proliferação de comunidades interpretativas, que não usam a cognição como instrumento, mas a política. Por essa razão, o conhecimento emancipatório, ao contrário da ciência de verdades objetivas, é construído com base na verdade retórica e discursiva. Aliás, a trajetória da própria retórica demonstra a colonização da racionalidade moral-prática do direito pela racionalidade científica, pois o direito sempre fora o campo favorito da retórica. Todavia, o positivismo jurídico determinaram o abandono da retórica pela ciência jurídica, a chamada “dogmática jurídica”. Assim, o conhecimento provável, decorrente de razoável argumentação, foi ultrapassado por um conhecimento científico exato. Todavia, já na década de 60 do Séc. XX, a retórica inicia sua reemergência. A retórica, aliás, é uma forma de conhecimento baseado em premissas prováveis para conclusões prováveis, que parte de premissas aceites que funcionam como ponto de partida, necessitando de um auditório relevante a ser convencido. Uma observação cuidadosa verificará, portanto, que ciência também é retórica – a retórica científica – que por utilizar apenas prova lógica, nega que é retórica. Afinal, a ciência, como ressalta Polanyi, possui métodos ambíguos que são aceites pela comunidade científica a partir de muitas premissas “tácitas” do conhecimento, demonstrando que a verdade científica é uma “verdade fiduciária” baseada na credibilidade dos cientistas, não havendo outra garantia “mais objetiva” que essa. Essa nova retórica, a retórica da ciência, deve ser suplantada e reconstruída para permitir a reinvenção do conhecimento-emancipação, fazendo com que a crítica radical à nova retórica leve a uma novíssima retórica, na busca de conhecimento prudente para uma vida decente. A novíssima retórica deverá potencializar a dimensão dialógica intersticial para permitir que o conhecimento progrida junto com o autoconhecimento.
Essas considerações demonstram que, a partir de uma dupla ruptura epistemológica, há necessidade de se procurar um novo senso comum para que o conhecimento-emancipação rompa com o senso comum conservador para transformar-se num senso comum emancipatório. Isso porque, deixado a si mesmo, o senso comum é conservador, demonstrando ser imprescindível o conhecimento-emancipação para passagem do colonialismo à solidariedade, enquanto, por outro lado, o conhecimento-emancipação só se concretiza quando se converte em senso comum. O novo senso comum, portanto, não despreza o conhecimento tecnológico, mas entende que ele deve traduzir-se em autoconhecimento e sabedoria de vida, integrando a prudência à nossa caminhada científica. O conhecimento emancipatório pós-moderno tem por princípio, dessa maneira, que emancipação somente ocorrerá se os tópicos básicos das relações sociais dominantes forem baseados em políticas de reconhecimento (identidade) e em políticas de redistribuição (igualdade), substituindo-se, em cada um dos seis campos de poder, a tópica da dominação pela emancipação. A construção desse novo senso comum possui como dimensões a solidariedade (dimensão ética), a participação (dimensão política) e o prazer (dimensão estética), visando substituir a racionalidade moral-prática moderna, que é baseada em uma ética antropocêntrica e individualista. Esse processo permitirá a construção de um novo senso comum político que seja participativo, pois a confinação do ideal democrático da política moderna à esfera pública limitou seu potencial emancipatório. Essa limitação, aliás, é um dos tópicos básicos do discurso político moderno, e sua superação, com a compressão política de todas as formas de poder, parece ser a melhor maneira de se lutar contra monopólios de interpretação sem renunciar à própria interpretação.
Pelo exposto, vê-se que a ciência, antes tida com a solução de todos os problemas, passou ela mesma a ser um problema, eis que os problemas sociais passaram a ter uma dimensão epistemológica no momento em que a ciência passou a estar na sua origem. Eis a razão pela qual se necessita de uma crítica da epistemologia hegemônica.
Um comentário:
BOM DIA RODRIGO. ESTOU PARA PARTICIPAR DO MESTRADO DE DIREITO AQUI PELA UERJ DO RIO DE JANEIRO. SOU NOVO NA AREA DE FILOSOFIA. SOU FORMADO EM DIREITO E EXERÇO A ADVOCACIA. TENHO 51 ANOS E GOSTARIA DEDICAR À VIDA ACADEMICA, SEJA DANDO AULA OU PESQUISANDO. UM DOS TEXTOS QUE ESTUDEI E ESTE DA CRITICA DA RAZAO INDOLENTE. O ACHEI MUITO COMPLICADO. VC TERIA COMO ME AJUDAR OU ME DAR DICAS PARA PARTICPAR DA PROVA.
AGRADEÇO DESDE JA PELA SUA ATENÇÃO. MEU E-MAIL É MIGUELGOMES@ADV.OABRJ.ORG.BR
MIGUEL SANTOS GOMES
ABRAÇOS
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