Meio Ambiente e democracia nas sociedades da informação e do conhecimento e as experiências práticas no Estado do Acre
30 de jul. de 2009
Uma breve história das novas tecnologias de informação e comunicação
Considerando que o período geralmente aceito como aquele que pode ser rotulado de “pós-moderno” corresponde às últimas quatro décadas, logo se verá que, não por acaso, coincide com a expansão de novas tecnologias desenvolvidas para processar e transmitir informações. Uma breve digressão histórica para contextualizar esse período de evolução tecnológica parece ser, portanto, um passo necessário.
A título ilustrativo, tome-se o ano de 1968 como referência. No Brasil, era realizado, pelo médico Euclydes Zerbini, o primeiro transplante de coração, o que acontecia exatamente um mês antes da conhecida “Passeata dos Cem Mil”, que se constituiu em uma grande manifestação contra a ditadura militar, um ato de resistência ao regime, realizado no Rio de Janeiro. No final daquele ano, o presidente Costa e Silva decretaria o Ato Institucional n° 5, dando início ao período mais fechado e violento da ditadura iniciada em 1964. A USP deixava de receber, na condição de professor, Manuel Castells, então exilado no Chile após participação nos agitados movimentos estudantis em Paris naquele ano, uma vez que Fernando Henrique Cardoso, que o convidara ao magistério na capital paulista, se tornaria um exilado em razão da intervenção militar na universidade paulista.
Nos Estados Unidos, o presidente Lyndon Johnson, em razão da pressão de movimentos sociais e de olho nas eleições daquele ano, que acabaria por perder para Richard Nixon, assina a Lei de Direitos Civis, apenas uma semana após o assassinato, em Memphis, do líder negro Martin Luther King. A guerra fria, que estava então em seu auge, tinha na tecnologia o seu campo de batalha mais acirrado, ao lado das guerras periféricas e dos jogos geoestratégicos de poder. Havia apenas sete anos desde que a então União Soviética enviara pela primeira vez um homem ao espaço e a chegada americana à lua não demoraria.
Os Estados nacionais já investiam pesadamente em pesquisa e desenvolvimento, tendo seus departamentos militares enormes orçamentos para garantir a dianteira tecnológica, onda cada avanço representava uma batalha vencida na geopolítica mundial. Afinal, a última Grande Guerra havia sido ganha justamente por se ter alcançado uma tecnologia revolucionária: a manipulação do átomo para fins bélicos, até hoje motivo de discórdia e preocupação pelo potencial de destruição da raça humana.
E como estava a evolução da tecnologia de informação e comunicação naquela época? Sintomaticamente, Robert Lloyd, executivo da então recém criada IBM (à época produzindo apenas grandes computadores – os mainframes), ao ser questionado sobre o contemporâneo surgimento do “microprocessador”, respondeu: "Mas... para o serve isso?" , pois ao mesmo não fazia sentido produzir equipamentos para uso pessoal. Tal contexto significava que, não obstante a base tecnológica da era informacional já estar parcialmente disponível na década de 60 do século XX, sua utilização como instrumento “revolucionário” era ainda bastante nebulosa e pouco disseminada.
Entretanto, foi naquele ano de 1968 que, em uma histórica apresentação na cidade de São Francisco, na Califórnia, Douglas Carl Engelbart, um dos pioneiros da computação digital, foi ovacionado na primeira demonstração pública de um computador com mouse, hipermídia, hipertexto, trabalho cooperativo, vídeo conferência, interface gráfica, processador de texto e correspondência eletrônica (e-mail) , ilustrando o que viria a se tornar um padrão dominante. Na verdade, Engelbart fora responsável por desenvolver pesquisas que estabeleceram significativas evoluções na interface computador-humano, concentrando esforços nos ambientes gráficos interativos, estabelecendo, assim, vários métodos de interação com o monitor, a exemplo do mouse, patenteado desde 1964. Foi seu grupo, aliás, que desenvolveu o sistema online chamado NLS, a base tecnológica da supramencionada apresentação .
Aquela apresentação teve grande importância para a difusão de outra tecnologia: foi um dos passos iniciais para a ampla utilização da ARPANet, a rede precursora da Internet, criada e mantida, a partir de 1969, pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Aquele evento liderado por Engelbart, que ficou conhecido como “a mãe de todas as demonstrações” , constitui-se como o símbolo do ponto inicial de convergência das tecnologias de processamento e de comunicação de informações, que viriam a mudar o mundo nas décadas seguintes.
Foi também naquele ano de 1968 que Ted Hoff, trabalhando para a então novata Intel, inventou o microprocessador (porém lançado no mercado somente em 1971), que nada mais é que um computador constituído por um “chip” (computer-on-a-chip) . O primeiro “chip” resultou da demanda de uma empresa japonesa fabricante de calculadoras, que acabaria por não utilizar a tecnologia e cujos direitos foram posteriormente comprados pela própria Intel, que vislumbrou o potencial comercial da invenção. Aliás, aquele primeiro e pequeno microprocessador possuía a mesma capacidade do ENIAC de 1946, o primeiro computador eletrônico digital de larga escala (desenvolvido para a II Guerra Mundial com recursos do exército americano), mas que pesava 30 toneladas e ocupava uma área de 167 metros quadrados .
De qualquer forma, havia um forte interesse militar no desenvolvimento daquelas tecnologias, principalmente no contexto da guerra fria que se iniciava, pois os norte-americanos pretendiam desenvolver uma estratégia para manutenção de um sistema de comunicação invulnerável a ataques nucleares. Esta proposta se consubstanciou em uma rede independente de centros de comando e um sistema de trocas de informações por pacotes, que procuram seu próprio caminho para chegar a qualquer ponto da rede – a base do que hoje se chama de Internet. Assim, ainda que se observe que muito da tecnologia necessária para a atual revolução informacional foi desenvolvida como resultado do esforço durante a II Guerra Mundial, deve-se considerar que as mudanças nessa direção aceleraram-se fortemente somente naquela década de 60, não obstante o fato de que o passo decisivo havia sido dado em 1957, com a invenção do circuito integrado por Jack Kilby e Bob Noyce, ambos da Texas Instruments .
Pois foi assim, a partir dessa base histórica, que, em 1975, Ed Roberts desenvolveu, em sua garagem, o “Altair”, a primeira “caixa de computação” ao alcance da população, o qual foi comercializado, inicialmente, por meio da revista Popular Eletronics, como um kit a ser montado . O sucesso foi rápido e indiscutível e o Altair marcou época como o primeiro computador pessoal popular comercializado em larga escala – estabelecendo a indústrias de PC e iniciando a revolução do computador pessoal. Entretanto, o fenômeno não sobreviveu à transição da eletrônica de montagem por hobbie e o mercado amador que lhe sucedeu, caracterizado pela facilidade do plug-and-play (plugar-e-usar) .
Na verdade, foi a Apple, criada em 1976, que de fato popularizou o computador pessoal e, em 1982, já vendia US$ 583 milhões em equipamentos. A IBM, perdendo mercado por focar nos grandes computadores, teve que reagir, o que fez lançando seu Computador Pessoal (PC) em 1982, que acabou por se tornar o nome genérico dos microprocessadores . Em mais um lance decisivo, foi apresentado pela Apple, em 1984, o Macintosh, que se constituiu como um passo determinante para a facilitação do uso do computador pela disseminação da utilização do mouse e de uma interface gráfica baseada em ícones (cujos princípios haviam sido criados muito anos antes pelos desenvolvedores da Xerox em Palo Alto, Califórnia). Por outro lado, o software para “rodar” os PCs surgiu em meados dos anos 1970, a partir do trabalho de William Gates e Paul Allen, que adaptaram a linguagem BASIC para o Altair, fundando, na seqüência, a conhecida Microsoft. Posteriormente, já na década de 90, a miniaturização, a especialização e a queda dos preços dos microprocessadores fizeram com que tais equipamentos se espalhassem por máquinas nas rotinas diárias, de lava-louças a veículos. Foi dessa maneira que o custo médio de processamento saiu de cerca de U$ 75,00 por cada milhão de operações, em 1960, para menos de um centésimo de centavo de dólar em 1990 .
Porém, mesmo com todo o avanço da tecnologia de processamento, a formação de redes mundiais como as conhecemos hoje só se tornou possível com a ampliação da infra-estrutura de comunicação que, por sua vez, somente foi concebida e viabilizada econômica e tecnicamente justamente pela utilização das novas tecnologias disponibilizadas, em mais um exemplo de aplicação da relação sinérgica da revolução em andamento.
Dessa maneira, como já mencionado, a primeira rede de computadores formou-se por meio da ARPANet, que iniciou suas atividades oficialmente em 1° de setembro de 1969. Entretanto, para que os computadores pudessem comunicar-se entre si era necessária a criação de um protocolo padronizado, uma espécie de “tradutor” entre as máquinas. Para tal fim, designou-se o padrão TCP/IP, que conseguiu hegemonia e acabou sendo adotado em todo o mundo, o que prevalece até hoje.
Aliás, em 1978 foi criado o primeiro modem para PC (decorrente do esforço pessoal de Ward Christensen e Randy Suessem) o qual permitia a transferência direta de arquivos entre computadores sem passar por um sistema central, ou seja, sem passar pela ARPANet. No ano seguinte, Christensen e Suessem divulgaram livremente seu protocolo objetivando o seu uso público, para que a maior quantidade de pessoas possível pudesse trocar arquivos daquela maneira, em uma espécie de movimento contracultural e que terminou por potencializar e democratizar a ampliação da rede. Essa conjunção de fatores viabilizou, ao final, que qualquer pessoa com conhecimentos tecnológicos e um PC tivesse a alternativa de participar de uma rede horizontal de troca de informações, apesar de que, em 1990, os não-iniciados ainda tinham dificuldade para usar a Internet e os recursos gráficos eram bastante limitados .
Foi então que, naquele ano de 1990, no centro de pesquisas nucleares da Europa (CERN), desenvolveu-se a Word Wide Web – WWW (teia mundial) – a partir de um projeto original intitulado ENQUIRE . O CERN criou um formato para documentos flexíveis em hipertexto (HTML), bem como um protocolo de transferência dos mesmos – o HTTP – e, ainda, um formato padronizado de endereços – URL, que ainda hoje são os padrões utilizados e que permitiram, na seqüência, a criação de instrumentos de fácil uso da rede . Houve, portanto, uma sinergia entre os esforços americanos e europeus para desenvolvimento das tecnologias e softwares para criação da atual Internet.
Dessa maneira, o formato aberto e flexível da rede tornou-se aplicável a todos os tipos de atividades, em diferentes contextos, locais e culturas, conectando-os eletronicamente. Em pouco tempo foram surgindo os navegadores (browsers) que permitiam “surfar” na rede, criando uma verdadeira teia mundial. Aliás, o software nomeado “WorldWideWeb” (posteriormente chamado de Nexus para não confundir com a rede mundial), desenvolvido por Tim Berners-Lee em 1990, é considerado o primeiro navegador de Internet. Porém, a explosão de popularidade da “web” somente ocorreu com a disponibilização do “Mosaic”, desenvolvido no Centro Nacional de Aplicações para Supercomputadores (NCSA), e que teve sua primeira versão apresentada em setembro de 1993 .
Nos anos seguintes, ocorreria uma verdadeira “guerra” dos “browsers”, principalmente entre o Netscape, que saiu na frente, e o Internet Explorer, da Microsoft. Esta, já então uma potência tecnológica e econômica, detentora de um virtual monopólio dos sistemas operacionais populares, acabou por dominar quase totalmente o mercado, somente sofrendo relativo abalo com o lançamento do navegador “Firefox” em 2002, hoje utilizado por aproximadamente 35% dos “internautas” .
A Internet, no ano de 2007, alcança cerca de um bilhão e duzentos milhões de pessoas (≈ 17% da população mundial), com crescimento de cerca de 200% nos últimos sete anos , um aumento tão grande quanto desigualmente distribuído pelo globo. Enquanto a taxa de penetração da Internet na América do Norte já alcança o índice de 70%, a África permanece em irrisórios 5%. É uma realidade sobre a qual devem ser lançados pensamentos para uma reflexão sobre seu mecanismo e conseqüências (dados de 2007).
Por tudo quanto mencionado até o momento, o que se deve manter em mente é que o processo de transformação tecnológica, como uma dinâmica interna da sociedade, gerou alterações substanciais na economia, na cultura, na política e nos mais variados aspectos das relações sociais. A característica dessas relações segue o padrão de redes, onde há uma inter-relação e interdependência entre os diversos pontos da teia, de maneira que sua forma de articulação é a característica dominante no mundo contemporâneo. As conseqüências mais evidentes para a economia e o trabalho serão expostas na seqüência, tendo em vista que são importantes esferas que determinam diversos aspectos dos sistemas políticos e democráticos.
A título ilustrativo, tome-se o ano de 1968 como referência. No Brasil, era realizado, pelo médico Euclydes Zerbini, o primeiro transplante de coração, o que acontecia exatamente um mês antes da conhecida “Passeata dos Cem Mil”, que se constituiu em uma grande manifestação contra a ditadura militar, um ato de resistência ao regime, realizado no Rio de Janeiro. No final daquele ano, o presidente Costa e Silva decretaria o Ato Institucional n° 5, dando início ao período mais fechado e violento da ditadura iniciada em 1964. A USP deixava de receber, na condição de professor, Manuel Castells, então exilado no Chile após participação nos agitados movimentos estudantis em Paris naquele ano, uma vez que Fernando Henrique Cardoso, que o convidara ao magistério na capital paulista, se tornaria um exilado em razão da intervenção militar na universidade paulista.
Nos Estados Unidos, o presidente Lyndon Johnson, em razão da pressão de movimentos sociais e de olho nas eleições daquele ano, que acabaria por perder para Richard Nixon, assina a Lei de Direitos Civis, apenas uma semana após o assassinato, em Memphis, do líder negro Martin Luther King. A guerra fria, que estava então em seu auge, tinha na tecnologia o seu campo de batalha mais acirrado, ao lado das guerras periféricas e dos jogos geoestratégicos de poder. Havia apenas sete anos desde que a então União Soviética enviara pela primeira vez um homem ao espaço e a chegada americana à lua não demoraria.
Os Estados nacionais já investiam pesadamente em pesquisa e desenvolvimento, tendo seus departamentos militares enormes orçamentos para garantir a dianteira tecnológica, onda cada avanço representava uma batalha vencida na geopolítica mundial. Afinal, a última Grande Guerra havia sido ganha justamente por se ter alcançado uma tecnologia revolucionária: a manipulação do átomo para fins bélicos, até hoje motivo de discórdia e preocupação pelo potencial de destruição da raça humana.
E como estava a evolução da tecnologia de informação e comunicação naquela época? Sintomaticamente, Robert Lloyd, executivo da então recém criada IBM (à época produzindo apenas grandes computadores – os mainframes), ao ser questionado sobre o contemporâneo surgimento do “microprocessador”, respondeu: "Mas... para o serve isso?" , pois ao mesmo não fazia sentido produzir equipamentos para uso pessoal. Tal contexto significava que, não obstante a base tecnológica da era informacional já estar parcialmente disponível na década de 60 do século XX, sua utilização como instrumento “revolucionário” era ainda bastante nebulosa e pouco disseminada.
Entretanto, foi naquele ano de 1968 que, em uma histórica apresentação na cidade de São Francisco, na Califórnia, Douglas Carl Engelbart, um dos pioneiros da computação digital, foi ovacionado na primeira demonstração pública de um computador com mouse, hipermídia, hipertexto, trabalho cooperativo, vídeo conferência, interface gráfica, processador de texto e correspondência eletrônica (e-mail) , ilustrando o que viria a se tornar um padrão dominante. Na verdade, Engelbart fora responsável por desenvolver pesquisas que estabeleceram significativas evoluções na interface computador-humano, concentrando esforços nos ambientes gráficos interativos, estabelecendo, assim, vários métodos de interação com o monitor, a exemplo do mouse, patenteado desde 1964. Foi seu grupo, aliás, que desenvolveu o sistema online chamado NLS, a base tecnológica da supramencionada apresentação .
Aquela apresentação teve grande importância para a difusão de outra tecnologia: foi um dos passos iniciais para a ampla utilização da ARPANet, a rede precursora da Internet, criada e mantida, a partir de 1969, pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Aquele evento liderado por Engelbart, que ficou conhecido como “a mãe de todas as demonstrações” , constitui-se como o símbolo do ponto inicial de convergência das tecnologias de processamento e de comunicação de informações, que viriam a mudar o mundo nas décadas seguintes.
Foi também naquele ano de 1968 que Ted Hoff, trabalhando para a então novata Intel, inventou o microprocessador (porém lançado no mercado somente em 1971), que nada mais é que um computador constituído por um “chip” (computer-on-a-chip) . O primeiro “chip” resultou da demanda de uma empresa japonesa fabricante de calculadoras, que acabaria por não utilizar a tecnologia e cujos direitos foram posteriormente comprados pela própria Intel, que vislumbrou o potencial comercial da invenção. Aliás, aquele primeiro e pequeno microprocessador possuía a mesma capacidade do ENIAC de 1946, o primeiro computador eletrônico digital de larga escala (desenvolvido para a II Guerra Mundial com recursos do exército americano), mas que pesava 30 toneladas e ocupava uma área de 167 metros quadrados .
De qualquer forma, havia um forte interesse militar no desenvolvimento daquelas tecnologias, principalmente no contexto da guerra fria que se iniciava, pois os norte-americanos pretendiam desenvolver uma estratégia para manutenção de um sistema de comunicação invulnerável a ataques nucleares. Esta proposta se consubstanciou em uma rede independente de centros de comando e um sistema de trocas de informações por pacotes, que procuram seu próprio caminho para chegar a qualquer ponto da rede – a base do que hoje se chama de Internet. Assim, ainda que se observe que muito da tecnologia necessária para a atual revolução informacional foi desenvolvida como resultado do esforço durante a II Guerra Mundial, deve-se considerar que as mudanças nessa direção aceleraram-se fortemente somente naquela década de 60, não obstante o fato de que o passo decisivo havia sido dado em 1957, com a invenção do circuito integrado por Jack Kilby e Bob Noyce, ambos da Texas Instruments .
Pois foi assim, a partir dessa base histórica, que, em 1975, Ed Roberts desenvolveu, em sua garagem, o “Altair”, a primeira “caixa de computação” ao alcance da população, o qual foi comercializado, inicialmente, por meio da revista Popular Eletronics, como um kit a ser montado . O sucesso foi rápido e indiscutível e o Altair marcou época como o primeiro computador pessoal popular comercializado em larga escala – estabelecendo a indústrias de PC e iniciando a revolução do computador pessoal. Entretanto, o fenômeno não sobreviveu à transição da eletrônica de montagem por hobbie e o mercado amador que lhe sucedeu, caracterizado pela facilidade do plug-and-play (plugar-e-usar) .
Na verdade, foi a Apple, criada em 1976, que de fato popularizou o computador pessoal e, em 1982, já vendia US$ 583 milhões em equipamentos. A IBM, perdendo mercado por focar nos grandes computadores, teve que reagir, o que fez lançando seu Computador Pessoal (PC) em 1982, que acabou por se tornar o nome genérico dos microprocessadores . Em mais um lance decisivo, foi apresentado pela Apple, em 1984, o Macintosh, que se constituiu como um passo determinante para a facilitação do uso do computador pela disseminação da utilização do mouse e de uma interface gráfica baseada em ícones (cujos princípios haviam sido criados muito anos antes pelos desenvolvedores da Xerox em Palo Alto, Califórnia). Por outro lado, o software para “rodar” os PCs surgiu em meados dos anos 1970, a partir do trabalho de William Gates e Paul Allen, que adaptaram a linguagem BASIC para o Altair, fundando, na seqüência, a conhecida Microsoft. Posteriormente, já na década de 90, a miniaturização, a especialização e a queda dos preços dos microprocessadores fizeram com que tais equipamentos se espalhassem por máquinas nas rotinas diárias, de lava-louças a veículos. Foi dessa maneira que o custo médio de processamento saiu de cerca de U$ 75,00 por cada milhão de operações, em 1960, para menos de um centésimo de centavo de dólar em 1990 .
Porém, mesmo com todo o avanço da tecnologia de processamento, a formação de redes mundiais como as conhecemos hoje só se tornou possível com a ampliação da infra-estrutura de comunicação que, por sua vez, somente foi concebida e viabilizada econômica e tecnicamente justamente pela utilização das novas tecnologias disponibilizadas, em mais um exemplo de aplicação da relação sinérgica da revolução em andamento.
Dessa maneira, como já mencionado, a primeira rede de computadores formou-se por meio da ARPANet, que iniciou suas atividades oficialmente em 1° de setembro de 1969. Entretanto, para que os computadores pudessem comunicar-se entre si era necessária a criação de um protocolo padronizado, uma espécie de “tradutor” entre as máquinas. Para tal fim, designou-se o padrão TCP/IP, que conseguiu hegemonia e acabou sendo adotado em todo o mundo, o que prevalece até hoje.
Aliás, em 1978 foi criado o primeiro modem para PC (decorrente do esforço pessoal de Ward Christensen e Randy Suessem) o qual permitia a transferência direta de arquivos entre computadores sem passar por um sistema central, ou seja, sem passar pela ARPANet. No ano seguinte, Christensen e Suessem divulgaram livremente seu protocolo objetivando o seu uso público, para que a maior quantidade de pessoas possível pudesse trocar arquivos daquela maneira, em uma espécie de movimento contracultural e que terminou por potencializar e democratizar a ampliação da rede. Essa conjunção de fatores viabilizou, ao final, que qualquer pessoa com conhecimentos tecnológicos e um PC tivesse a alternativa de participar de uma rede horizontal de troca de informações, apesar de que, em 1990, os não-iniciados ainda tinham dificuldade para usar a Internet e os recursos gráficos eram bastante limitados .
Foi então que, naquele ano de 1990, no centro de pesquisas nucleares da Europa (CERN), desenvolveu-se a Word Wide Web – WWW (teia mundial) – a partir de um projeto original intitulado ENQUIRE . O CERN criou um formato para documentos flexíveis em hipertexto (HTML), bem como um protocolo de transferência dos mesmos – o HTTP – e, ainda, um formato padronizado de endereços – URL, que ainda hoje são os padrões utilizados e que permitiram, na seqüência, a criação de instrumentos de fácil uso da rede . Houve, portanto, uma sinergia entre os esforços americanos e europeus para desenvolvimento das tecnologias e softwares para criação da atual Internet.
Dessa maneira, o formato aberto e flexível da rede tornou-se aplicável a todos os tipos de atividades, em diferentes contextos, locais e culturas, conectando-os eletronicamente. Em pouco tempo foram surgindo os navegadores (browsers) que permitiam “surfar” na rede, criando uma verdadeira teia mundial. Aliás, o software nomeado “WorldWideWeb” (posteriormente chamado de Nexus para não confundir com a rede mundial), desenvolvido por Tim Berners-Lee em 1990, é considerado o primeiro navegador de Internet. Porém, a explosão de popularidade da “web” somente ocorreu com a disponibilização do “Mosaic”, desenvolvido no Centro Nacional de Aplicações para Supercomputadores (NCSA), e que teve sua primeira versão apresentada em setembro de 1993 .
Nos anos seguintes, ocorreria uma verdadeira “guerra” dos “browsers”, principalmente entre o Netscape, que saiu na frente, e o Internet Explorer, da Microsoft. Esta, já então uma potência tecnológica e econômica, detentora de um virtual monopólio dos sistemas operacionais populares, acabou por dominar quase totalmente o mercado, somente sofrendo relativo abalo com o lançamento do navegador “Firefox” em 2002, hoje utilizado por aproximadamente 35% dos “internautas” .
A Internet, no ano de 2007, alcança cerca de um bilhão e duzentos milhões de pessoas (≈ 17% da população mundial), com crescimento de cerca de 200% nos últimos sete anos , um aumento tão grande quanto desigualmente distribuído pelo globo. Enquanto a taxa de penetração da Internet na América do Norte já alcança o índice de 70%, a África permanece em irrisórios 5%. É uma realidade sobre a qual devem ser lançados pensamentos para uma reflexão sobre seu mecanismo e conseqüências (dados de 2007).
Por tudo quanto mencionado até o momento, o que se deve manter em mente é que o processo de transformação tecnológica, como uma dinâmica interna da sociedade, gerou alterações substanciais na economia, na cultura, na política e nos mais variados aspectos das relações sociais. A característica dessas relações segue o padrão de redes, onde há uma inter-relação e interdependência entre os diversos pontos da teia, de maneira que sua forma de articulação é a característica dominante no mundo contemporâneo. As conseqüências mais evidentes para a economia e o trabalho serão expostas na seqüência, tendo em vista que são importantes esferas que determinam diversos aspectos dos sistemas políticos e democráticos.
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5 de jun. de 2009
RESUMO - DEMOCRACIA NAS SOCIEDADES DA INFORMAÇÃO E DO CONHECIMENTO
Caros amigos, segue o resumo de minha dissertação. Se houver interesse, mande-me um e-mail que enviarei um arquivo contendo todo o trabalho
(rodrigo.neves@ac.gov.br).
Palavras-chave: Democracia; Pós-Modernidade; TICs; Sociedades da Informação e do Conhecimento; e-Participação; Espaço Público Virtual.
Tribunais Internacionais
Caracteríticas dos Tribunais Internacionais
Corte Internacional de Justiça - CIJ
Função Principal:
Trata-se de um tribunal internacional, principalmente para julgar questões referentes a paz e segurança mundiais, conflitos de fronteiras e outros temas de direito internacional. É o principal órgão judiciário da ONU e previsto na Carta das Nações Unidas.
Estrutura:
O CIJ faz parte da estrutura da ONU, que conta ainda com uma Assembléia Geral, Conselho Econômico e Social, Secretariado e Conselho de Segurança.
Especificamente, a CIJ é formada por 15 magistrados que são escolhidos por processo eletivo.
Funcionamento e procedimento:
É um tribunal permanente, sediado em Haia. Os idiomas oficiais são inglês e francês. O procedimento segue duas fases, uma escrita e uma oral. A deliberação da CIJ é secreta e tomada por maioria de votos, com a sentença sendo lida em público. A qualquer momento as partes podem estabelecer solução negociada. Exceto para os Estados que não são partes da ONU, o acesso é gratuito.
Competência:
Tem competência para julgar quaisquer litígios que as partes a ela submetam. É um dos tribunais com competência mais ampla na atualidade.
Partes possíveis no Sistema:
Apenas Estados podem ser partes perante a Corte, apesar de reconhecer organizações internacionais como sujeitos de direito internacional público.
Obrigatoriedade do Sistema:
Os Estados membros não estão obrigados a submeter-se à sua jurisdição. A jurisdição se dará com a aceitação em cada caso ou quando os Estados assinarem tratados internacionais que estipulem a competência da CIJ. Podem, ainda, aceitar a jurisdição da Corte impondo restrições, a seu critério (chamadas de reservas de jurisdição).
Vinculação das Decisões:
A sentença é obrigatória e inapelável
Efetividade do Sistema:
A CIJ não possui poder ou mecanismos para impor suas decisões, que dependem da boa-fé dos Estados.
Desafios:
Reconhecimento internacional da Corte como foro legítimo para solução de litígios.
Organização Mundial do Comércio - OMC
Função Principal:
Administrar um sistema de solução de controvérsias comerciais entre os estados, servindo como foro de negociações e monitoramento das políticas comerciais do membros, bem como implementar acordos na área comercial
Estrutura:
A OMC é composta de um Órgão de Solução de Controvérsias (OSC), que se utiliza da Painéis (1ª instância), compostos de 3 indivíduos, que apresentam relatório sobre a controvérsia. Existe, ainda, um Órgão de Apelação (OAp – responsável por julgar recursos contra decisões dos painéis) e o Secretariado (questões burocráticas).
Funcionamento e procedimento:
A fase inicial refere-se às consultas. Se não houver acordo, estabelece-se os termos de referência, onde se fixará os limites da competência do painel. Colhidas provas, o painel apresentará um relatório provisório e confidencial às partes, que farão comentários. Após será divulgado o relatório final, que será aprovado pelo OSC por consenso reverso. Cape recurso ao OAp, onde as partes apresentam seus argumentos escritos e em audiência. Com a aprovação pelo OSC do relatório do painel ou do OAp, encerra-se a fase jurisdicional. Existe, ainda, uma fase de implementação, que poderá resultar em “retaliações”
Competência:
Tem competência para julgar quaisquer controvérsias entre membros da OMC que derivem dos acordos firmados no âmbito da OMC, inclusive de seu acordo constitutivo.
Partes possíveis no Sistema:
Apesar de excepcionado por novos ramos, o direito internacional reconhece apenas aos Estados o direito de postular perante a jurisdição internacional. A OMC manteve o caráter estatal quanto à capacidade para intervir no procedimento.
Obrigatoriedade do Sistema:
A jurisdição é compulsória para seus membros
Vinculação das Decisões:
A sentença gera responsabilidade internacional do Membro da OMC, reconhecendo-se sua obrigação de revogar ou alterar a medida questionada.
Efetividade do Sistema:
A OMC é o mecanismo mais eficaz para assegurar direitos decorrentes das negociações em que o país toma parte que trate sobre relações econômicas internacionais. Entretanto, a fase de implementação tem sido o momento mais crítico, pois ainda falta maior de legalismo nessa fase.
Desafios:
Criar regras claras na implementação das decisões do OSC que gerem vantagens efetivas durante o processo de solução de controvérsia.
Tribunais Penais Internacionais
Função Principal:
Julgar os mais graves crimes contra a humanidade.
Estrutura:
Existem os TIPs ad hoc e o permanente.
Os ad hoc, criados pelo CS da ONU, possuem três órgãos: os juízos, o procurador e a secretaria.
O TPI divide-se em: Presidência do Tribunal, seções de recursos, julgamento de 1ª instância e instrução, gabinete do Procurador e Secretaria.
Funcionamento e procedimento:
No TIP, primeiramente o Procurador realiza a primeira avaliação do caso. Se entender procedente, encaminha pedido de autorização para iniciar um inquérito. Uma audiência final confirma ou não a procedência da acusação. Na seqüência, instrui-se o processo, culminando em sentença. Cabe apelação ou revisão.
Competência:
Graves crimes contra a humanidade ocorridas nos territórios dos Estados Partes ou por um nacional desses estados.
Partes possíveis no Sistema:
Como partes ativas: Estado Parte, o CS e o Procurador.
Partes passivas: qualquer pessoa física (foi adotado o princípio da responsabilidade internacional penal do indivíduo).
Obrigatoriedade do Sistema:
Total para o indivíduo. Os Estados Partes devem cooperar.
Vinculação das Decisões:
Por serem indivíduos os sujeitos passivos, total.
Efetividade do Sistema:
Os ad hoc nos casos da Iuguslávia e Ruanda tiveram um certo grau de efetividade, o que incentivou a criação do tribunal permanente.
Desafios:
A imposição política é o mais difícil que o TPI terá de contornar, especialmente pelo fato da hiperpotência global, os Estados Unidos, estar fazendo uma oposição ferrenha e ativa contra sua consolidação.
Tribunal Internacional do Direito do Mar
Função Principal:
Regular o acesso e o uso dos recursos manrinhos.
Estrutura:
Possui sede em Hamburgo, sendo composto por 21 membros independentes. Possui Câmaras que podem ser criadas. Existem hoje as seguintes: de controvérsia dos fundos marinhos; de procedimento sumário; para disputas sobre áreas pesqueiras; para disputas sobre meio-ambiente marinho; especial para a conservação e exploração sustentável dos estoques de peixe-espada no sudeste do oceano pacífico.
Funcionamento e procedimento:
O procedimento está dividido em duas etapas: uma escrita e outra oral. As audiências são públicas. A sentença, lida em sessão pública, não admite recurso. Há possibilidade apenas de revisão quanto aos efeitos.
Competência:
Competência material exclusiva sobre disputas referentes a atividades desenvolvidas nos fundos marinhos que se estendem para além dos limites nacionais.
Partes possíveis no Sistema:
Somente Estados.
Obrigatoriedade do Sistema:
É obrigatório aos Estados Partes.
Vinculação das Decisões:
A sentença representa uma decisão final e vinculante para as partes. O cumprimento depende da boa fé dos Estados.
Efetividade do Sistema:
Há um grande problema quanto às competências concorrentes. O sistema possui alto nível de flexibilidade, dando um sentido prático quanto à natureza das relações entre países e transparências no rito procedimental.
Desafios:
Deve-se alcançar maior adesão de grande parte do mundo industrializado e criar um regime oceânico internacional como um pilar da ordem internacional no século que se inicia.
Centro de Solução de Controvérsias sobre Investimentos (ICSID)
Função Principal:
Solução de controvérsias relacionadas aos investimentos internacionais, adotando: normas administravas e financeiras; e regras de procedimento para a instituição de conciliação e arbitragem.
Estrutura:
É uma Organização do Banco Mundial. Possui dois órgãos: Conselho Administrativo e Secretariado. Possui, ainda, dois painéis: de conciliação e de arbitragem.
Funcionamento e procedimento:
Há diferenças na utilização do sistema por estados-membros e não membros. Estes submetem-se à Additional Facility Rules (AFT). Há uma fase de conciliação e uma de arbitragem.
Competência:
Sobre litígios oriundos de relações de investimento quando tenha havido previsão escrita.
Partes possíveis no Sistema:
Estado-contratante x nacional (PF ou PJ) de outro Estado-contratante e vice-versa.
Obrigatoriedade do Sistema:
Deve haver consentimento escrito (tratados, contratos etc), passando a ser obrigatório.
Vinculação das Decisões:
O laudo arbitral tem força de sentença nacional nos estados-contratantes.
Efetividade do Sistema:
É uma alternativa viável par solução de controvérsias sobre investimentos.
Desafios:
Aumento da transparência dos procedimentos, criação de dispositivos para conexão entre causas.
Câmara de Comércio Internacional
Função Principal:
Organizar e administrar arbitragens que se realizam em conformidade com seu regulamento.
Estrutura:
A Corte é composta de um presidente, vice-presidentes, membros e membros suplentes, auxiliados por uma Secretaria.
Funcionamento e procedimento:
Instaura-se arbitragem com requerimento à Secretaria. O Requerido tem 30 dias para contestar. Estabelece-se um cronograma do procedimento arbitral através da “ata de missão”, onde se estabelece a extensão da competência dos árbitros. Estes apresentam uma minuta da decisão à Corte e depois divulga às partes após o pagamento das custas. Da decisão só cabe pedido de correção por erro material.
Competência:
É fixada pelos próprios particulares.
Partes possíveis no Sistema:
Particulares
Obrigatoriedade do Sistema:
Obrigatório quando previsto em instrumento.
Vinculação das Decisões:
Se o país-sede do local da execução for signatário da Convenção de Nova Iorque, será executada como sentença nacional.
Efetividade do Sistema:
Tem solucionado a maioria dos problemas e evita a procrastinação das partes.
Desafios:
Redução de custos.
Tribunal de Justiça das Comunidades Européias
Função Principal:
Garantir o respeito do direito na interpretação e aplicação do tratado que criou a UE e Estabelecer e fundamentar os critérios jurídicos que alicerçam os pilares da integração econômica políticas e social européia.
Estrutura:
O TJCE é composto de um juiz por cada Estado-membro, eleitos por seis anos. Os juízes são assistidos por oito advogados-gerais. Há, ainda, o Tribunal de Primeira Instância, com pelo menos um juiz de cada Estado.
Funcionamento e procedimento:
O principal instrumento para uniformização da interpretação é o reenvio prejudicial. O juiz nacional, em caso de obscuridade da norma comunitária, solicita manifestação do Tribunal de Justiça. Este não se manifesta sobre aspectos materiais da causa.
Corte Internacional de Justiça - CIJ
Função Principal:
Trata-se de um tribunal internacional, principalmente para julgar questões referentes a paz e segurança mundiais, conflitos de fronteiras e outros temas de direito internacional. É o principal órgão judiciário da ONU e previsto na Carta das Nações Unidas.
Estrutura:
O CIJ faz parte da estrutura da ONU, que conta ainda com uma Assembléia Geral, Conselho Econômico e Social, Secretariado e Conselho de Segurança.
Especificamente, a CIJ é formada por 15 magistrados que são escolhidos por processo eletivo.
Funcionamento e procedimento:
É um tribunal permanente, sediado em Haia. Os idiomas oficiais são inglês e francês. O procedimento segue duas fases, uma escrita e uma oral. A deliberação da CIJ é secreta e tomada por maioria de votos, com a sentença sendo lida em público. A qualquer momento as partes podem estabelecer solução negociada. Exceto para os Estados que não são partes da ONU, o acesso é gratuito.
Competência:
Tem competência para julgar quaisquer litígios que as partes a ela submetam. É um dos tribunais com competência mais ampla na atualidade.
Partes possíveis no Sistema:
Apenas Estados podem ser partes perante a Corte, apesar de reconhecer organizações internacionais como sujeitos de direito internacional público.
Obrigatoriedade do Sistema:
Os Estados membros não estão obrigados a submeter-se à sua jurisdição. A jurisdição se dará com a aceitação em cada caso ou quando os Estados assinarem tratados internacionais que estipulem a competência da CIJ. Podem, ainda, aceitar a jurisdição da Corte impondo restrições, a seu critério (chamadas de reservas de jurisdição).
Vinculação das Decisões:
A sentença é obrigatória e inapelável
Efetividade do Sistema:
A CIJ não possui poder ou mecanismos para impor suas decisões, que dependem da boa-fé dos Estados.
Desafios:
Reconhecimento internacional da Corte como foro legítimo para solução de litígios.
Organização Mundial do Comércio - OMC
Função Principal:
Administrar um sistema de solução de controvérsias comerciais entre os estados, servindo como foro de negociações e monitoramento das políticas comerciais do membros, bem como implementar acordos na área comercial
Estrutura:
A OMC é composta de um Órgão de Solução de Controvérsias (OSC), que se utiliza da Painéis (1ª instância), compostos de 3 indivíduos, que apresentam relatório sobre a controvérsia. Existe, ainda, um Órgão de Apelação (OAp – responsável por julgar recursos contra decisões dos painéis) e o Secretariado (questões burocráticas).
Funcionamento e procedimento:
A fase inicial refere-se às consultas. Se não houver acordo, estabelece-se os termos de referência, onde se fixará os limites da competência do painel. Colhidas provas, o painel apresentará um relatório provisório e confidencial às partes, que farão comentários. Após será divulgado o relatório final, que será aprovado pelo OSC por consenso reverso. Cape recurso ao OAp, onde as partes apresentam seus argumentos escritos e em audiência. Com a aprovação pelo OSC do relatório do painel ou do OAp, encerra-se a fase jurisdicional. Existe, ainda, uma fase de implementação, que poderá resultar em “retaliações”
Competência:
Tem competência para julgar quaisquer controvérsias entre membros da OMC que derivem dos acordos firmados no âmbito da OMC, inclusive de seu acordo constitutivo.
Partes possíveis no Sistema:
Apesar de excepcionado por novos ramos, o direito internacional reconhece apenas aos Estados o direito de postular perante a jurisdição internacional. A OMC manteve o caráter estatal quanto à capacidade para intervir no procedimento.
Obrigatoriedade do Sistema:
A jurisdição é compulsória para seus membros
Vinculação das Decisões:
A sentença gera responsabilidade internacional do Membro da OMC, reconhecendo-se sua obrigação de revogar ou alterar a medida questionada.
Efetividade do Sistema:
A OMC é o mecanismo mais eficaz para assegurar direitos decorrentes das negociações em que o país toma parte que trate sobre relações econômicas internacionais. Entretanto, a fase de implementação tem sido o momento mais crítico, pois ainda falta maior de legalismo nessa fase.
Desafios:
Criar regras claras na implementação das decisões do OSC que gerem vantagens efetivas durante o processo de solução de controvérsia.
Tribunais Penais Internacionais
Função Principal:
Julgar os mais graves crimes contra a humanidade.
Estrutura:
Existem os TIPs ad hoc e o permanente.
Os ad hoc, criados pelo CS da ONU, possuem três órgãos: os juízos, o procurador e a secretaria.
O TPI divide-se em: Presidência do Tribunal, seções de recursos, julgamento de 1ª instância e instrução, gabinete do Procurador e Secretaria.
Funcionamento e procedimento:
No TIP, primeiramente o Procurador realiza a primeira avaliação do caso. Se entender procedente, encaminha pedido de autorização para iniciar um inquérito. Uma audiência final confirma ou não a procedência da acusação. Na seqüência, instrui-se o processo, culminando em sentença. Cabe apelação ou revisão.
Competência:
Graves crimes contra a humanidade ocorridas nos territórios dos Estados Partes ou por um nacional desses estados.
Partes possíveis no Sistema:
Como partes ativas: Estado Parte, o CS e o Procurador.
Partes passivas: qualquer pessoa física (foi adotado o princípio da responsabilidade internacional penal do indivíduo).
Obrigatoriedade do Sistema:
Total para o indivíduo. Os Estados Partes devem cooperar.
Vinculação das Decisões:
Por serem indivíduos os sujeitos passivos, total.
Efetividade do Sistema:
Os ad hoc nos casos da Iuguslávia e Ruanda tiveram um certo grau de efetividade, o que incentivou a criação do tribunal permanente.
Desafios:
A imposição política é o mais difícil que o TPI terá de contornar, especialmente pelo fato da hiperpotência global, os Estados Unidos, estar fazendo uma oposição ferrenha e ativa contra sua consolidação.
Tribunal Internacional do Direito do Mar
Função Principal:
Regular o acesso e o uso dos recursos manrinhos.
Estrutura:
Possui sede em Hamburgo, sendo composto por 21 membros independentes. Possui Câmaras que podem ser criadas. Existem hoje as seguintes: de controvérsia dos fundos marinhos; de procedimento sumário; para disputas sobre áreas pesqueiras; para disputas sobre meio-ambiente marinho; especial para a conservação e exploração sustentável dos estoques de peixe-espada no sudeste do oceano pacífico.
Funcionamento e procedimento:
O procedimento está dividido em duas etapas: uma escrita e outra oral. As audiências são públicas. A sentença, lida em sessão pública, não admite recurso. Há possibilidade apenas de revisão quanto aos efeitos.
Competência:
Competência material exclusiva sobre disputas referentes a atividades desenvolvidas nos fundos marinhos que se estendem para além dos limites nacionais.
Partes possíveis no Sistema:
Somente Estados.
Obrigatoriedade do Sistema:
É obrigatório aos Estados Partes.
Vinculação das Decisões:
A sentença representa uma decisão final e vinculante para as partes. O cumprimento depende da boa fé dos Estados.
Efetividade do Sistema:
Há um grande problema quanto às competências concorrentes. O sistema possui alto nível de flexibilidade, dando um sentido prático quanto à natureza das relações entre países e transparências no rito procedimental.
Desafios:
Deve-se alcançar maior adesão de grande parte do mundo industrializado e criar um regime oceânico internacional como um pilar da ordem internacional no século que se inicia.
Centro de Solução de Controvérsias sobre Investimentos (ICSID)
Função Principal:
Solução de controvérsias relacionadas aos investimentos internacionais, adotando: normas administravas e financeiras; e regras de procedimento para a instituição de conciliação e arbitragem.
Estrutura:
É uma Organização do Banco Mundial. Possui dois órgãos: Conselho Administrativo e Secretariado. Possui, ainda, dois painéis: de conciliação e de arbitragem.
Funcionamento e procedimento:
Há diferenças na utilização do sistema por estados-membros e não membros. Estes submetem-se à Additional Facility Rules (AFT). Há uma fase de conciliação e uma de arbitragem.
Competência:
Sobre litígios oriundos de relações de investimento quando tenha havido previsão escrita.
Partes possíveis no Sistema:
Estado-contratante x nacional (PF ou PJ) de outro Estado-contratante e vice-versa.
Obrigatoriedade do Sistema:
Deve haver consentimento escrito (tratados, contratos etc), passando a ser obrigatório.
Vinculação das Decisões:
O laudo arbitral tem força de sentença nacional nos estados-contratantes.
Efetividade do Sistema:
É uma alternativa viável par solução de controvérsias sobre investimentos.
Desafios:
Aumento da transparência dos procedimentos, criação de dispositivos para conexão entre causas.
Câmara de Comércio Internacional
Função Principal:
Organizar e administrar arbitragens que se realizam em conformidade com seu regulamento.
Estrutura:
A Corte é composta de um presidente, vice-presidentes, membros e membros suplentes, auxiliados por uma Secretaria.
Funcionamento e procedimento:
Instaura-se arbitragem com requerimento à Secretaria. O Requerido tem 30 dias para contestar. Estabelece-se um cronograma do procedimento arbitral através da “ata de missão”, onde se estabelece a extensão da competência dos árbitros. Estes apresentam uma minuta da decisão à Corte e depois divulga às partes após o pagamento das custas. Da decisão só cabe pedido de correção por erro material.
Competência:
É fixada pelos próprios particulares.
Partes possíveis no Sistema:
Particulares
Obrigatoriedade do Sistema:
Obrigatório quando previsto em instrumento.
Vinculação das Decisões:
Se o país-sede do local da execução for signatário da Convenção de Nova Iorque, será executada como sentença nacional.
Efetividade do Sistema:
Tem solucionado a maioria dos problemas e evita a procrastinação das partes.
Desafios:
Redução de custos.
Tribunal de Justiça das Comunidades Européias
Função Principal:
Garantir o respeito do direito na interpretação e aplicação do tratado que criou a UE e Estabelecer e fundamentar os critérios jurídicos que alicerçam os pilares da integração econômica políticas e social européia.
Estrutura:
O TJCE é composto de um juiz por cada Estado-membro, eleitos por seis anos. Os juízes são assistidos por oito advogados-gerais. Há, ainda, o Tribunal de Primeira Instância, com pelo menos um juiz de cada Estado.
Funcionamento e procedimento:
O principal instrumento para uniformização da interpretação é o reenvio prejudicial. O juiz nacional, em caso de obscuridade da norma comunitária, solicita manifestação do Tribunal de Justiça. Este não se manifesta sobre aspectos materiais da causa.
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O Que é Teoria - Otaviano Pereira
Tatuapé/SP: Editora Brasiliense, 2003. 90 páginas.
I Abordagem Geral
Etimologia: a palavra nos dicionários
Nas enciclopédias e dicionários é comum referir “teoria” a uma atividade puramente intelectual, abstrata e contemplativa, muitas vezes como antítese da prática. Acaso a compreendamos apenas como um ato intelectivo, fica-se limitado apenas ao campo da pura abstração. Muitos questionam o afastamento dos teóricos em relação a prática, por exemplo. Como essas confusões estão impregnadas em nós pela escola, tradição e cultura, é necessário que, metodologicamente, detectemos esse senso-comum para possibilitar uma libertação.
Em relação ao ensino na atualidade, têm-se considerado antipedagógico atividades de caráter crítico e mais profundo, fazendo com que as aulas sejam superficiais, destinada à uma clientela que exige um ensino “leve”, cheio de malabarismos, fazendo-se os professores de “camelôs do ensino” e pouco exigindo no labor, pesquisa, articulação teórica ou senso crítico.
Voltando à questão da teoria, este termo, no dicionário, remete-nos à abstração, o que é parcialmente correto, mas pode levar à falsa percepção de que “teoria” e “abstração” são sinônimos. Disso pode resultar outro equívoco, o de polarizar teoria e prática. Assim, muitos dizem que os teóricos não conhecem a prática e que a teoria, na prática é diferente, etc, demonstrando um engano de confundir teoria com abstração, como se fosse um conhecimento desarticulado da realidade. Devemos, portanto, entender teoria em seu verdadeiro significado, já que essa confusão nos atrapalha.
É preciso, ao abandonar o simplismo dos conceitos, compreender que a teoria se refere à percepção do homem em seu meio, de forma completa, não somente como um ser racional, mas também como alguém que sente e age. Teorizar, nesse contexto, não é somente elaborar idéias e uma contemplação abstrata, mas também, e principalmente, uma atividade antropológica.
O Problema da teoria no Pensamento Clássico
A Teoria Clássica do Pensamento converge para dois pontos: a lógica e a metafísica. A boa compreensão da primeira é essencial para formação de qualquer pensamento, inclusive para refutar a teoria clássica, além de facilitar a compreensão da segunda, que é a doutrina do ser, eixo central da abordagem clássica e para a qual tudo converge.
Teorizar passa, portanto, pela crítica do conhecimento, que funda-se na lógica. Esta, no ordem clássica, serve de instrumento para criação de um sistema organizacional perfeito que não deixa noções, conceitos e juízos sem delimitações ou esclarecimentos, o que torna o pensamento pouco dinâmico e menos concreto - mais intelectivo – portanto quase que somente abstração.
Esse raciocínio abstrato faz que se chegue a uma supremacia do mental sobre o real, tendo a filosofia como a “ciência primeira”, hierarquicamente superior às ciências do objeto ou da natureza física, alcançando-se, portanto, a metafísica.
A teoria clássica vê o homem como um “depositário de conhecimento” que, por meio de uma “ginástica mental”, se reduz praticamente a um ente intelectual ou máquina pensante, que busca tão somente uma ação mecânica de adequação dos objetos à mente ou esta àquela. Problemas surgem quando se contrapõem questões formalmente contraditórios (teoria e ação, real e ideal, objeto e sujeito etc), já que na mente tais são incongruentes, mas na ordem real eles possuem uma unidade profunda. Assim, teorizar no discurso, que é dinâmico, se torna mais amplo e complexo. “A lógica clássica ajuda-nos no sentido de organização do pensamento, mas deixa a desejar no sentido de dinamização do discurso” (p. 23), razão pela qual a solução daquelas contradições se dá no encontro discursivo entre pensamento e realidade, e é justamente essa contradição que gera a unidade (caso contrário seria uniformidade).
É de ver que se erige a necessidade de um novo discurso, da “lógica dialética”, que permite uma sincronização do pensamento com a realidade. É como o regente, que transforma a pauta, letra morta, em música, mas de acordo com aquela. O pensamento, conquanto necessário, por si é vazio. “Portanto, falar em ciência da lógica enquanto leis do raciocínio (o que chamei aqui de pauta musical) e falar em discurso humano completo (a música executada) implica estágios diversos e complementares de um único caminho ou processo” (p. 25).
Esse dinamismo na contradição é o que concede unidade, não cabendo aqui a lei da não-contradição de forma rígida, já que o “discurso dialético não só parte do real, mas também reside no real”, sendo que o homem não só o elabora, mas também está nele. Em nossa mente, separamos o real do mental para poder compreendê-los, mas tal separação em verdade não existe, e é aí que vai a diferença entre teoria e abstração.
Hoje, não se discute o que pensar, mas como pensar, já que a questão do método exige uma nova atitude filosófica, havendo um impasse no vício de pensamento entre o real e o racional. Tal poderia ser resolvido por meio formal (clássica) ou anticlássica (dialética)? Essa discussão seria estéril: o que seria da letra sem a música e esta sem aquela?
O pensamento formal, baseado na lógica, arma-se para discussão de tal forma que não há outra saída que se render às suas verdades dogmáticas que, como arquitetura mental, são perfeitas. O problema é que a realidade é sempre mais ampla que o pensamento em si. Nessa discussão, o lógico formal não consegue sair do círculo vicioso de seu raciocínio, enquanto o dialético, que eventualmente tenha entrado na discussão, não percebeu que a dialética não se contrapõe à lógica formal, ainda correndo o risco de ser dogmático, e a discussão nunca chegará ao verdadeiro significado antropológico da teoria.
A lógica formal é sempre importante, já que a compreensão da realidade dela parte, mas escolher entre ela e a dialética, entendo-as como abordagens conflitantes, é um erro, já que “o ato da teoria de fato não passa de um ato de abstração intelectual. Portanto, só meio caminho andado” (p. 29).
O problema da teoria na Ciência Moderna
Qualquer ciência necessita da compreensão lógica de alguns elementos básicos, vinculando-os, com algumas novidades significativas, a um objeto e a uma relação de causa-efeito, e este vínculo é que vai indicar o método de abordagem (hipótese, indução-dedução etc), razão pela qual é na experimentação que se dá a ciência moderna. Todavia, isso não exclui o lado da abstração mental, que é dada pela hipótese, uma elaboração mais ou menos solta, dada em razão de questões que instiguem o cientista quanto a um fenômeno.
É na teoria clássica que a ciência moderna se baseia, onde, por exemplo, a dedução-indução (pensamento formal) vincula-se à análise-síntese (fenômeno observado). Se não se pensa, não se faz experiência. Não há que se falar em umas sem as outras, porque não há ciência na indução sem a dedução e a análise necessita da síntese. Dessa forma, também a ciência é provocadora da unidade (formal/experimental).
Para melhor compreensão, existem três modalidades de ciência: formal (lógica e matemática); empírico-formal (física, biologia, química etc); e hermenêuticas ou interpretativas (humanas).
Para compreensão da ciência moderna, é necessário a compreensão da indução que, no plano formal, exige explorar todos os casos para generalização e, no plano científico, apenas alguns casos para generalização da teoria. É, portanto, um modo de raciocínio que passa do particular para o geral.
Na lógica formal, o número de exemplos é que tem importância, enquanto na indução científica é o caráter de necessidade e generalidade nas verdades induzidas e em alguns casos repetidos, o que lhe confere uma ligação formal num primeiro plano e autonomia experimental num segundo.
Sendo a indução formal insuficiente à ciência, ainda mais o é a dedução, onde se parte de uma visão orgânica para uma mecânica, ou seja, caminho inverso daquela. A dedução parte de uma visão geral já alcançada pela indução.
Assim, a diferença entre indução e dedução reside na direção movimento do pensamento entre o particular e o universal, mas sem se repelirem um ao outro.
Com esse entendimento, fica mais fácil compreender a relação análise-síntese, lembrando que existem a análise e a síntese racional e a experimental. A análise aplica-se a verdades não concretas, enquanto a síntese ao experimental, ambas fazendo aquele duplo movimento de raciocínio.
Dessa forma, a indução é uma espécie de análise, que decompõe o objeto, indo de sua simplicidade para a complexidade - regressivo; a dedução é uma espécie de síntese, que compõe o objeto, de sua complexidade à sua simplicidade – progressivo. Temos aí a lógica formal e a lógica material (metodologia), sendo que a primeira vai tratar daquelas operações entre si (termo, proposição e argumento) e a segunda o conhecimento correto e adequação com a verdade estabelecida a partir do fenômeno. Pode não haver conformidade entre o raciocínio e a verdade do objeto, sendo o caso de sofismas e silogismos falsos (corretos do ponto de vista mecânico).
Enquanto do ponto de vista formal há liberdade de transitar em qualquer sentido, na ciência experimental isso não é possível, já que se prende a certos princípios, quais sejam: “1) Absolutamente, a análise deve preceder à síntese; 2) é preciso que a análise vá penetrando nos elementos simples e irredutíveis e que a síntese parta dos elementos separados pela análise sem nada omitir; 3) ambas devem proceder gradualmente e sem omitir intermediários. Não omitindo nada que ainda estaria obscuro na análise. Nada de suposições ou de lacunas no raciocínio em face da observação experimental” (p. 38).
A ciência moderna, ao menos as empírico-formais, passam pelas seguintes etapas: 1) observação, uma suspeita inicial; 2) hipótese, uma possível conjectura dos fatores que influenciam e causam o fenômeno; 3) experimentação, testando a suspeita, verificando sua correção; 4) lei, expressão verbal da hipótese enquanto confirmada ou negada. Uma lei, ou conjunto de leis, pode gerar uma “teoria” (ou doutrina), tida esta tão-somente como resultado da experimentação.
É fácil confundir, por exemplo, a observação e a hipótese, apesar não serem, de forma alguma, a mesma coisa. A hipótese já é a “invenção” do cientista, que se dá a partir da observação e que gerará uma teoria. Ademais, uma hipótese comprovada pela experimentação não significa uma verdade absoluta, já que uma nova teoria pode aperfeiçoá-la, relegando-a a um estágio de pré-ciência (o que concede a característica do “não-retorno” do método científico). Nas ciências empírico-formais, o caminho é sempre progressivo e há pouco espaço à subjetividade.
Não há, igualmente, possibilidade de interpretações paralelas, que extrapolam o âmbito da pesquisa em si, já que se interessa apenas pelo resultado prático. Além, cada vez mais a ciência parte de trabalhos anteriormente realizados, em geral por equipes, tendo em vista que o acúmulo de teorias assim exige.
A ciência parte, então, de pressupostos teóricos, chaves para sua compreensão, quais sejam: A matematização: reduzir tudo a uma mensuração precisa, que a permita constituir-se em uma linguagem unitária, unívoca e universalmente válida (quilogramas, volts, hertz, amperes etc); A funcionalidade: não há preocupação com a essência dos objetos, mas como está sendo processada uma experiência e quanto ou a que medida a mesma se processa; O cárater seletivo: pré-seleção dos elementos que vai tratar para chegar à lei geral; O caráter aproximativo: símbolos matematizados são utilizados para representar uma realidade; O caráter progressivo: as teorias vão sendo aperfeiçoadas, das menos perfeitas para as mais perfeitas; E a exatidão: sua formulação deve ser unívoca e homogênea.
Podemos, dessa maneira, diferenciar a ciência moderna da filosofia clássica (uma pré-ciência do ponto de vista moderno), já que nesta havia uma abordagem qualitativa (quente, frio - phisis), enquanto, naquela, há uma abordagem quantitativa (grau da temperatura). Na ciência grega, buscava-se a essência das coisas e sua causa, a partir de uma visão antropocêntrica, enquanto a ciência moderna busca entender como as coisas interagem e sua relação de causa-efeito, a partir de uma visão excêntrica (não gira em torna de nada exterior a si mesma).
A ciência moderna, que parte de uma visão puramente técnica e excludente das questões antropológicas e metafísica, opondo-se à prática das coisas, curiosamente depende diretamente da experimentação (e é este o seu sentido de teoria). Como verdade universal, é irreversível, não em relação aos progressos que virão, mas quanto às descobertas já realizadas. Nela, a ciência moderna, o que distingue a teoria da hipótese é o momento de sua abstração em relação à experimentação. A teoria é a coroação da suposição. Por seus resultados matematizados, dá azo a novas hipóteses, bem como dá sentido à natureza com suas leis, para o homem que a interpreta.
Até o Séc. XIX, a ciência moderna ainda não havia se libertado totalmente em relação à filosofia, mas a partir de então, de forma materialista e mecanicista, os cientistas restringiram a compreensão da teoria ao âmbito da experimentação.
Falando agora da teoria nas ciências formais (especialmente na matemática), esta se dá por meio de um conjunto de postulados teóricos que, a partir da concatenação lógica de verdades aceitas racionalmente, busca uma conclusão. Está para as ciências empírico-formais (não se separando delas) como a lógica clássica para a filosofia. Como não trabalha diretamente com o objeto ou fenômeno não chega a ser exatamente uma ciência, sendo mais um conjunto de invenções simbólicas e tautológicas. O matemática “cria” mental e simbolicamente o retângulo (não parte de algo existente na natureza) e, portanto, a rigor, não se pode falar em teoria na matemática (é uma ciência do abstrato, o que dificulta estudar o ato de teorizar – em uma visão antropológica) – é uma lógica formal com troca de símbolos.
Situação menos completa ainda se dá nas ciências hermenêuticas, já que não se pode prender nem ao objeto nem à abstração formal, tendo que ser mais aberta. Seu objeto é, ao mesmo tempo, sujeito (natureza humana e social). Disso geram os seguintes problemas: a) a hermenêutica não pode ser completamente ciência por não poder enquadrar-se nos moldes das ciências empírico-formais; b) o método indutivo não é suficiente porque entra um fator novo, a interpretação, em uma situação em que deve promover um encontro entre a matematização dos resultados com a interpretação do homem, sem se prender à relação de causa e efeito.
Os seus resultados são sempre abertos e a fazem ciência da interpretação por natureza (ao contrário das ciências empírico-formais, cujas leis são absolutas), o que a nega justamente o caráter de ciência (é uma quase-ciência), justificando o perigo de se falar em teoria nas ciências humanas. Estas vão depender, portanto, das “escolas” a que se estiver vinculado.
Por fim, mais que em outras ciências, a questão antropológica está evidente. “Antes de mais nada fazem-nos ver que sua compreensão se vincula diretamente ao fato de o homem, na sua relação com o mundo, ser não só o protagonista (elemento central) de toda teoria, enquanto abstração, mas também o ser teórico-prático” (p. 63).
II Segredos da Unidade Teoria/Prática
Justificativa desta abordagem
Para uma percepção da teoria de forma mais ampla não se pode optar nem pela abordagem clássica nem pela da ciência moderna. O pensamento clássico, preso à abstração e ao raciocínio lógico, deixou de lado o elemento da síntese, que permite a junção do real e do racional, fazendo isso de tal forma que deu mais valor ao pensamento que o próprio objeto em sua concretude (o pensamento não pode servir apenas de capa). A abordagem empírico-experimental também não ajuda, já que igualmente descartou a síntese, prendendo-se a experimentação do objeto concreto e rejeitando a visão global da realidade, praticamente esquecendo-se do homem.
Nesse contexto, a filosofia (não a clássica) vem fazer uma crítica da ciência para redescobrir o homem (como classe) escondido pela tecnologia, que se encontra em um percurso histórico em busca de sua realização. E é nas ciências humanas, mesmo com seus ruídos distorcidos por escolas e ideologias, que mais se busca o conhecimento do homem concreto, do homem como sujeito.
Unidade teoria e prática na “práxis”
Questão eminentemente dialética ocorre ao se abordar a identidade e a diferença entre a teoria e a prática, tendo sempre o homem ao centro. A ação do homem se dá por um significado cultural que o diferencia do mundo material natural, sendo que para falar em teoria é necessário apreender esse significado antropológico, que implica na dependência da teoria à prática. Essa relação, como questão humana, entende-se como práxis.
O animal não pode ascender à práxis, pois age em uma prática pura, não podendo criar cultura e impedido de elaborar a teoria a partir do que faz na prática, mesmo que tenha invejável desenvolvimento em determinado tipo de ação (p. ex.: a abelha). A capacidade de contemplação sobre ação (na práxis), portanto, diferencia o homem.
A natureza também pode provocar mudanças, mas apenas como ação de mudança, enquanto a ação do homem é duplamente transformadora, pois transforma a natureza e a si próprio. “Ainda, em nível superior, esta ação transformadora (práxis) é que chega ao estágio de ação revolucionária” (p. 72). Vê-se, portanto, que o homem, ao agir, modifica-se e, “se por um lado o homem só se faz à medida que faz (ação prática), por outro lado ele só faz (como ação consciente) à medida que se faz” (p. 73).
Voltando à questão da relação prática-teoria, aquela, sendo pressuposto desta, não pode ser entendida separadamente, como prática pura, pois a prática dissociada da teoria é uma ação animal, que nos impossibilita de passar da prática à práxis (também à síntese ou à unidade). Quanto à teoria, não se pode esquecer o aspecto teórico da prática, ou seja, uma reflexão abstrata do ato que lhe dê significado cultural e teleológico, buscando, contudo, não se desvincular da prática. Por o homem poder idealizar uma prática antes dela acontecer é que a teoria serve de instrumento da práxis social. A práxis, portanto, é a ação humana refletida, objetivada pela teoria, é ação projetada, consciente e transformadora do natural, do humano e do social.
O homem não pode, por essas percepções, livrar-se nem da teoria nem da prática, o que é uma contradição. Essa contradição consubstancia-se no fato de que o homem, ao agir, assume a prática, ao mesmo tempo que a nega como prática pura, pois a relaciona a uma teoria (atividade antropológica que o animal não pode ter), já que o homem não pode criar a ação cultural a partir do nada.
Isso gera uma autonomia da teoria, já que, por meio dela, pode-se moldar e antecipar-se à prática, autonomia essa relativa pois, ao negar a prática pura, dá a ela um significado, fazendo um exercício de retorno ao que ela negou. Aliás, a separação entre uma coisa e outra não existe de modo absoluto e, não sendo o homem um ser de um ato só, não há como idealizar uma prática se ele já não se encontra nela. “Assim, essa separação é uma questão formal. Aliás, é esta separação que nos leva ao duplo vício: tanto o de colocar a prioridade na teoria como na prática” (p. 79).
Ao colocarmos prioridade na teoria caímos no idealismo, pois ela é mesmo um estágio de abstração e contemplação, mas não deve ficar nisso, para caminhar em direção à unidade. Por isso, no pensamento clássico (formal), há tendência ao dogmatismo de verdades absolutas, onde o homem e o mundo não crescem, uma vez que não se abrem à prática, antecedendo-a quase absolutamente e provocando a cisão entre o real e o racional, o real e o ideal (razão pela qual o grande problema do pensamento hoje é a questão do método).
Priorizando a prática, caímos no praticismo, onde se vê a teoria como “contemplação inútil”, em uma atitude mesmo “facista porque rompe com a crença de que o homem na sua atividade possa crescer, amadurecer, a partir de sua prática refletida, teorizada” (p. 80).
Em ambos os vícios reduz-se tudo ao senso-comum, que tende a dissolver o teórico no prático, em uma forma de perigosa fuga cultural, uma vez que a atividade humana precisa de um respaldo teórico para os avanços e para fugir da mediocridade. O senso-comum, ainda, esconde elementos à compreensão da realidade por simplificar demais as coisas, levando-nos a um estado de “inocência teórica” que representa obstáculo à articulação crítica e ascensão à práxis.
Além disso, como a prática é parte mais visível, muitas vezes não percebemos o lado teórico de nossas ações, o que é acentuado pelo senso-comum, e perceber a presença direta ou indireta da teoria nos permite uma consciência da ação e nos faz sujeitos.
Há, ainda, o aspecto ideológico que interfere na relação teórico-prática, na perspectiva de que nossos atos são ideológicos por serem sociais e históricos. Essas ideologias interferem no pensamento e na ação, conscientemente ou inconscientemente e, nesse caso, o homem é um assimilador de ideologias, mesmo que não perceba, passando a ser um repetidor delas (sendo boas ou perversas).
Outro equívoco é imaginar a teoria ligada apenas ao ato de pensar pois, em verdade, o ato teórico estabelece-se a partir de um todo de relações (ações, pensamento, desejo, sonho etc) com interferências ideológicas. “Teorizar bem, ascender à práxis, tem muito que ver com a sua capacidade de abrir-se ao mundo, aceitá-lo e/ou negá-lo para poder transformá-lo” (p. 85).
Conclusão
A obra, um livro “de bolso” de uma coleção “primeiros passos”, possui uma mensagem muito mais profunda do que, em uma primeira impressão, se possa ter. O Autor, após uma abordagem geral que permite ao leitor pouco afeito à filosofia uma base mínima de conceitos, parte para uma audaciosa incursão sobre o tema da práxis, desde seus alicerces lógicos, um tema, aliás, amplamente discutido por Hegel e Marx, o que poderia parecer pretensioso.
No entanto, ao contrário do que se poderia imaginar, Pereira consegue demonstrar claramente a aparente complexidade da dialética entre teoria e prática, não deixando dúvidas quanto à influência de uma série de fatores na formulação teórica. Ascender à práxis, assim, permite fugir do excentrismo científico ou da mediocridade do senso comum, garantindo ao homem um processo constante de avanços e recriação do seu próprio ser.
I Abordagem Geral
Etimologia: a palavra nos dicionários
Nas enciclopédias e dicionários é comum referir “teoria” a uma atividade puramente intelectual, abstrata e contemplativa, muitas vezes como antítese da prática. Acaso a compreendamos apenas como um ato intelectivo, fica-se limitado apenas ao campo da pura abstração. Muitos questionam o afastamento dos teóricos em relação a prática, por exemplo. Como essas confusões estão impregnadas em nós pela escola, tradição e cultura, é necessário que, metodologicamente, detectemos esse senso-comum para possibilitar uma libertação.
Em relação ao ensino na atualidade, têm-se considerado antipedagógico atividades de caráter crítico e mais profundo, fazendo com que as aulas sejam superficiais, destinada à uma clientela que exige um ensino “leve”, cheio de malabarismos, fazendo-se os professores de “camelôs do ensino” e pouco exigindo no labor, pesquisa, articulação teórica ou senso crítico.
Voltando à questão da teoria, este termo, no dicionário, remete-nos à abstração, o que é parcialmente correto, mas pode levar à falsa percepção de que “teoria” e “abstração” são sinônimos. Disso pode resultar outro equívoco, o de polarizar teoria e prática. Assim, muitos dizem que os teóricos não conhecem a prática e que a teoria, na prática é diferente, etc, demonstrando um engano de confundir teoria com abstração, como se fosse um conhecimento desarticulado da realidade. Devemos, portanto, entender teoria em seu verdadeiro significado, já que essa confusão nos atrapalha.
É preciso, ao abandonar o simplismo dos conceitos, compreender que a teoria se refere à percepção do homem em seu meio, de forma completa, não somente como um ser racional, mas também como alguém que sente e age. Teorizar, nesse contexto, não é somente elaborar idéias e uma contemplação abstrata, mas também, e principalmente, uma atividade antropológica.
O Problema da teoria no Pensamento Clássico
A Teoria Clássica do Pensamento converge para dois pontos: a lógica e a metafísica. A boa compreensão da primeira é essencial para formação de qualquer pensamento, inclusive para refutar a teoria clássica, além de facilitar a compreensão da segunda, que é a doutrina do ser, eixo central da abordagem clássica e para a qual tudo converge.
Teorizar passa, portanto, pela crítica do conhecimento, que funda-se na lógica. Esta, no ordem clássica, serve de instrumento para criação de um sistema organizacional perfeito que não deixa noções, conceitos e juízos sem delimitações ou esclarecimentos, o que torna o pensamento pouco dinâmico e menos concreto - mais intelectivo – portanto quase que somente abstração.
Esse raciocínio abstrato faz que se chegue a uma supremacia do mental sobre o real, tendo a filosofia como a “ciência primeira”, hierarquicamente superior às ciências do objeto ou da natureza física, alcançando-se, portanto, a metafísica.
A teoria clássica vê o homem como um “depositário de conhecimento” que, por meio de uma “ginástica mental”, se reduz praticamente a um ente intelectual ou máquina pensante, que busca tão somente uma ação mecânica de adequação dos objetos à mente ou esta àquela. Problemas surgem quando se contrapõem questões formalmente contraditórios (teoria e ação, real e ideal, objeto e sujeito etc), já que na mente tais são incongruentes, mas na ordem real eles possuem uma unidade profunda. Assim, teorizar no discurso, que é dinâmico, se torna mais amplo e complexo. “A lógica clássica ajuda-nos no sentido de organização do pensamento, mas deixa a desejar no sentido de dinamização do discurso” (p. 23), razão pela qual a solução daquelas contradições se dá no encontro discursivo entre pensamento e realidade, e é justamente essa contradição que gera a unidade (caso contrário seria uniformidade).
É de ver que se erige a necessidade de um novo discurso, da “lógica dialética”, que permite uma sincronização do pensamento com a realidade. É como o regente, que transforma a pauta, letra morta, em música, mas de acordo com aquela. O pensamento, conquanto necessário, por si é vazio. “Portanto, falar em ciência da lógica enquanto leis do raciocínio (o que chamei aqui de pauta musical) e falar em discurso humano completo (a música executada) implica estágios diversos e complementares de um único caminho ou processo” (p. 25).
Esse dinamismo na contradição é o que concede unidade, não cabendo aqui a lei da não-contradição de forma rígida, já que o “discurso dialético não só parte do real, mas também reside no real”, sendo que o homem não só o elabora, mas também está nele. Em nossa mente, separamos o real do mental para poder compreendê-los, mas tal separação em verdade não existe, e é aí que vai a diferença entre teoria e abstração.
Hoje, não se discute o que pensar, mas como pensar, já que a questão do método exige uma nova atitude filosófica, havendo um impasse no vício de pensamento entre o real e o racional. Tal poderia ser resolvido por meio formal (clássica) ou anticlássica (dialética)? Essa discussão seria estéril: o que seria da letra sem a música e esta sem aquela?
O pensamento formal, baseado na lógica, arma-se para discussão de tal forma que não há outra saída que se render às suas verdades dogmáticas que, como arquitetura mental, são perfeitas. O problema é que a realidade é sempre mais ampla que o pensamento em si. Nessa discussão, o lógico formal não consegue sair do círculo vicioso de seu raciocínio, enquanto o dialético, que eventualmente tenha entrado na discussão, não percebeu que a dialética não se contrapõe à lógica formal, ainda correndo o risco de ser dogmático, e a discussão nunca chegará ao verdadeiro significado antropológico da teoria.
A lógica formal é sempre importante, já que a compreensão da realidade dela parte, mas escolher entre ela e a dialética, entendo-as como abordagens conflitantes, é um erro, já que “o ato da teoria de fato não passa de um ato de abstração intelectual. Portanto, só meio caminho andado” (p. 29).
O problema da teoria na Ciência Moderna
Qualquer ciência necessita da compreensão lógica de alguns elementos básicos, vinculando-os, com algumas novidades significativas, a um objeto e a uma relação de causa-efeito, e este vínculo é que vai indicar o método de abordagem (hipótese, indução-dedução etc), razão pela qual é na experimentação que se dá a ciência moderna. Todavia, isso não exclui o lado da abstração mental, que é dada pela hipótese, uma elaboração mais ou menos solta, dada em razão de questões que instiguem o cientista quanto a um fenômeno.
É na teoria clássica que a ciência moderna se baseia, onde, por exemplo, a dedução-indução (pensamento formal) vincula-se à análise-síntese (fenômeno observado). Se não se pensa, não se faz experiência. Não há que se falar em umas sem as outras, porque não há ciência na indução sem a dedução e a análise necessita da síntese. Dessa forma, também a ciência é provocadora da unidade (formal/experimental).
Para melhor compreensão, existem três modalidades de ciência: formal (lógica e matemática); empírico-formal (física, biologia, química etc); e hermenêuticas ou interpretativas (humanas).
Para compreensão da ciência moderna, é necessário a compreensão da indução que, no plano formal, exige explorar todos os casos para generalização e, no plano científico, apenas alguns casos para generalização da teoria. É, portanto, um modo de raciocínio que passa do particular para o geral.
Na lógica formal, o número de exemplos é que tem importância, enquanto na indução científica é o caráter de necessidade e generalidade nas verdades induzidas e em alguns casos repetidos, o que lhe confere uma ligação formal num primeiro plano e autonomia experimental num segundo.
Sendo a indução formal insuficiente à ciência, ainda mais o é a dedução, onde se parte de uma visão orgânica para uma mecânica, ou seja, caminho inverso daquela. A dedução parte de uma visão geral já alcançada pela indução.
Assim, a diferença entre indução e dedução reside na direção movimento do pensamento entre o particular e o universal, mas sem se repelirem um ao outro.
Com esse entendimento, fica mais fácil compreender a relação análise-síntese, lembrando que existem a análise e a síntese racional e a experimental. A análise aplica-se a verdades não concretas, enquanto a síntese ao experimental, ambas fazendo aquele duplo movimento de raciocínio.
Dessa forma, a indução é uma espécie de análise, que decompõe o objeto, indo de sua simplicidade para a complexidade - regressivo; a dedução é uma espécie de síntese, que compõe o objeto, de sua complexidade à sua simplicidade – progressivo. Temos aí a lógica formal e a lógica material (metodologia), sendo que a primeira vai tratar daquelas operações entre si (termo, proposição e argumento) e a segunda o conhecimento correto e adequação com a verdade estabelecida a partir do fenômeno. Pode não haver conformidade entre o raciocínio e a verdade do objeto, sendo o caso de sofismas e silogismos falsos (corretos do ponto de vista mecânico).
Enquanto do ponto de vista formal há liberdade de transitar em qualquer sentido, na ciência experimental isso não é possível, já que se prende a certos princípios, quais sejam: “1) Absolutamente, a análise deve preceder à síntese; 2) é preciso que a análise vá penetrando nos elementos simples e irredutíveis e que a síntese parta dos elementos separados pela análise sem nada omitir; 3) ambas devem proceder gradualmente e sem omitir intermediários. Não omitindo nada que ainda estaria obscuro na análise. Nada de suposições ou de lacunas no raciocínio em face da observação experimental” (p. 38).
A ciência moderna, ao menos as empírico-formais, passam pelas seguintes etapas: 1) observação, uma suspeita inicial; 2) hipótese, uma possível conjectura dos fatores que influenciam e causam o fenômeno; 3) experimentação, testando a suspeita, verificando sua correção; 4) lei, expressão verbal da hipótese enquanto confirmada ou negada. Uma lei, ou conjunto de leis, pode gerar uma “teoria” (ou doutrina), tida esta tão-somente como resultado da experimentação.
É fácil confundir, por exemplo, a observação e a hipótese, apesar não serem, de forma alguma, a mesma coisa. A hipótese já é a “invenção” do cientista, que se dá a partir da observação e que gerará uma teoria. Ademais, uma hipótese comprovada pela experimentação não significa uma verdade absoluta, já que uma nova teoria pode aperfeiçoá-la, relegando-a a um estágio de pré-ciência (o que concede a característica do “não-retorno” do método científico). Nas ciências empírico-formais, o caminho é sempre progressivo e há pouco espaço à subjetividade.
Não há, igualmente, possibilidade de interpretações paralelas, que extrapolam o âmbito da pesquisa em si, já que se interessa apenas pelo resultado prático. Além, cada vez mais a ciência parte de trabalhos anteriormente realizados, em geral por equipes, tendo em vista que o acúmulo de teorias assim exige.
A ciência parte, então, de pressupostos teóricos, chaves para sua compreensão, quais sejam: A matematização: reduzir tudo a uma mensuração precisa, que a permita constituir-se em uma linguagem unitária, unívoca e universalmente válida (quilogramas, volts, hertz, amperes etc); A funcionalidade: não há preocupação com a essência dos objetos, mas como está sendo processada uma experiência e quanto ou a que medida a mesma se processa; O cárater seletivo: pré-seleção dos elementos que vai tratar para chegar à lei geral; O caráter aproximativo: símbolos matematizados são utilizados para representar uma realidade; O caráter progressivo: as teorias vão sendo aperfeiçoadas, das menos perfeitas para as mais perfeitas; E a exatidão: sua formulação deve ser unívoca e homogênea.
Podemos, dessa maneira, diferenciar a ciência moderna da filosofia clássica (uma pré-ciência do ponto de vista moderno), já que nesta havia uma abordagem qualitativa (quente, frio - phisis), enquanto, naquela, há uma abordagem quantitativa (grau da temperatura). Na ciência grega, buscava-se a essência das coisas e sua causa, a partir de uma visão antropocêntrica, enquanto a ciência moderna busca entender como as coisas interagem e sua relação de causa-efeito, a partir de uma visão excêntrica (não gira em torna de nada exterior a si mesma).
A ciência moderna, que parte de uma visão puramente técnica e excludente das questões antropológicas e metafísica, opondo-se à prática das coisas, curiosamente depende diretamente da experimentação (e é este o seu sentido de teoria). Como verdade universal, é irreversível, não em relação aos progressos que virão, mas quanto às descobertas já realizadas. Nela, a ciência moderna, o que distingue a teoria da hipótese é o momento de sua abstração em relação à experimentação. A teoria é a coroação da suposição. Por seus resultados matematizados, dá azo a novas hipóteses, bem como dá sentido à natureza com suas leis, para o homem que a interpreta.
Até o Séc. XIX, a ciência moderna ainda não havia se libertado totalmente em relação à filosofia, mas a partir de então, de forma materialista e mecanicista, os cientistas restringiram a compreensão da teoria ao âmbito da experimentação.
Falando agora da teoria nas ciências formais (especialmente na matemática), esta se dá por meio de um conjunto de postulados teóricos que, a partir da concatenação lógica de verdades aceitas racionalmente, busca uma conclusão. Está para as ciências empírico-formais (não se separando delas) como a lógica clássica para a filosofia. Como não trabalha diretamente com o objeto ou fenômeno não chega a ser exatamente uma ciência, sendo mais um conjunto de invenções simbólicas e tautológicas. O matemática “cria” mental e simbolicamente o retângulo (não parte de algo existente na natureza) e, portanto, a rigor, não se pode falar em teoria na matemática (é uma ciência do abstrato, o que dificulta estudar o ato de teorizar – em uma visão antropológica) – é uma lógica formal com troca de símbolos.
Situação menos completa ainda se dá nas ciências hermenêuticas, já que não se pode prender nem ao objeto nem à abstração formal, tendo que ser mais aberta. Seu objeto é, ao mesmo tempo, sujeito (natureza humana e social). Disso geram os seguintes problemas: a) a hermenêutica não pode ser completamente ciência por não poder enquadrar-se nos moldes das ciências empírico-formais; b) o método indutivo não é suficiente porque entra um fator novo, a interpretação, em uma situação em que deve promover um encontro entre a matematização dos resultados com a interpretação do homem, sem se prender à relação de causa e efeito.
Os seus resultados são sempre abertos e a fazem ciência da interpretação por natureza (ao contrário das ciências empírico-formais, cujas leis são absolutas), o que a nega justamente o caráter de ciência (é uma quase-ciência), justificando o perigo de se falar em teoria nas ciências humanas. Estas vão depender, portanto, das “escolas” a que se estiver vinculado.
Por fim, mais que em outras ciências, a questão antropológica está evidente. “Antes de mais nada fazem-nos ver que sua compreensão se vincula diretamente ao fato de o homem, na sua relação com o mundo, ser não só o protagonista (elemento central) de toda teoria, enquanto abstração, mas também o ser teórico-prático” (p. 63).
II Segredos da Unidade Teoria/Prática
Justificativa desta abordagem
Para uma percepção da teoria de forma mais ampla não se pode optar nem pela abordagem clássica nem pela da ciência moderna. O pensamento clássico, preso à abstração e ao raciocínio lógico, deixou de lado o elemento da síntese, que permite a junção do real e do racional, fazendo isso de tal forma que deu mais valor ao pensamento que o próprio objeto em sua concretude (o pensamento não pode servir apenas de capa). A abordagem empírico-experimental também não ajuda, já que igualmente descartou a síntese, prendendo-se a experimentação do objeto concreto e rejeitando a visão global da realidade, praticamente esquecendo-se do homem.
Nesse contexto, a filosofia (não a clássica) vem fazer uma crítica da ciência para redescobrir o homem (como classe) escondido pela tecnologia, que se encontra em um percurso histórico em busca de sua realização. E é nas ciências humanas, mesmo com seus ruídos distorcidos por escolas e ideologias, que mais se busca o conhecimento do homem concreto, do homem como sujeito.
Unidade teoria e prática na “práxis”
Questão eminentemente dialética ocorre ao se abordar a identidade e a diferença entre a teoria e a prática, tendo sempre o homem ao centro. A ação do homem se dá por um significado cultural que o diferencia do mundo material natural, sendo que para falar em teoria é necessário apreender esse significado antropológico, que implica na dependência da teoria à prática. Essa relação, como questão humana, entende-se como práxis.
O animal não pode ascender à práxis, pois age em uma prática pura, não podendo criar cultura e impedido de elaborar a teoria a partir do que faz na prática, mesmo que tenha invejável desenvolvimento em determinado tipo de ação (p. ex.: a abelha). A capacidade de contemplação sobre ação (na práxis), portanto, diferencia o homem.
A natureza também pode provocar mudanças, mas apenas como ação de mudança, enquanto a ação do homem é duplamente transformadora, pois transforma a natureza e a si próprio. “Ainda, em nível superior, esta ação transformadora (práxis) é que chega ao estágio de ação revolucionária” (p. 72). Vê-se, portanto, que o homem, ao agir, modifica-se e, “se por um lado o homem só se faz à medida que faz (ação prática), por outro lado ele só faz (como ação consciente) à medida que se faz” (p. 73).
Voltando à questão da relação prática-teoria, aquela, sendo pressuposto desta, não pode ser entendida separadamente, como prática pura, pois a prática dissociada da teoria é uma ação animal, que nos impossibilita de passar da prática à práxis (também à síntese ou à unidade). Quanto à teoria, não se pode esquecer o aspecto teórico da prática, ou seja, uma reflexão abstrata do ato que lhe dê significado cultural e teleológico, buscando, contudo, não se desvincular da prática. Por o homem poder idealizar uma prática antes dela acontecer é que a teoria serve de instrumento da práxis social. A práxis, portanto, é a ação humana refletida, objetivada pela teoria, é ação projetada, consciente e transformadora do natural, do humano e do social.
O homem não pode, por essas percepções, livrar-se nem da teoria nem da prática, o que é uma contradição. Essa contradição consubstancia-se no fato de que o homem, ao agir, assume a prática, ao mesmo tempo que a nega como prática pura, pois a relaciona a uma teoria (atividade antropológica que o animal não pode ter), já que o homem não pode criar a ação cultural a partir do nada.
Isso gera uma autonomia da teoria, já que, por meio dela, pode-se moldar e antecipar-se à prática, autonomia essa relativa pois, ao negar a prática pura, dá a ela um significado, fazendo um exercício de retorno ao que ela negou. Aliás, a separação entre uma coisa e outra não existe de modo absoluto e, não sendo o homem um ser de um ato só, não há como idealizar uma prática se ele já não se encontra nela. “Assim, essa separação é uma questão formal. Aliás, é esta separação que nos leva ao duplo vício: tanto o de colocar a prioridade na teoria como na prática” (p. 79).
Ao colocarmos prioridade na teoria caímos no idealismo, pois ela é mesmo um estágio de abstração e contemplação, mas não deve ficar nisso, para caminhar em direção à unidade. Por isso, no pensamento clássico (formal), há tendência ao dogmatismo de verdades absolutas, onde o homem e o mundo não crescem, uma vez que não se abrem à prática, antecedendo-a quase absolutamente e provocando a cisão entre o real e o racional, o real e o ideal (razão pela qual o grande problema do pensamento hoje é a questão do método).
Priorizando a prática, caímos no praticismo, onde se vê a teoria como “contemplação inútil”, em uma atitude mesmo “facista porque rompe com a crença de que o homem na sua atividade possa crescer, amadurecer, a partir de sua prática refletida, teorizada” (p. 80).
Em ambos os vícios reduz-se tudo ao senso-comum, que tende a dissolver o teórico no prático, em uma forma de perigosa fuga cultural, uma vez que a atividade humana precisa de um respaldo teórico para os avanços e para fugir da mediocridade. O senso-comum, ainda, esconde elementos à compreensão da realidade por simplificar demais as coisas, levando-nos a um estado de “inocência teórica” que representa obstáculo à articulação crítica e ascensão à práxis.
Além disso, como a prática é parte mais visível, muitas vezes não percebemos o lado teórico de nossas ações, o que é acentuado pelo senso-comum, e perceber a presença direta ou indireta da teoria nos permite uma consciência da ação e nos faz sujeitos.
Há, ainda, o aspecto ideológico que interfere na relação teórico-prática, na perspectiva de que nossos atos são ideológicos por serem sociais e históricos. Essas ideologias interferem no pensamento e na ação, conscientemente ou inconscientemente e, nesse caso, o homem é um assimilador de ideologias, mesmo que não perceba, passando a ser um repetidor delas (sendo boas ou perversas).
Outro equívoco é imaginar a teoria ligada apenas ao ato de pensar pois, em verdade, o ato teórico estabelece-se a partir de um todo de relações (ações, pensamento, desejo, sonho etc) com interferências ideológicas. “Teorizar bem, ascender à práxis, tem muito que ver com a sua capacidade de abrir-se ao mundo, aceitá-lo e/ou negá-lo para poder transformá-lo” (p. 85).
Conclusão
A obra, um livro “de bolso” de uma coleção “primeiros passos”, possui uma mensagem muito mais profunda do que, em uma primeira impressão, se possa ter. O Autor, após uma abordagem geral que permite ao leitor pouco afeito à filosofia uma base mínima de conceitos, parte para uma audaciosa incursão sobre o tema da práxis, desde seus alicerces lógicos, um tema, aliás, amplamente discutido por Hegel e Marx, o que poderia parecer pretensioso.
No entanto, ao contrário do que se poderia imaginar, Pereira consegue demonstrar claramente a aparente complexidade da dialética entre teoria e prática, não deixando dúvidas quanto à influência de uma série de fatores na formulação teórica. Ascender à práxis, assim, permite fugir do excentrismo científico ou da mediocridade do senso comum, garantindo ao homem um processo constante de avanços e recriação do seu próprio ser.
O Príncipe - Nicolau Maquiavel
São Paulo: Editora Marin Claret, 2005. 155 páginas.
Introdução
Na introdução, Maquiavel oferece o conteúdo do livro a Lorenzo, filho de Piero de Médicis, como sendo a coisa mais cara que possuía, ou seja, “o conhecimento das ações dos grandes homens apreendido por uma longa experiência das coisas modernas e uma contínua lição das antigas”. Diz Maquiavel que procurou escrever de forma objetiva, “sem ornamentos”, esperando que o presente auxiliasse Lorenzo a alcançar a grandeza e a Fortuna que estavam a sua espera.
Capítulo I – Os vários tipos de Estado, e como são instituídos
Sustenta Maquiavel que todos os Estados ou são repúblicas ou são principados. Estes podem ser hereditários ou recentes (que podem ser de todo novos ou anexados a um existente). O povo destes estados ou estavam acostumados ao governo de outro príncipe ou eram estados livres.
Capítulo II – As Monarquias Hereditárias
O autor foca o trabalho nos principados, especificamente na forma como podem ser mantidos e governados. Diz que a existência de uma família reinante favorece a manutenção do poder, em contraste às monarquias novas, onde é mais difícil. Nas antigas, basta que se evite transgredir costumes tradicionais e se adapte às circunstâncias imprevistas. O soberano legítimo tem menos razões para ofender o povo, o que o torna mais querido e se não tem defeitos graves será fácil manter o poder.
Capítulo III – As Monarquias Mistas
Nas monarquias novas as dificuldades aparecem, especialmente quando se trata de um anexação de um novo membro a um Estado existente, pois os homens trocam de governantes esperando sempre melhoria, o que geralmente se mostra falacioso, refletindo, então, a necessidade de opressão do povo em razão da imposição do novo governo.
Isso resultará na formação de inimigos e afastamento em relação aos que ajudaram na conquista (por não satisfazer-lhes as expectativas). Assim, o soberano necessitará sempre do favor do povo.
Maquiavel estuda o caso da ocupação de Milão pelo rei Luiz XII, da França, reconquistado duas vezes pelos italianos. Na primeira vez tal ocorreu pela falta de apoio popular à França. E na segunda, por uma sucessão de erros que o Autor passa a analisar.
Diz que os Estados anexados podem ou não ter a mesma língua, sendo mais fácil a dominação no primeiro caso, bastando a extinção da dinastia que a governava. No segundo, não havendo divergência de costumes, para manter o poder basta a manutenção das leis e dos tributos, bem como eliminar os antigos governantes.
Situação diversa é quando se conquista uma província com língua, leis e costumes diferentes. Neste caso, as dificuldades serão grandes, sendo mais seguro o novo governante fixar nele residência, o que permitirá perceber rapidamente distúrbios, controlar melhor os subordinados e desmotivar invasões estrangeiras. Outra solução, neste caso, é a fixação de colônias (caso contrário será necessário manter um exército poderoso). As colônias custarão pouco, instalando-as com o aproveitamento dos bens de uma pequena parte da população. Esta nada poderá fazer, um vez que é de pequeno número e dispersa, enquanto o resto da população terá receio de ter mesmo destino. Diz o autor que “é preciso tratar bem os homens ou então aniquilá-los”. A manutenção de um exército, além de caro, criará inimizade em todo o povo que, apesar de vencido, está em sua própria casa. Assim, é melhor fixar colônias que manter guarnições.
Além disso, o governante, na região conquistada, deverá liderar e proteger os vizinhos menos poderosos, assim como debilitar os mais poderosos, evitando que sejam invadidos por estrangeiro tão ou mais poderoso que ele próprio. Isso resulta em que sempre será chamado a intervir, pois os habitantes menos poderosos o apóiam, “movidos pela inveja dos que tinham poder maior que o seu”. Somente deve ter cuidado em evitar que alcancem grande poder. Assim sempre agiram os romanos.
Os romanos costumavam a atentar não somente aos conflitos presentes mas também aos potenciais, pois a antevisão dos males torna possível curá-los. Sabiam que as guerras não podem ser evitadas e adiá-las só trás benefícios ao inimigo.
Voltando à França, Maquiavel analisa o comportamento de Luiz XII em relação à Itália. O rei aliou-se aos venezianos, que pretendiam conquistar a região da Lombardia, e poderia ter mantido o poder na Itália não fossem seus erros. No começo, conquistando a Lombardia, logo acenaram com amizade os líderes grande parte da Itália, e então os venezianos perceberam que, para conquistar algumas cidades, tinham franqueado aos franceses 2/3 da Itália. Todos os líderes locais tinham receio da expansão dos venezianos e da Igreja, o que os manteria unidos ao rei Luís XII. Todavia, este ajudou o papa Alexandre a ocupar a Romanha, o que o enfraqueceu e fortaleceu a Igreja. Além disso, dividiu Nápoles com o Rei da Espanha, tirando um rei que poderia ser-lhe tributário por um que poderia expulsá-lo. Só se deve conquistar um reino se o pode fazer sozinho. “O Rei cometeu, portanto, cinco erros: esmagou os menos poderosos; aumentou o poder de um Estado já poderoso; trouxe á Itália um estrangeiro de grande poder; não habitou no território conquistado, nem estabeleceu nele qualquer colônia”, acrescendo-se um sexto, a tomada do território veneziano. E finaliza com uma regra geral: “quem cria o poder de outrem se arruína”.
Capítulo IV – Por que o reino de Dario, ocupado por Alexandre, não se rebelou conta os sucessores deste, após a sua morte.
Poderia parecer estranho que tendo Alexandre, o Grande, morrido pouco tempo após a conquista na Ásia, seus sucessores tenham mantido o poder sem grandes dificuldades.
Os Estados são governados de duas formas. Por um príncipe e barões, estes com poder por sua linhagem e reconhecidos como senhores. Ou pelo príncipe e seus assistentes (ministros), que têm poder em razão do poder do príncipe, não inspirando nenhuma estima particular, tendo por exemplo a França e a Turquia, respectivamente. Aquela seria fácil de conquistar, mas difícil de manter, enquanto esta difícil de conquistar mas fácil de manter.
Quem invadisse a Turquia não poderia contar com a rebelião daqueles que, detendo poder, estejam descontentes, já que os administradores seriam meros representantes do príncipe, sem poder próprio. Assim, após a conquista, e eliminada família do príncipe, ninguém mais teria prestígio com o povo.
Já na França, a aliança com algum barão poderia abrir espaço para a conquista, mas depois não bastará eliminar o príncipe, pois permanecerão os nobres, prontos a liderar novas rebeliões. “Incapaz de contentá-los ou de exterminá-los, na primeira oportunidade o conquistador perderá o domínio sobre o Estado”.
O reino de Dario se assemelhava à Turquia, o que justifica a manutenção do poder aos sucessores de Alexandre.
Os romanos, na Espanha, França e Grécia, tiveram dificuldades, pois ali existiam muitos principados. Depois de extinta as linhagens, somente Roma era reconhecida como autoridade.
Capítulo V – O modo de governar as cidades ou Estados que antes de conquistados tinham suas próprias leis.
Quando um Estado está acostumado a viver em liberdade, existe três maneiras de mantê-lo: arruinando-o; nele habitar; ou permitir, mediante tributo, manter suas leis, mas governados por um pequeno número de concidadãos amigos.
Uma cidade livre, se não aniquilada, estará sempre sujeita a rebeliões em nome da liberdade perdida, não importando o tempo ou benefícios. Nas repúblicas livres, é mais seguro devastá-las ou nelas habitar.
Ao contrário, províncias acostumadas a um príncipe, eliminado este, não gabem viver em liberdade e têm dificuldade em se rebelar, podendo ser dominada por um novo príncipe firme.
Capítulo VI – Os novos domínios conquistados com valor e com as próprias armas
Os Homens prudentes costumam observar os grandes nomes da história e procurar imitar-lhes as características que os destacaram. Em geral, o soberano adquire o poder pelo valor ou boa sorte. Mantêm-se mais os que têm valor que os de boa sorte.
Grandes soberanos nada devam à sorte a não ser a oportunidade “e suas próprias e elevadas qualidades fizeram com que aproveitassem”. Os que se tornam príncipes “por seu valor conquistam domínios com dificuldade, mas os mantêm facilmente”. Isso porque a introdução de uma nova ordem é difícil e de sucesso duvidoso, já que gera inimizade dos que são beneficiários da ordem antiga e é fracamente defendido pelos novos. Se as inovações podem ser executadas por si (sucesso) ou se precisam de ajuda (insucesso), é que vão determinar as chances da empreitada. A força é necessária, já que é fácil persuadir os povos, mas é difícil que mantenham a opinião.
Exemplo é Hiero de Siracusa. Cidadão comum, por seus méritos, tornou-se capitão e depois príncipe. Aboliu a antiga milícia e abandonou antigas amizades, fazendo novas, edificando uma base sólida. “Custou-lhe bastante trabalho adquirir uma posição elevada, mas teve pouca dificuldade em mantê-la”.
Capítulo VII – Os novos domínios conquistados com as armas alheias e boa sorte
Chegar ao poder pela sorte oferece pouco trabalho, mas dificilmente há sua manutenção. Fica-se dependente de quem o levou ao poder. Além disso, não há experiência em comandar, inexistindo forças subordinadas por laços de amizade e fidelidade. Somente se o príncipe for muito valoroso conseguirá estabelecer as bases para um poder duradouro.
César Borgia, filho do Papa Alexandre, mesmo tendo tomado providências que um homem prudente deveria ter, preparando as bases para seu poder futuro, ainda assim perdeu o poder quando a influência do pai lhe faltou.
O Autor cita, então, o desenrolar histórico de César Borgia, que destruiu as famílias mais influentes por meio de subterfúgios, conquistando seus seguidores por meio de favores e cargos. O duque percebeu que o povo, que era comumente despojado por senhores fracos, precisava de ordenação, tendo enviado um representante cruel que pacificou a situação. Após, o duque estabeleceu um tribunal civil e, visando purgar o espírito do povo aplacado pela crueldade, matou seu governador, atribuindo-lhe a crueza. “A ferocidade do espetáculo causou espanto e satisfação ao povo”.
Estando fortalecido, e não confiando na França, que lhe dera suporte no começo da empreitada, César Borgia começou a discutir novas alianças. Em relação ao futuro, destruiu a linhagem dos senhores que havia espoliado, ganhou a amizade dos nobres romanos, influenciou o colégio de cardeais e buscava o fortalecimento de seu poder antes da morte do Papa.
Todavia, a morte do pai e sua própria doença debilitaram sua posição. Todavia, sua atuação fora exemplar. O poder do duque caracterizou-se por: garantia de novos domínios, fazer amizades, conquistar pela força e pela fraude, fazer-se amado e temido pelo povo, seguido pelos soldados, destruição dos que podiam ofendê-lo, ser grato e severo, magnânimo e liberal, supressão de uma infiel milícia etc.
Capítulo VIII – Os que com atos criminosos chegaram ao governo de um Estado
Há duas outras maneiras possíveis de se tornar príncipe que não seja pela sorte ou valor: por meio vil ou favor dos concidadãos. Exemplifica com Agátocles, o siciliano, que chegou a rei de Siracusa. Após galgar postos na milícia, certa vez convocou o senado e pessoas importantes do povo para alegada discussão sobre questões importantes, quando então matou todos e tomou o poder. Segundo Maquiavel, conquistar o poder por meio de assassínio de compatriotas, traição de amigos, sem fé, piedade ou religião, são métodos que levam ao poder mas não à glória.
Outro exemplo foi Oliverotto de Fermo. Órfão, foi criado pelo Tio Giovanni, que o encaminhou para treinamento militar. Após muitos anos, achando servil a situação de obediência, solicitou ao tio sua apresentação à cidade, junto com cem cavaleiros, já que há anos estava ausente. Após serem recebidos com entusiasmo, Oliverotto e seus seguidores mataram Giovanni e demais autoridades locais. Assumiu o poder do qual não havia inimigos, já que todos mortos. Um ano após, tendo constituído nova ordem e seguro do poder, foi enganado por César Borgia, que determinou seu estrangulamento.
Pode parecer estranho que pessoas, como Agátocles, pudessem viver em segurança em seu país por longo tempo. Isso se deve ao fato de que crueldade deve ser “bem” utilizada, ou seja, uma só vez, sem dar-lhe continuidade. “As crueldades mal-empregadas são as que, sendo a princípio poucas, crescem com tempo, em vez de diminuir. De onde se deve observar que, ao tomar um Estado, o conquistador deve praticar todas as necessárias crueldades ao mesmo tempo, evitando ter de repetí-las a cada dia”. Já os benefícios “devem ser concedidos gradualmente, de forma que sejam melhor apreciados”.
Capítulo IX – O Governo Civil
Como dito, o poder pode ser alcançado por meio de seus concidadãos, em um contexto de forças do povo e da aristocracia, conforme haja mais oportunidade para um ou para outro. O apoio dos ricos é menos seguro que os das massas e essas têm objetivos mais honestos que aqueles. Um povo hostil é indesejável, mas a hostilidade dos nobres resulta não só na deserção, mas na oposição ativa, buscando eles sempre salvar-se e ficar junto ao que presumem vencedor. O povo será sempre o mesmo, mas os nobres podem ser trocados pelo prestígio a ser concedido pelo soberano. O Autor faz, então, uma análise sobre os nobres, dividindo-os entre os que compartilham ou não da sorte do soberano.
Aquele que se tornar príncipe pelo povo deve manter sua estima (o que seria fácil, pois o povo apenas pede não ser oprimido); quem for apoiado pela aristocracia, deve igualmente ganhar a estima do povo. Dessa maneira, é necessário o favor do povo e “o príncipe prudente procurará meios pelos quais seus súditos necessitem sempre do seu governo, em todas as circunstâncias possíveis – e fará, assim, com que lhe sejam sempre fiéis”.
Capítulo X – Como avaliar a força dos Estados
Quanto aos principados, há aqueles que podem se manter por forças próprias e aqueles que precisam de auxílio alheio. Neste último caso, resta fortificar-se sem se preocupar com as terras ao redor, e só com grande relutância será atacado, pois “nunca parecerá ser fácil atacar aquele que tem sua cidade bem defendida e não é odiado pelo povo”. Assim, um príncipe não terá dificuldades de se manter, desde que possua provisões e meios para se defender.
Capítulo XI – Os Estados Eclesiásticos
Restam, ainda, os Estados eclesiásticos, que são conquistados não pela força ou sorte, mas por costumes religiosos. São os mais seguros e felizes, pois respondem a razões superiores. O Autor lembra que, até Alexandre VI, o poder temporal da Igreja era limitado, já que o papa era tolhido pelos Orsini e Colona. Alexandre VI, aproveitando a invasão francesa, galgou espaços, eliminando os obstáculos ao seu poder temporal, o que foi ampliado pelo papa Júlio II.
Capítulo XII – Os diferentes tipos de milícias e tropas mercenárias
Como já dito, para conquistar ou manter o poder, é necessário bom exército. Estes podem ser próprios, mercenários, auxiliares ou mistos. Os que contam com milícia mercenária nunca terão posição segura, pois os soldados são ambiciosos e infiéis. Os comandantes desses exército ou são bons militares ou não: se o forem, tentarão tomar o poder; se não, arruinarão o soberano. “A experiência demonstra que só os príncipes e as repúblicas armadas obtêm grandes progressos, pois as forças mercenárias só sabem causar danos”.
Capítulo XIII – Forças auxiliares, mistas e nacionais
Forças auxiliares são aquelas oferecidas por aliados, e são tão prejudiciais quanto as mercenárias: “se são vencidas, isto representa uma derrota; se vencem, aprisionam quem as utiliza”. Elas são ainda mais perigosas pois são unidas e obedientes, mas a outra pessoa, enquanto os mercenários são difíceis de serem coordenados por terceiros. Assim, a eficácia das milícias auxiliares é o seu maior problema, enquanto a ineficiência é o dos mercenários.
Exemplifica com César Borgia, que contou primeiramente com milícias francesas para conquistar Ímola e Forli, posteriormente contando com mercenários e, finalmente, com força própria, aumentando sempre seu prestígio nesse processo. Outro exemplo foi Hiero de Siracusa que, receoso das tropas mercenárias, mandou chacinar todos, formando um novo exército próprio.
Carlos VII instituíra alistamento militar, cujo sistema fora posteriormente banido por seu filho, que contratou suíços e formou um exército misto com nacionais. Essa é uma forma melhor que as milícias auxiliares ou mercenárias, mas muito inferior a um exército próprio. Segundo Maquiavel, a queda do império romano iniciou-se com a contratação de mercenários gôdos.
Capítulo XIV – Os deveres do príncipe para com suas milícias.
Conforme diz o Autor, os príncipes devem, acima de tudo, serem versados na guerra, devendo empenhar todos os esforços nisto em detrimento de tudo o mais, aproveitando os tempos de paz para preparar-se aos tempos de guerra, exercitando o corpo e o espírito e estudando a história dos grandes homens. O príncipe prudente, portanto, está sempre capitalizando experiência para resistir aos golpes da adversidade.
Capítulo XV – As razões pelas quais os homens, especialmente os príncipes, são louvados ou vituperados.
Quanto ao modo de lidar com súditos e aliados, Maquiavel ressalta que praticar sempre a bondade leva a ruína, e o príncipe que deseja manter-se utilizará desta faculdade conforme seja necessário. Os soberanos são conhecidos por diversas qualidades, como cruel ou misericordioso e sério e frívolo. Mas, para manutenção do poder, não se deve apegar apenas às qualidades “boas”, já que, muitas vezes “certas qualidades que parecem virtudes levam à ruína, e outras que parecem vícios trazem como resultado o aumento da segurança e do bem-estar”.
Capítulo XVI – A liberalidade e a parcimônia
A liberalidade, aqui tida no sentido de gasto do patrimônio, levará o soberano a ter que conseguir muito dinheiro, gerando o ódio dos súditos. O príncipe prudente será miserável, agradando uma maioria que não terá maiores gastos e desagradando apenas uma minoria, a qual seria beneficiada pela liberalidade. “Por esses motivos, o príncipe não se deve incomodar de ser tido como miserável, para não ter de onerar demais os súditos, para poder defender-se e para não se tornar pobre e desprezado”. Pode-se, contudo, ser pródigo, desde que com o patrimônio alheio, dos estados pilhados.
Capítulo XVII – A crueldade e a clemência. Se é preferível ser amado ou temido
Em princípio, é melhor que o soberano seja considerado clemente, mas em casos em que precise manter o povo unido e leal, não deve se incomodar com a reputação de cruel, preferencialmente por meio de poucos exemplos duros, que afetem indivíduos isolados. Assim, idealmente, é melhor ser, ao mesmo tempo, amado e temido, sendo mais seguro optar, se for o caso, pelo temor, já que “os homens têm menos escrúpulos em ofender quem se faz amar do que quem se faz temer”. Deve-se, em todo caso, “mesmo que não se ganhe amor dos súditos, pelo menos que evite seu ódio”. Para isso, em regra deve abster-se de atentar contra o patrimônio, a não ser que possa justificar, o que é mais difícil em relação à tomar uma vida alheia. Dessa forma, o príncipe, no comando do exército, deve aceitar a fama de cruel, para manter o controle dos soldados.
Capítulo XVIII – A conduta dos príncipes e a boa-fé
O príncipe, para manter o poder, não precisa obrigatoriamente manter sempre a palavra empenhada, desde que assim haja de forma perfeitamente dissimulada. Assim agirá principalmente quando a boa-fé for contra seus interesses ou os motivos que a justificavam já não existam. O soberano deve possuir, assim, natureza tanto humana quanto animal e, neste caso, ter as qualidades da raposa e do leão. “Os homens são tão pouco argutos, e se inclinam de tal modo às necessidades imediatas, que quem quiser enganá-los encontrará sempre quem se deixe enganar”.
Não é necessário que o soberano tenha todas as qualidades já mencionadas, mas parecer que as tem é essencial. “Assim, é bom ser e parecer misericordioso, leal, humanitário, sincero e religioso; mas é preciso ter a capacidade de se converter aos atributos opostos, em caso de necessidade”. “Todos vêm nossa aparência, poucos sentem o que realmente somos”.
Capítulo XIX – Como se pode evitar o desprezo e o ódio
O príncipe deve evitar ser odiado ou desprezado, não devendo expropriar bens dos súditos sem justificativa ou parecer frívolo, volúvel e tímido. Suas decisões devem ser irrevogáveis e sua imagem de grandeza e fortaleza, devendo-se precaver, no plano interno, das conspirações e, no plano externo, das potências estrangeiras.
A melhor proteção contra as conspirações é não ser odiado pela massa, já que o conspirador será demovido pelas dificuldades e possíveis aliados temerão um benefício remoto na vitória em contraste com uma punição certa na derrota. Assim, “quando a disposição do povo lhe é propícia, o soberano tem pouco a temer com as conspirações”.
O soberano deve, ainda, procurar o equilíbrio entre agradar os grandes e o povo. Um meio útil é o parlamento, por meio do qual se exime da “censura dos nobres, ao favorecer o povo, e do ódio do povo causado pelos favores concedidos aos poderosos”, donde se extrai outra regra: “que os príncipes devem delegar para outras pessoas as tarefas como os julgamentos, e conceder os favores, pessoalmente”.
O Autor busca, então, exemplos nos imperadores romanos, demonstrando que estes, além da nobreza e do povo, tinha que satisfazer um terceiro elemento: os soldados. O soberano, muitas vezes, então, necessitava fazer o mal para manter o poder perante o partido dominante, quando corrupto este, fosse ele dos nobres, do povo ou dos soldados.
Severo, mesmo impondo ofensas ao povo, conseguiu manter o poder, com as características do leão e da raposa. Sob o pretexto de vingar a morte de Pertinax, apresentou-se em Roma com sua tropa, sendo eleito imperador pelo senado, que o temia, e matou Juliano. Teve, ainda, dois obstáculos, os quais não seria prudente serem enfrentados ao mesmo tempo - Nigrino e Albino. Ofereceu, então, a este, o título também de imperador. Após derrubar Nigrino, acusou Albino de traição e eliminou-o.
O Autor cita, então, outros imperadores e o erros que cometeram, às vezes por excesso e às vezes por falta de ação. Vê-se, pelas narrações de Maquiavel, que a causa da ruína dos imperadores romanos mencionados ou foi ódio ou o desprezo.
Capítulo XX – A utilidade de construir fortalezas, e de outras medidas que os príncipes adotam com freqüência
Alguns príncipes, receosos, desarmam os súditos. Um príncipe novo, contudo, em geral os arma, pois eles pertencem ao monarca, criando uma fidelidade pelo privilégio. Já quando há o desarmamento, os súditos sentem-se ofendidos. Além disso, o príncipe sábio deve fomentar astuciosamente inimizades, de maneira “incrementar sua grandeza superando esse obstáculo”.
Afirma o autor que, ao se conquistar um Estado com auxílio de seus habitantes, deve-se observar suas intenções. Se fora somente o descontentamento com o antigo soberano, provavelmente o príncipe terá mais apoio daqueles que estavam anteriormente satisfeitos.
Os príncipes costumam construir fortalezas para se protegerem. Contudo, essa providência, em geral útil, pode ser inconveniente, conforme o caso, com exemplos citados por Maquiavel. “Se o príncipe teme seus súditos mais do que os estrangeiros, deve construí-la; em caso contrário, não”; “devem ser criticados, porém, os que, confiando em tais meios de defesa, não se preocuparem com o ódio popular”.
Capítulo XXI – Como deve agir um príncipe para ser estimado
“Nada faz com que um príncipe seja mais estimado do que os grandes empreendimentos”. Guerras costumam ser úteis, já que deixam os concidadãos ocupados em acompanhar o desenrolar dos fatos. Com ações que se desdobram, sem intervalos, deixa pouco tempo para que as pessoas as critiquem de forma eficiente. Um príncipe deve, portanto, buscar sempre conquistar fama de grandeza e excelência.
Outro ponto é declarar sempre sua posição, fugindo da neutralidade. Se duas potências vizinhas entram em guerra, é melhor que tome partido e também entre em guerra, já que o vitorioso não quererá amigos dos quais suspeita e o derrotado não receberá um príncipe que se omitiu. Porém, não deve se aliar a alguém mais poderoso, pois, se o aliado vencer, o submeterá.
“Os príncipes devem demonstrar também apreço pelas virtudes, dar oportunidade aos mais capazes e honrar os excelentes em cada arte”, proporcionando sempre, além disso, a possibilidade de que as pessoas possam empreender comercialmente sem receio. “Além disso, precisam manter o povo entretido com festas e espetáculos, nas épocas convenientes”.
O soberano deverá, ainda, dar atenção às diversas classes, encontrando-se regularmente com seus membros, mas sem perder a dignidade majestosa.
Capítulo XXII – Os Ministros dos príncipes
Conhece-se um príncipe pelos ministros que possui, e aquele deve sempre ser capaz de identificar as obras boas e as más destes. O soberano deve, assim, descartar os que pensam mais em si do que no monarca. Por outro lado, para assegurar a fidelidade do ministro, deve honrá-lo e enriquecê-lo, fazendo-lhe favores.
Capítulo XXIII – De que modo escapar dos aduladores
Algo difícil de escapar são os aduladores, fazendo com que muitos soberanos se iludam com que se lhe dizem. A saída é escolher pessoas confiáveis a que se dê liberdade de, quando perguntados (e somente nesse caso), dizer a verdade, deliberando, depois, sozinho, sempre mantendo com firmeza a decisão – desencorajando conselhos não solicitados. O Imperador deve ser discreto, não comunicando seus propósitos antecipadamente.
Capítulo XXIV – As razões por que os príncipes da Itália perderam seus domínios
A boa conduta de um novo príncipe o fará mais poderoso que um de linhagem hereditária. Isso porque os homens, tendo um presente fabuloso, esquecem facilmente o passado. Garantindo-se contra o povo e os nobres e tendo um bom exército à disposição, dificilmente se perde o Estado. Dessa forma, em geral se perde o poder não pela sorte, mas pela indolência. Exige-se do soberano, portanto, que, nos tempos de paz, se preparem para mudança de ventos.
Capítulo XXV – O poder da sorte sobre o homem e como resistir-lhe
É recorrente acreditar que estamos fadados a um destino traçado por Deus, do qual não podemos nos desviar. Maquiavel diz, contudo, que o livre arbítrio garante autoridade sobre metade das coisas, e influência sobre a outra metade. Assim, o príncipe pode se proteger da má-sorte prevendo-a e criando obstáculos.
Ainda assim acontece de um príncipe ser solapado do poder por alteração da sorte por ter fundado nesta sua autoridade. Além, a forma correta de agir (prudente ou impetuoso, por exemplo), muda conforme o tempo, não havendo uma característica imutável que garanta o poder. Muitas vezes, como mudam os ventos e não mudam os homens, seu insucesso se justifica.
Exemplifica com o papa Júlio II, que impetuoso, obteve amplo sucesso em suas empreitadas. Porém, morreu em não muito tempo, o que não o permitiu experimentar a situação histórica que se seguiu, que exigiria maior prudência, o que não lhe seria possível, por sua natureza.
“Conclui-se, portanto, que como a sorte varia e os homens permanecem fiéis a seus caminhos, só conseguem ter êxito na medida em que seus procedimentos sejam condizentes com as circunstâncias; quando se opõem a elas, o resultado é infeliz”.
Capítulo XXVI – Exortação à libertação da Itália, dominada pelos bárbaros
Neste capítulo final, Maquiavel tenta demonstrar a Lorenzo de Médicis que a história exige dele que lidere a Itália na retomada da dignidade, e que todos os sinais teriam sido dados para que ele, inspirado nos homens do passado, subisse ao trono como soberano e pegasse em armas. Aconselha a formação de um exército próprio para defender o país dos estrangeiros. Após demonstrar a necessidade de inovações no exército italiano, afirma: “Não se deve, portanto, deixar que se perca esta oportunidade; a Itália, depois de tanto tempo, precisa encontrar seu libertador”.
Conclusão Pessoal
A obra clássica de Maquiavel tem servido, ao longo dos últimos séculos, aos mais diversos “soberanos” e “ideologias”. A suas proposições de política, em regra amorais, levam em consideração, como o mesmo diz, a realidade dos fatos e não como os fatos deveriam ser.
A crueza e objetividade de cada um dos capítulos do livro falam de posicionamentos que, na essência, permanecem existentes nas condutas dos grandes líderes mundiais, e nos oferecem um acesso direto e inconteste dos mecanismos de ganho e manutenção de poder.
Os seus conselhos aos príncipes situam-se em uma zona de eficácia e não de escala de valores, não sem estabelecer a importância da relação dos Estados-Nação (que começavam a surgir) e o povo, ainda que não necessariamente como um comportamento humanista.
O processo de secularização então em curso na Europa é o pano de fundo da obra que, de forma lúcida mas também ambíguo, estabelece a estrutura básica da ciência política moderna e que exige do líder não só planejamento, senso de oportunidade e avaliação dos possíveis resultados, mas também sabedoria.
Introdução
Na introdução, Maquiavel oferece o conteúdo do livro a Lorenzo, filho de Piero de Médicis, como sendo a coisa mais cara que possuía, ou seja, “o conhecimento das ações dos grandes homens apreendido por uma longa experiência das coisas modernas e uma contínua lição das antigas”. Diz Maquiavel que procurou escrever de forma objetiva, “sem ornamentos”, esperando que o presente auxiliasse Lorenzo a alcançar a grandeza e a Fortuna que estavam a sua espera.
Capítulo I – Os vários tipos de Estado, e como são instituídos
Sustenta Maquiavel que todos os Estados ou são repúblicas ou são principados. Estes podem ser hereditários ou recentes (que podem ser de todo novos ou anexados a um existente). O povo destes estados ou estavam acostumados ao governo de outro príncipe ou eram estados livres.
Capítulo II – As Monarquias Hereditárias
O autor foca o trabalho nos principados, especificamente na forma como podem ser mantidos e governados. Diz que a existência de uma família reinante favorece a manutenção do poder, em contraste às monarquias novas, onde é mais difícil. Nas antigas, basta que se evite transgredir costumes tradicionais e se adapte às circunstâncias imprevistas. O soberano legítimo tem menos razões para ofender o povo, o que o torna mais querido e se não tem defeitos graves será fácil manter o poder.
Capítulo III – As Monarquias Mistas
Nas monarquias novas as dificuldades aparecem, especialmente quando se trata de um anexação de um novo membro a um Estado existente, pois os homens trocam de governantes esperando sempre melhoria, o que geralmente se mostra falacioso, refletindo, então, a necessidade de opressão do povo em razão da imposição do novo governo.
Isso resultará na formação de inimigos e afastamento em relação aos que ajudaram na conquista (por não satisfazer-lhes as expectativas). Assim, o soberano necessitará sempre do favor do povo.
Maquiavel estuda o caso da ocupação de Milão pelo rei Luiz XII, da França, reconquistado duas vezes pelos italianos. Na primeira vez tal ocorreu pela falta de apoio popular à França. E na segunda, por uma sucessão de erros que o Autor passa a analisar.
Diz que os Estados anexados podem ou não ter a mesma língua, sendo mais fácil a dominação no primeiro caso, bastando a extinção da dinastia que a governava. No segundo, não havendo divergência de costumes, para manter o poder basta a manutenção das leis e dos tributos, bem como eliminar os antigos governantes.
Situação diversa é quando se conquista uma província com língua, leis e costumes diferentes. Neste caso, as dificuldades serão grandes, sendo mais seguro o novo governante fixar nele residência, o que permitirá perceber rapidamente distúrbios, controlar melhor os subordinados e desmotivar invasões estrangeiras. Outra solução, neste caso, é a fixação de colônias (caso contrário será necessário manter um exército poderoso). As colônias custarão pouco, instalando-as com o aproveitamento dos bens de uma pequena parte da população. Esta nada poderá fazer, um vez que é de pequeno número e dispersa, enquanto o resto da população terá receio de ter mesmo destino. Diz o autor que “é preciso tratar bem os homens ou então aniquilá-los”. A manutenção de um exército, além de caro, criará inimizade em todo o povo que, apesar de vencido, está em sua própria casa. Assim, é melhor fixar colônias que manter guarnições.
Além disso, o governante, na região conquistada, deverá liderar e proteger os vizinhos menos poderosos, assim como debilitar os mais poderosos, evitando que sejam invadidos por estrangeiro tão ou mais poderoso que ele próprio. Isso resulta em que sempre será chamado a intervir, pois os habitantes menos poderosos o apóiam, “movidos pela inveja dos que tinham poder maior que o seu”. Somente deve ter cuidado em evitar que alcancem grande poder. Assim sempre agiram os romanos.
Os romanos costumavam a atentar não somente aos conflitos presentes mas também aos potenciais, pois a antevisão dos males torna possível curá-los. Sabiam que as guerras não podem ser evitadas e adiá-las só trás benefícios ao inimigo.
Voltando à França, Maquiavel analisa o comportamento de Luiz XII em relação à Itália. O rei aliou-se aos venezianos, que pretendiam conquistar a região da Lombardia, e poderia ter mantido o poder na Itália não fossem seus erros. No começo, conquistando a Lombardia, logo acenaram com amizade os líderes grande parte da Itália, e então os venezianos perceberam que, para conquistar algumas cidades, tinham franqueado aos franceses 2/3 da Itália. Todos os líderes locais tinham receio da expansão dos venezianos e da Igreja, o que os manteria unidos ao rei Luís XII. Todavia, este ajudou o papa Alexandre a ocupar a Romanha, o que o enfraqueceu e fortaleceu a Igreja. Além disso, dividiu Nápoles com o Rei da Espanha, tirando um rei que poderia ser-lhe tributário por um que poderia expulsá-lo. Só se deve conquistar um reino se o pode fazer sozinho. “O Rei cometeu, portanto, cinco erros: esmagou os menos poderosos; aumentou o poder de um Estado já poderoso; trouxe á Itália um estrangeiro de grande poder; não habitou no território conquistado, nem estabeleceu nele qualquer colônia”, acrescendo-se um sexto, a tomada do território veneziano. E finaliza com uma regra geral: “quem cria o poder de outrem se arruína”.
Capítulo IV – Por que o reino de Dario, ocupado por Alexandre, não se rebelou conta os sucessores deste, após a sua morte.
Poderia parecer estranho que tendo Alexandre, o Grande, morrido pouco tempo após a conquista na Ásia, seus sucessores tenham mantido o poder sem grandes dificuldades.
Os Estados são governados de duas formas. Por um príncipe e barões, estes com poder por sua linhagem e reconhecidos como senhores. Ou pelo príncipe e seus assistentes (ministros), que têm poder em razão do poder do príncipe, não inspirando nenhuma estima particular, tendo por exemplo a França e a Turquia, respectivamente. Aquela seria fácil de conquistar, mas difícil de manter, enquanto esta difícil de conquistar mas fácil de manter.
Quem invadisse a Turquia não poderia contar com a rebelião daqueles que, detendo poder, estejam descontentes, já que os administradores seriam meros representantes do príncipe, sem poder próprio. Assim, após a conquista, e eliminada família do príncipe, ninguém mais teria prestígio com o povo.
Já na França, a aliança com algum barão poderia abrir espaço para a conquista, mas depois não bastará eliminar o príncipe, pois permanecerão os nobres, prontos a liderar novas rebeliões. “Incapaz de contentá-los ou de exterminá-los, na primeira oportunidade o conquistador perderá o domínio sobre o Estado”.
O reino de Dario se assemelhava à Turquia, o que justifica a manutenção do poder aos sucessores de Alexandre.
Os romanos, na Espanha, França e Grécia, tiveram dificuldades, pois ali existiam muitos principados. Depois de extinta as linhagens, somente Roma era reconhecida como autoridade.
Capítulo V – O modo de governar as cidades ou Estados que antes de conquistados tinham suas próprias leis.
Quando um Estado está acostumado a viver em liberdade, existe três maneiras de mantê-lo: arruinando-o; nele habitar; ou permitir, mediante tributo, manter suas leis, mas governados por um pequeno número de concidadãos amigos.
Uma cidade livre, se não aniquilada, estará sempre sujeita a rebeliões em nome da liberdade perdida, não importando o tempo ou benefícios. Nas repúblicas livres, é mais seguro devastá-las ou nelas habitar.
Ao contrário, províncias acostumadas a um príncipe, eliminado este, não gabem viver em liberdade e têm dificuldade em se rebelar, podendo ser dominada por um novo príncipe firme.
Capítulo VI – Os novos domínios conquistados com valor e com as próprias armas
Os Homens prudentes costumam observar os grandes nomes da história e procurar imitar-lhes as características que os destacaram. Em geral, o soberano adquire o poder pelo valor ou boa sorte. Mantêm-se mais os que têm valor que os de boa sorte.
Grandes soberanos nada devam à sorte a não ser a oportunidade “e suas próprias e elevadas qualidades fizeram com que aproveitassem”. Os que se tornam príncipes “por seu valor conquistam domínios com dificuldade, mas os mantêm facilmente”. Isso porque a introdução de uma nova ordem é difícil e de sucesso duvidoso, já que gera inimizade dos que são beneficiários da ordem antiga e é fracamente defendido pelos novos. Se as inovações podem ser executadas por si (sucesso) ou se precisam de ajuda (insucesso), é que vão determinar as chances da empreitada. A força é necessária, já que é fácil persuadir os povos, mas é difícil que mantenham a opinião.
Exemplo é Hiero de Siracusa. Cidadão comum, por seus méritos, tornou-se capitão e depois príncipe. Aboliu a antiga milícia e abandonou antigas amizades, fazendo novas, edificando uma base sólida. “Custou-lhe bastante trabalho adquirir uma posição elevada, mas teve pouca dificuldade em mantê-la”.
Capítulo VII – Os novos domínios conquistados com as armas alheias e boa sorte
Chegar ao poder pela sorte oferece pouco trabalho, mas dificilmente há sua manutenção. Fica-se dependente de quem o levou ao poder. Além disso, não há experiência em comandar, inexistindo forças subordinadas por laços de amizade e fidelidade. Somente se o príncipe for muito valoroso conseguirá estabelecer as bases para um poder duradouro.
César Borgia, filho do Papa Alexandre, mesmo tendo tomado providências que um homem prudente deveria ter, preparando as bases para seu poder futuro, ainda assim perdeu o poder quando a influência do pai lhe faltou.
O Autor cita, então, o desenrolar histórico de César Borgia, que destruiu as famílias mais influentes por meio de subterfúgios, conquistando seus seguidores por meio de favores e cargos. O duque percebeu que o povo, que era comumente despojado por senhores fracos, precisava de ordenação, tendo enviado um representante cruel que pacificou a situação. Após, o duque estabeleceu um tribunal civil e, visando purgar o espírito do povo aplacado pela crueldade, matou seu governador, atribuindo-lhe a crueza. “A ferocidade do espetáculo causou espanto e satisfação ao povo”.
Estando fortalecido, e não confiando na França, que lhe dera suporte no começo da empreitada, César Borgia começou a discutir novas alianças. Em relação ao futuro, destruiu a linhagem dos senhores que havia espoliado, ganhou a amizade dos nobres romanos, influenciou o colégio de cardeais e buscava o fortalecimento de seu poder antes da morte do Papa.
Todavia, a morte do pai e sua própria doença debilitaram sua posição. Todavia, sua atuação fora exemplar. O poder do duque caracterizou-se por: garantia de novos domínios, fazer amizades, conquistar pela força e pela fraude, fazer-se amado e temido pelo povo, seguido pelos soldados, destruição dos que podiam ofendê-lo, ser grato e severo, magnânimo e liberal, supressão de uma infiel milícia etc.
Capítulo VIII – Os que com atos criminosos chegaram ao governo de um Estado
Há duas outras maneiras possíveis de se tornar príncipe que não seja pela sorte ou valor: por meio vil ou favor dos concidadãos. Exemplifica com Agátocles, o siciliano, que chegou a rei de Siracusa. Após galgar postos na milícia, certa vez convocou o senado e pessoas importantes do povo para alegada discussão sobre questões importantes, quando então matou todos e tomou o poder. Segundo Maquiavel, conquistar o poder por meio de assassínio de compatriotas, traição de amigos, sem fé, piedade ou religião, são métodos que levam ao poder mas não à glória.
Outro exemplo foi Oliverotto de Fermo. Órfão, foi criado pelo Tio Giovanni, que o encaminhou para treinamento militar. Após muitos anos, achando servil a situação de obediência, solicitou ao tio sua apresentação à cidade, junto com cem cavaleiros, já que há anos estava ausente. Após serem recebidos com entusiasmo, Oliverotto e seus seguidores mataram Giovanni e demais autoridades locais. Assumiu o poder do qual não havia inimigos, já que todos mortos. Um ano após, tendo constituído nova ordem e seguro do poder, foi enganado por César Borgia, que determinou seu estrangulamento.
Pode parecer estranho que pessoas, como Agátocles, pudessem viver em segurança em seu país por longo tempo. Isso se deve ao fato de que crueldade deve ser “bem” utilizada, ou seja, uma só vez, sem dar-lhe continuidade. “As crueldades mal-empregadas são as que, sendo a princípio poucas, crescem com tempo, em vez de diminuir. De onde se deve observar que, ao tomar um Estado, o conquistador deve praticar todas as necessárias crueldades ao mesmo tempo, evitando ter de repetí-las a cada dia”. Já os benefícios “devem ser concedidos gradualmente, de forma que sejam melhor apreciados”.
Capítulo IX – O Governo Civil
Como dito, o poder pode ser alcançado por meio de seus concidadãos, em um contexto de forças do povo e da aristocracia, conforme haja mais oportunidade para um ou para outro. O apoio dos ricos é menos seguro que os das massas e essas têm objetivos mais honestos que aqueles. Um povo hostil é indesejável, mas a hostilidade dos nobres resulta não só na deserção, mas na oposição ativa, buscando eles sempre salvar-se e ficar junto ao que presumem vencedor. O povo será sempre o mesmo, mas os nobres podem ser trocados pelo prestígio a ser concedido pelo soberano. O Autor faz, então, uma análise sobre os nobres, dividindo-os entre os que compartilham ou não da sorte do soberano.
Aquele que se tornar príncipe pelo povo deve manter sua estima (o que seria fácil, pois o povo apenas pede não ser oprimido); quem for apoiado pela aristocracia, deve igualmente ganhar a estima do povo. Dessa maneira, é necessário o favor do povo e “o príncipe prudente procurará meios pelos quais seus súditos necessitem sempre do seu governo, em todas as circunstâncias possíveis – e fará, assim, com que lhe sejam sempre fiéis”.
Capítulo X – Como avaliar a força dos Estados
Quanto aos principados, há aqueles que podem se manter por forças próprias e aqueles que precisam de auxílio alheio. Neste último caso, resta fortificar-se sem se preocupar com as terras ao redor, e só com grande relutância será atacado, pois “nunca parecerá ser fácil atacar aquele que tem sua cidade bem defendida e não é odiado pelo povo”. Assim, um príncipe não terá dificuldades de se manter, desde que possua provisões e meios para se defender.
Capítulo XI – Os Estados Eclesiásticos
Restam, ainda, os Estados eclesiásticos, que são conquistados não pela força ou sorte, mas por costumes religiosos. São os mais seguros e felizes, pois respondem a razões superiores. O Autor lembra que, até Alexandre VI, o poder temporal da Igreja era limitado, já que o papa era tolhido pelos Orsini e Colona. Alexandre VI, aproveitando a invasão francesa, galgou espaços, eliminando os obstáculos ao seu poder temporal, o que foi ampliado pelo papa Júlio II.
Capítulo XII – Os diferentes tipos de milícias e tropas mercenárias
Como já dito, para conquistar ou manter o poder, é necessário bom exército. Estes podem ser próprios, mercenários, auxiliares ou mistos. Os que contam com milícia mercenária nunca terão posição segura, pois os soldados são ambiciosos e infiéis. Os comandantes desses exército ou são bons militares ou não: se o forem, tentarão tomar o poder; se não, arruinarão o soberano. “A experiência demonstra que só os príncipes e as repúblicas armadas obtêm grandes progressos, pois as forças mercenárias só sabem causar danos”.
Capítulo XIII – Forças auxiliares, mistas e nacionais
Forças auxiliares são aquelas oferecidas por aliados, e são tão prejudiciais quanto as mercenárias: “se são vencidas, isto representa uma derrota; se vencem, aprisionam quem as utiliza”. Elas são ainda mais perigosas pois são unidas e obedientes, mas a outra pessoa, enquanto os mercenários são difíceis de serem coordenados por terceiros. Assim, a eficácia das milícias auxiliares é o seu maior problema, enquanto a ineficiência é o dos mercenários.
Exemplifica com César Borgia, que contou primeiramente com milícias francesas para conquistar Ímola e Forli, posteriormente contando com mercenários e, finalmente, com força própria, aumentando sempre seu prestígio nesse processo. Outro exemplo foi Hiero de Siracusa que, receoso das tropas mercenárias, mandou chacinar todos, formando um novo exército próprio.
Carlos VII instituíra alistamento militar, cujo sistema fora posteriormente banido por seu filho, que contratou suíços e formou um exército misto com nacionais. Essa é uma forma melhor que as milícias auxiliares ou mercenárias, mas muito inferior a um exército próprio. Segundo Maquiavel, a queda do império romano iniciou-se com a contratação de mercenários gôdos.
Capítulo XIV – Os deveres do príncipe para com suas milícias.
Conforme diz o Autor, os príncipes devem, acima de tudo, serem versados na guerra, devendo empenhar todos os esforços nisto em detrimento de tudo o mais, aproveitando os tempos de paz para preparar-se aos tempos de guerra, exercitando o corpo e o espírito e estudando a história dos grandes homens. O príncipe prudente, portanto, está sempre capitalizando experiência para resistir aos golpes da adversidade.
Capítulo XV – As razões pelas quais os homens, especialmente os príncipes, são louvados ou vituperados.
Quanto ao modo de lidar com súditos e aliados, Maquiavel ressalta que praticar sempre a bondade leva a ruína, e o príncipe que deseja manter-se utilizará desta faculdade conforme seja necessário. Os soberanos são conhecidos por diversas qualidades, como cruel ou misericordioso e sério e frívolo. Mas, para manutenção do poder, não se deve apegar apenas às qualidades “boas”, já que, muitas vezes “certas qualidades que parecem virtudes levam à ruína, e outras que parecem vícios trazem como resultado o aumento da segurança e do bem-estar”.
Capítulo XVI – A liberalidade e a parcimônia
A liberalidade, aqui tida no sentido de gasto do patrimônio, levará o soberano a ter que conseguir muito dinheiro, gerando o ódio dos súditos. O príncipe prudente será miserável, agradando uma maioria que não terá maiores gastos e desagradando apenas uma minoria, a qual seria beneficiada pela liberalidade. “Por esses motivos, o príncipe não se deve incomodar de ser tido como miserável, para não ter de onerar demais os súditos, para poder defender-se e para não se tornar pobre e desprezado”. Pode-se, contudo, ser pródigo, desde que com o patrimônio alheio, dos estados pilhados.
Capítulo XVII – A crueldade e a clemência. Se é preferível ser amado ou temido
Em princípio, é melhor que o soberano seja considerado clemente, mas em casos em que precise manter o povo unido e leal, não deve se incomodar com a reputação de cruel, preferencialmente por meio de poucos exemplos duros, que afetem indivíduos isolados. Assim, idealmente, é melhor ser, ao mesmo tempo, amado e temido, sendo mais seguro optar, se for o caso, pelo temor, já que “os homens têm menos escrúpulos em ofender quem se faz amar do que quem se faz temer”. Deve-se, em todo caso, “mesmo que não se ganhe amor dos súditos, pelo menos que evite seu ódio”. Para isso, em regra deve abster-se de atentar contra o patrimônio, a não ser que possa justificar, o que é mais difícil em relação à tomar uma vida alheia. Dessa forma, o príncipe, no comando do exército, deve aceitar a fama de cruel, para manter o controle dos soldados.
Capítulo XVIII – A conduta dos príncipes e a boa-fé
O príncipe, para manter o poder, não precisa obrigatoriamente manter sempre a palavra empenhada, desde que assim haja de forma perfeitamente dissimulada. Assim agirá principalmente quando a boa-fé for contra seus interesses ou os motivos que a justificavam já não existam. O soberano deve possuir, assim, natureza tanto humana quanto animal e, neste caso, ter as qualidades da raposa e do leão. “Os homens são tão pouco argutos, e se inclinam de tal modo às necessidades imediatas, que quem quiser enganá-los encontrará sempre quem se deixe enganar”.
Não é necessário que o soberano tenha todas as qualidades já mencionadas, mas parecer que as tem é essencial. “Assim, é bom ser e parecer misericordioso, leal, humanitário, sincero e religioso; mas é preciso ter a capacidade de se converter aos atributos opostos, em caso de necessidade”. “Todos vêm nossa aparência, poucos sentem o que realmente somos”.
Capítulo XIX – Como se pode evitar o desprezo e o ódio
O príncipe deve evitar ser odiado ou desprezado, não devendo expropriar bens dos súditos sem justificativa ou parecer frívolo, volúvel e tímido. Suas decisões devem ser irrevogáveis e sua imagem de grandeza e fortaleza, devendo-se precaver, no plano interno, das conspirações e, no plano externo, das potências estrangeiras.
A melhor proteção contra as conspirações é não ser odiado pela massa, já que o conspirador será demovido pelas dificuldades e possíveis aliados temerão um benefício remoto na vitória em contraste com uma punição certa na derrota. Assim, “quando a disposição do povo lhe é propícia, o soberano tem pouco a temer com as conspirações”.
O soberano deve, ainda, procurar o equilíbrio entre agradar os grandes e o povo. Um meio útil é o parlamento, por meio do qual se exime da “censura dos nobres, ao favorecer o povo, e do ódio do povo causado pelos favores concedidos aos poderosos”, donde se extrai outra regra: “que os príncipes devem delegar para outras pessoas as tarefas como os julgamentos, e conceder os favores, pessoalmente”.
O Autor busca, então, exemplos nos imperadores romanos, demonstrando que estes, além da nobreza e do povo, tinha que satisfazer um terceiro elemento: os soldados. O soberano, muitas vezes, então, necessitava fazer o mal para manter o poder perante o partido dominante, quando corrupto este, fosse ele dos nobres, do povo ou dos soldados.
Severo, mesmo impondo ofensas ao povo, conseguiu manter o poder, com as características do leão e da raposa. Sob o pretexto de vingar a morte de Pertinax, apresentou-se em Roma com sua tropa, sendo eleito imperador pelo senado, que o temia, e matou Juliano. Teve, ainda, dois obstáculos, os quais não seria prudente serem enfrentados ao mesmo tempo - Nigrino e Albino. Ofereceu, então, a este, o título também de imperador. Após derrubar Nigrino, acusou Albino de traição e eliminou-o.
O Autor cita, então, outros imperadores e o erros que cometeram, às vezes por excesso e às vezes por falta de ação. Vê-se, pelas narrações de Maquiavel, que a causa da ruína dos imperadores romanos mencionados ou foi ódio ou o desprezo.
Capítulo XX – A utilidade de construir fortalezas, e de outras medidas que os príncipes adotam com freqüência
Alguns príncipes, receosos, desarmam os súditos. Um príncipe novo, contudo, em geral os arma, pois eles pertencem ao monarca, criando uma fidelidade pelo privilégio. Já quando há o desarmamento, os súditos sentem-se ofendidos. Além disso, o príncipe sábio deve fomentar astuciosamente inimizades, de maneira “incrementar sua grandeza superando esse obstáculo”.
Afirma o autor que, ao se conquistar um Estado com auxílio de seus habitantes, deve-se observar suas intenções. Se fora somente o descontentamento com o antigo soberano, provavelmente o príncipe terá mais apoio daqueles que estavam anteriormente satisfeitos.
Os príncipes costumam construir fortalezas para se protegerem. Contudo, essa providência, em geral útil, pode ser inconveniente, conforme o caso, com exemplos citados por Maquiavel. “Se o príncipe teme seus súditos mais do que os estrangeiros, deve construí-la; em caso contrário, não”; “devem ser criticados, porém, os que, confiando em tais meios de defesa, não se preocuparem com o ódio popular”.
Capítulo XXI – Como deve agir um príncipe para ser estimado
“Nada faz com que um príncipe seja mais estimado do que os grandes empreendimentos”. Guerras costumam ser úteis, já que deixam os concidadãos ocupados em acompanhar o desenrolar dos fatos. Com ações que se desdobram, sem intervalos, deixa pouco tempo para que as pessoas as critiquem de forma eficiente. Um príncipe deve, portanto, buscar sempre conquistar fama de grandeza e excelência.
Outro ponto é declarar sempre sua posição, fugindo da neutralidade. Se duas potências vizinhas entram em guerra, é melhor que tome partido e também entre em guerra, já que o vitorioso não quererá amigos dos quais suspeita e o derrotado não receberá um príncipe que se omitiu. Porém, não deve se aliar a alguém mais poderoso, pois, se o aliado vencer, o submeterá.
“Os príncipes devem demonstrar também apreço pelas virtudes, dar oportunidade aos mais capazes e honrar os excelentes em cada arte”, proporcionando sempre, além disso, a possibilidade de que as pessoas possam empreender comercialmente sem receio. “Além disso, precisam manter o povo entretido com festas e espetáculos, nas épocas convenientes”.
O soberano deverá, ainda, dar atenção às diversas classes, encontrando-se regularmente com seus membros, mas sem perder a dignidade majestosa.
Capítulo XXII – Os Ministros dos príncipes
Conhece-se um príncipe pelos ministros que possui, e aquele deve sempre ser capaz de identificar as obras boas e as más destes. O soberano deve, assim, descartar os que pensam mais em si do que no monarca. Por outro lado, para assegurar a fidelidade do ministro, deve honrá-lo e enriquecê-lo, fazendo-lhe favores.
Capítulo XXIII – De que modo escapar dos aduladores
Algo difícil de escapar são os aduladores, fazendo com que muitos soberanos se iludam com que se lhe dizem. A saída é escolher pessoas confiáveis a que se dê liberdade de, quando perguntados (e somente nesse caso), dizer a verdade, deliberando, depois, sozinho, sempre mantendo com firmeza a decisão – desencorajando conselhos não solicitados. O Imperador deve ser discreto, não comunicando seus propósitos antecipadamente.
Capítulo XXIV – As razões por que os príncipes da Itália perderam seus domínios
A boa conduta de um novo príncipe o fará mais poderoso que um de linhagem hereditária. Isso porque os homens, tendo um presente fabuloso, esquecem facilmente o passado. Garantindo-se contra o povo e os nobres e tendo um bom exército à disposição, dificilmente se perde o Estado. Dessa forma, em geral se perde o poder não pela sorte, mas pela indolência. Exige-se do soberano, portanto, que, nos tempos de paz, se preparem para mudança de ventos.
Capítulo XXV – O poder da sorte sobre o homem e como resistir-lhe
É recorrente acreditar que estamos fadados a um destino traçado por Deus, do qual não podemos nos desviar. Maquiavel diz, contudo, que o livre arbítrio garante autoridade sobre metade das coisas, e influência sobre a outra metade. Assim, o príncipe pode se proteger da má-sorte prevendo-a e criando obstáculos.
Ainda assim acontece de um príncipe ser solapado do poder por alteração da sorte por ter fundado nesta sua autoridade. Além, a forma correta de agir (prudente ou impetuoso, por exemplo), muda conforme o tempo, não havendo uma característica imutável que garanta o poder. Muitas vezes, como mudam os ventos e não mudam os homens, seu insucesso se justifica.
Exemplifica com o papa Júlio II, que impetuoso, obteve amplo sucesso em suas empreitadas. Porém, morreu em não muito tempo, o que não o permitiu experimentar a situação histórica que se seguiu, que exigiria maior prudência, o que não lhe seria possível, por sua natureza.
“Conclui-se, portanto, que como a sorte varia e os homens permanecem fiéis a seus caminhos, só conseguem ter êxito na medida em que seus procedimentos sejam condizentes com as circunstâncias; quando se opõem a elas, o resultado é infeliz”.
Capítulo XXVI – Exortação à libertação da Itália, dominada pelos bárbaros
Neste capítulo final, Maquiavel tenta demonstrar a Lorenzo de Médicis que a história exige dele que lidere a Itália na retomada da dignidade, e que todos os sinais teriam sido dados para que ele, inspirado nos homens do passado, subisse ao trono como soberano e pegasse em armas. Aconselha a formação de um exército próprio para defender o país dos estrangeiros. Após demonstrar a necessidade de inovações no exército italiano, afirma: “Não se deve, portanto, deixar que se perca esta oportunidade; a Itália, depois de tanto tempo, precisa encontrar seu libertador”.
Conclusão Pessoal
A obra clássica de Maquiavel tem servido, ao longo dos últimos séculos, aos mais diversos “soberanos” e “ideologias”. A suas proposições de política, em regra amorais, levam em consideração, como o mesmo diz, a realidade dos fatos e não como os fatos deveriam ser.
A crueza e objetividade de cada um dos capítulos do livro falam de posicionamentos que, na essência, permanecem existentes nas condutas dos grandes líderes mundiais, e nos oferecem um acesso direto e inconteste dos mecanismos de ganho e manutenção de poder.
Os seus conselhos aos príncipes situam-se em uma zona de eficácia e não de escala de valores, não sem estabelecer a importância da relação dos Estados-Nação (que começavam a surgir) e o povo, ainda que não necessariamente como um comportamento humanista.
O processo de secularização então em curso na Europa é o pano de fundo da obra que, de forma lúcida mas também ambíguo, estabelece a estrutura básica da ciência política moderna e que exige do líder não só planejamento, senso de oportunidade e avaliação dos possíveis resultados, mas também sabedoria.
O Jeito na Cultura Jurídica Brasileira - Keith S. Rosenn
Rio de Janeiro: Renovar, 2005. 131 páginas.
Introdução
O Autor inicia a obra mencionando uma anedota onde um recém-formado médico francês é aconselhado por um cônsul brasileiro, quando de sua tentativa de imigração, a alterar sua profissão, o que facilitaria a concessão do visto (o que seria “um jeito”). O Autor continua fazendo referência ao fato de que a flexibilização da aplicação das leis também ocorrem em outros países, mas no Brasil adquiriu um status privilegiado, em “um genuíno processo brasileiro de resolver dificuldades, a despeito do conteúdo das normas, códigos e leis” (p. 13).
Propõe, para estudo, a divisão do “jeito” em cinco categorias: 1) o servidor deixa de cumprir sua obrigação em troca de vantagem; 2) o particular que utiliza de subterfúgios para fugir da lei; 3) o servidor que só cumpre o dever com presteza mediante remuneração; 4) o particular que burla uma lei irrealista, injusta ou economicamente ineficiente; e 5) o servidor que foge da lei pelas mesmas razões do item 4. Os três primeiros poderiam ser classificados como corrupção. O 4 e o 5 denotariam situações onde o interesse público seria melhor servido pelo descumprimento da lei.
Segundo Keith, o “jeito” não tinha, até então, atenção acadêmica no Brasil, principalmente porque as faculdades tendem à exegese clássica de textos jurídicos e refugam pesquisas empíricas, ou ainda pela dificuldade de pesquisa, por se tratar, muitas vezes, de ações ilegais. E afirma: “atitudes relativas ao direito, refletidas em uma instituição paralegal como o jeito, são no mínimo tão importantes quanto, e em vários aspectos até mais do que, as instituições consagradas na estrutura forma” (p. 16).
Capítulo II – As Raízes do Jeito
A formação do Estado português foi influenciado pelo direito romano e posteriormente transplantado para o Brasil, tendo por características culturais: 1) tolerância à corrupção; 2) falta de responsabilidade cívica; 3) desigualdade sócio-econômica; 4) sentimentalismo; e 5) disposição a chegar a um acordo.
A) A Herança Dualista do Direito Romano: O direito português foi inspirado no romano, cuja formação se deu em um contexto dinâmico e diversificado, já que Roma era o centro de um imenso império. O Corpus Juris Civilis de Jutiniano, contudo, já demonstrava uma rigidez que o descolava da realidade. No Séc. XI, o redescobrimento daquela obra gerou escolas que a tinham como verdade absoluta, normas abstratas mas divorciadas do contexto econômico, sendo que o trabalho dos glosadores e dos comentadores exerceram forte influência nas ordenações Afonsinas e Filipinas. Esses estudiosos procuravam formar um “sistema harmonioso e universal de normas éticas de conduta” (p. 19), afastando normas tradicionais “para padrões éticos irrealistas que refletiam ideais almejados” (p. 20).
Portugal teve, assim, dupla influência romana: um pelo tempo em que foi ocupado, de caráter prático, e outro de natureza ideal, decorrente da interpretação do Corpus Juris Civilis, o que persiste ainda hoje no Brasil.
B) O Pluralismo Legal: A história jurídica portuguesa é também caracterizado, tanto nos tempos de ocupação romana, visigótica e moura, por um personalismo do direito, com normas diferentes para conquistadores e conquistados. Após a reconquista, os reis portugueses concediam privilégios legais para certas cidades ou grupo de pessoas, em uma antítese de sistema universalista. “O pluralismo jurídica de fato, tão freqüentemente encontrado no Brasil é fortemente ligado ao pluralismo 'de jure', predominante no passado de Portugal” (p. 22).
C) A Influência do Catolicismo: Diversas regras rígidas de inspiração católica, mas dissociado da realidade, resultaram em todo tipo de burla por meio do “jeito”. Assim ocorreu desde o tempo colonial, com a escravização dos índios, apesar de legalmente proibido. Já no Império e na República, o divórcio era proibido (até 1977), o que fazia com que as pessoas, por exemplo, casassem diversas vezes no exterior, o que era socialmente aceito. A lei de usura, de 1951, que impedia a fixação de juros acima de 12% ao ano (repetida na CF de 88), tornou-se obsoleta com a inflação galopante e jamais foi aplicado ao sistema financeiro. Por fim, o aborto, que é crime, ocorre rotineiramente em clínicas ilegais, fazendo que o Brasil seja um dos países com índices mais altos de aborto no mundo.
D) A Administração Colonial: A forma confusa como a administração colonial foi implantada no Brasil gerou “desconfiança aos servidores governamentais e desrespeito às Leis”, o que tem impedido, ainda hoje, a implantação de reformas administrativas.
1. O Legado do Patronato
O sistema legal português baseou-se no patronato, onde o Rei concedia privilégios e favores em troca da lealdade. Os lucros dos monopólios eram agregados ao patrimônio do monarca e não da nação, produzindo corrupção, burocracia e um sistema jurídico personalístico e imprevisível.
1.1. A Corrupção: Como os serviços públicos eram privilégios concedidos ou comprados do Rei, a noção de cargo público era deficiente, permitindo todo tipo de utilização pessoal. O “presentinho” era, e ainda é, um meio de se fazer funcionar a estrutura do Estado. “Em vez de serviços públicos, os cidadãos buscavam favores do governo, os quais eram concedidos em bases pessoais e em troca de 'outros favores'” (p. 28), gerando, até hoje, uma confusão entre patrimônio público e privado.
1.2. A Papelada Burocrática: Em razão da centralização do poder em Lisboa, os administradores da colônia eram apenas executores, razão pela qual era necessária uma extensa burocracia para esse fim, principalmente porque o Conselho Ultramarino se preocupa até mesmo com os mínimos detalhes.
1.3. A Administração ad hoc da Justiça: O sistema judicial brasileiro, decorrente do patronato, foi sempre deficiente, as decisões eram sempre dependentes de uma decisão final do Rei e a fiscalização inexistia, o que gerava freqüentemente a preferência pela “justiça com as próprias mãos”. Os próprios juízes, portugueses, proibidos de casar com brasileiras e fazer negócios, descumpriam essas regras e enriqueciam na colônia, além de, diversas vezes, distorcerem as leis para servirem aos seus próprios interesses. Após a independência a situação piorou, com a diminuição do quantitativo de juízes, o que não foi resolvido com a reforma que instituiu os juízes de paz (eleitos), freqüentemente acusados de corruptos e incompetentes.
2. A Confusão da Legislação Portuguesa
Primeiramente, a legislação vigente no Brasil colonial era tão extensa e diversificada que surpreende que a máquina administrativa tenha chegado a funcionar. Além disso, a própria monarquia permitiu, legalmente, que a legislação portuguesa fosse reinterpretada, no Brasil, de maneira relaxada (Carta Régia de 1745). As ordenações, que códigos não eram, mas compilações, foram parcialmente obscuras “desde o início e, depois de uma séria de emendas incoerentes e conflitantes, virou uma confusão d]tão grande que uma 'varinha de condão' era tão eficiente como qualquer outro guia para pesquisas jurídicas” (p. 36). Não obstante, serviram de base do direito civil brasileiro até 1917.
3. A Lei da Boa Razão
A lei de 18 de agosto de 1769, legada aos brasileiros pelos portugueses, estabeleceu que as regras do direito romano somente seriam aplicáveis em uma análise, em cada caso, da “boa razão”, um conceito flexível que permitia amplas interpretações, o que incentivava juízes e advogados a observarem o senso comum, o espírito da lei e os costumes com base das decisões, precursor do “jeito”. “Assim, a prática brasileira de reinterpretar leis à luz do bom-senso tem por antepassado espiritual a Lei da Boa Razão” (p. 38).
4. A Fraqueza do Controle Português
Portugal, pela pequena população, tinha dificuldade de manter uma estrutura de controle no Brasil, cujo poder era descentralizado nas mãos do senhores de terras, inclusive no campo jurisdicional. Isso dificultou a retomada do poder pela Coroa, a tal ponto que, segundo Gilberto Freyre, o Rei de Portugal quase que reinava sem governar. Institucionalizou-se, ademais, o não cumprimento das ordens reais em certos locais quando injustas ou perniciosas aos destinatários. Outros fatores foram determinantes, como o envio de condenados para o Brasil, pesados tributos (que incentivavam o descumprimento da lei), além da vastidão do território, que dificultava a comunicação.
E) A Falta de Responsabilidade Cívica e o Personalismo
Os portugueses legaram aos brasileiros, ainda, pouco senso cívico e uma forte obrigação para com amigos e parentes, o dificulta uma aplicação impessoal da lei. Além disso, esse caráter com ênfase nas relações pessoais faz com que a simpatia esteja acima da lei, até porque as normas são sempre vistas em termos eqüitativos e com uma filosofia humana.
F) A Profunda Desigualdade Sócio-Econômica
A imensa desigualdade sócio-econômica brasileira reflete-se no âmbito jurídico: existe uma lei para elite e outra para o povo, apesar da retórica constitucional da igualdade. “No Brasil se diz, com boa razão: 'o Código Civil é para o rico; o Código Penal para o pobre'” (p. 46). Essa diferenciação é demonstrada, por exemplo, na prisão especial para detentores de curso superior.
G) O Sentimentalismo
Conseqüência do relacionamento direto pessoal é que o brasileiro, entre cumprir a lei ou ajudar alguém de quem se sente pena, opta por esta, em um “complexo de coitado”, que é alguém que precisa ser protegido. “Este sentimentalismo nacional tende a atenuar o rigor da lei e multiplicar a incidência do jeito” (p. 48).
H) A Arte da Conciliação
O brasileiro tende à conciliação, provavelmente em razão da necessidade histórica de superar os obstáculos com sutileza e dissimulação, o que se tornou arte e tradição no país. O “jeito” é, assim, uma manifestação dessa tendência, “herdada dos portugueses para achar soluções pragmáticas para penosos problemas” (p. 49).
Capítulo III – A Cultura Jurídica: Paternalista, Legalista e Formalista
A) O Paternalismo
A herança da monarquia, da Igreja e da família na forma patriarcal impregnaram a estrutura social, de tal forma que o “patrão”, membro da elite, serve de intermediário aos interesses dos empregados, em uma personalização dos serviços públicos. Nesse contexto, as leis são “outorgadas” ao povo sem os necessários estudos e discussões, de forma paternalística, pelo que um grupo entende como bom para o povo e não decorrente de pressão popular, a exemplo do que aconteceu com a CLT. A previsão constitucional do salário mínimo é outro exemplo, já que seu valor não consegue garantir os bens da vida mencionados na Carta Magna.
B) O Legalismo
A sociedade brasileira faz questão de que todos os aspectos de sua vida sejam reguladas por lei, de tal forma que “nada é juridicamente irrelevante” (p. 54), buscando-se detalhar ao extremo e pré-ordenar todas as possíveis ocorrências futuras. Presume-se, ainda, que todos os problemas podem ser resolvidos por meio de uma lei, sem se observar se seu conteúdo é exeqüível. “Raramente se debate se a sociedade está ou não disposta ou habilitada a bancar os custos da execução de uma lei” (p. 55).
O fato de as leis poderem ser compradas na banca ou que litígios banais como aquele que discute se determinado aluno foi justamente reprovado, às vezes até mesmo levados ao Supremo Tribunal Federal demonstram bem o caráter legalista da sociedade. “O legalismo tem também concorrido para a popularidade do jeito de duas maneiras: provocando uma abundante legislação regulamentar, e falhando em prover suficiente flexibilidade a tal legislação. O jeito pode ser encarado como uma solução legalista para ambos os problemas” (p. 58).
C) O Formalismo
Intimamente ligado ao legalismo está o formalismo, havendo uma tal preocupação com a autenticação e verificação que “a presunção parece ser de que todo cidadão está mentindo, até que ele produza prova documental escrita de que está dizendo a verdade” (p. 59), demonstrando acreditar-se mais em documentos que em pessoas. Justifica-se esse formalismo, dentre outras coisas, ao transplante não-adaptado das leis européias e o pouco alívio quanto àquelas herdadas de Portugal.
1. A Ciência Jurídica e a Educação Jurídica
A educação jurídica brasileira é formalista e preocupa-se muito mais com a exegese clássica de texto legais formais, em um dogmatismo que busca uma coerência intrínseca do sistema jurídico sem preocupação com a conduta das pessoas afetadas.
2. As Estratégias para Promover ou Evitar Mudanças Sociais
Existem teorias que acenam para o fato de que o formalismo tanto pode servir para induzir determinadas mudanças quanto para evitar que elas aconteçam. No primeiro caso, as elites moldariam a sociedade que aspiravam ter; No segundo, eventuais mudanças seriam amortecidas pelo conservadorismo administrativo, já que as leis, mesmo editadas, poderiam ter barrada a sua implementação nesse nível. Quanto a esse, exemplifica com o Estatuto da Terra que, avançado para 1964, não conseguiu implementar a reforma agrária por falta de compromisso fundamental às metas em todos os níveis. Dessa maneira, as elites têm tido êxito em barrar reformas constitucionais; falhando, resistem no congresso à legislação; falhando, obstruem a implementação burocrática; mais uma vez no insucesso, recorrem ao judiciário; e por fim, sempre há a possibilidade do jeito.
Capítulo IV – O Imbróglio Burocrático
A burocracia, caracterizada pelo “empreguismo” por meio de “pistolões”, inchando a máquina pública, inclusive com órgãos que se sobrepõem, facilitando eleições com promessas de emprego. As leis que permitem a demissão por ineficiência não são observadas e a própria Constituição Federal “legalizou” antigos empregados contratados irregularmente. Muitos devem seus empregos à “politicagem” e está inclinado aos favores. O excesso de formalismo, assim, serve para dar o que fazer a alguns e dividir as responsabilidades a outros. A burocracia é evidente em todos os âmbitos, exigindo-se, tipicamente, para resolver uma questão, a ida a diversos órgãos estatais e enfrentamento de longas filas para organizar todos os documentos e autenticações necessárias, além da demora na prestação do serviço.
A centralização do poder, a falta de sua delegação e longa espera para que os documentos e pareceres cheguem às áreas de decisão incentivam o jeito. Assim, reclama-se que servidores “criam dificuldades para vender facilidades”.
A) O Despachante
Diante da burocracia, floresceu a figura do “despachante”, que é a pessoa versada nos caminhos administrativos e responsável pelo preenchimento dos documentos e agilização junto aos servidores, o que muitas vezes se faz com o jeito (e mediante o devido agrado). “Se não fosse pelo jeito e pelo despachante, todo o aparato administrativo do Brasil estaria paralisado” (fl. 74).
B) A Reforma Administrativa
Nas últimas décadas várias tentativas de desburocratização ocorreram, desde os militares. Órgãos foram reorganizados, grande parte do processamento burocrático eliminado e tantos outros simplificados, medidas, porém, muitas vezes ignoradas. Além disso, o período de redemocratização fez lotear-se cargos públicos aos políticos dos partidos vitoriosos e a nova Constituição não conseguiu evoluir na estrutura de administração. Avanços ocorreram no governo Collor e vários outros foram obstados no governo Cardoso. Apesar do avanço, a burocracia continua sofrendo os mesmos problemas, com uma grande maioria de servidores ganhando mal e não-qualificados e uma minoria com altos salários.
Capítulo V – A Penetração do Sistema Jurídico Formal
Apesar do sistema formal brasileiro ter um caráter moderno, com a Constituição e principais códigos aplicados por uma estrutura hierárquica de órgãos formados por pessoas altamente especializadas, ainda há pouca capilaridade, havendo amplos espaços nas favelas e no meio rural para o surgimento de autoridades para-estatais
A) O Calígula Ressuscitado - À Procura da Lei Vigente
O acesso ao sistema formal é problemático pela dificuldade em se descobrir a lei vigente, tanto quanto era no tempo colonial. As normas são publicadas em Diários Oficiais a fim de produzir efeito jurídico, mas isso não assegura a facilidade de que seja encontrada no futuro, já que não há índices oficiais, e os não-oficiais costumam estar desatualizados. Não existem compilações oficiais, muitas leis se sobrepõem parcialmente e o costume de determinar que “revogam-se as disposições em contrário” resulta e que não se sabe exatamente quantas e quais leis estão em vigor.
Cita o autor editorial do Jornal do Brasil, quanto à confusão legislativa: “Isso é porque quando ele menos espera, um burocrata puxa uma norma legal de sua gaveta, como se fosse uma arma, e dispara contra o cidadão que deseja se envolver em qualquer tipo de atividade produtiva” (p. 85). Tudo isso reduz o PIB e concorre para a inflação e dívida a astronômica do país. Ainda, além de numerosas, as leis costumam ser confusas e mal redigidas, exigindo uma série de decretos e regulamentos que a expliquem. Nos Estados Unidos, em contraste, o sistema de produção das normas administrativas (rulemaking) exige um complexidade de atos até a redação final, evitando caprichos. Por fim, as autoridades costumam estar desinformadas das leis que deveria observar.
B) Após Goulart, O Dilúvio
A grande transformação sócio-econômica do Brasil, de rural/agrário para urbano/industrial, tornou muitas leis obsoletas. O regime militar pós Goulart tomou a iniciativa de reformas, em um dilúvio legal de pouca qualidade e, por terem sido editados sem discussão, apresentavam muitas ambigüidades. O mesmo ocorre hoje em relação às Medidas Provisórias.
C) A Medida Provisória
Os governos pós constituição de 88 têm usado prodigamente esse recurso, previsto originalmente apenas para situações excepcionais. Com validade de 30 dias, as MP's costumeiramente eram reeditadas com pequenas modificações, um “jeito” para burlar a Constituição e o STF. Um problema surgiu com relação às implicações jurídicas da rejeição de uma MP após longas reedições. Quanto a isso, também deu-se um jeito, incluindo cláusula convalidando todos os atos praticados com base nas predecessoras.
D) A Deficiência do Sistema Forense
A reputação do sistema forense brasileiro é de gigantesca lentidão, auxiliando a difusão do jeito. Essa lentidão se dá pelo desaparelhamento, pela dependência política e financeira, além do excesso de formalismo do sistema processual. O excesso de recursos permite a protelação das lides perdidas por longos períodos, em um “paraíso dos réus”, prejudicando aqueles com boas causas, com base em contrato ou responsabilidade civil. Policiais e escrivãos corruptos, que normalmente precisam de um “lubrificante” também são comuns. Assim, presos são soltos e processos desaparecem. Acrescente-se altas taxas judiciárias e custos com honorários advocatícios, e ver-se-á que o acesso à prestação jurisdicional é bem limitada. Recente tentativa de desburocratização têm tido sucesso contido, com os Juizados Especiais, sem, contudo, resolver o problema de acesso à justiça.
As decisões judiciais também são dispersas e não formam um corpo coeso, com índices de jurisprudências não confiáveis e incompletos, sem esquecer que as decisões, em países de tradição civilista, não são tão importantes. “Tendo em vista que o procedimento judicial se tornou praticamente inoperante, muitos se inclinam pela procura de métodos alternativos para se proteger' (fl. 96).
Capítulo VI – Os Custos do Jeito
A jeito, na forma de corrupção, causa imensos prejuízos financeiros e limitam o poder de atuação do governo no estímulo de condutas desejáveis e na redistribuição de rendas. As dificuldades burocráticas geram o chamado “custo Brasil”, que dificulta a competição internacional dos produtos brasileiros e milhares de potenciais trabalhadores ficam parados. Esses empecilhos ao crescimento afetam diretamente o PIB e estimula a economia informal, que não gera impostos, bem como gera altas taxas de sonegação e evasão fiscais.
Devido ao jeito corrupto, “as pessoas relutam em assumir responsabilidade pessoal pelas decisões, preferindo passar os documentos adiante para 'maiores apreciações'” (p. 100) e a morosidade da Justiça causa enorme prejuízos financeiros. A incerteza e imprevisibilidade do jeito desencorajam quem deseja investir e aqueles que estão regulares são forçados a burlar a lei para competir com um grande número de informais.
Ainda, problemas com linchamentos, prisões superlotadas e chacinas podem ser conseqüências do princípio de que burocratas e particulares podem reinterpretar ou ignorar leis que julguem muito restritivas ou inadequadas.
O próprio Estado, em prejuízo de sua credibilidade, muitas vezes faz uso do “jeito” para resolver problemas, citando o autor a mudança de regras que tiraram a Petrobrás, em 1983, de um imenso prejuízo em lucro. Outra faceta é o calote, declarado 6 vezes pelo Brasil em relação à dívida externa, e muitas vezes as desapropriações deixam de ser pagas regularmente, o que explicaria a razão do país pagar juros tão altos em relação ao mercado internacional.
“Finalmente, ao atuar como válvula de escape, o jeito tende a evitar a acumulação de pressão e desgastes suficientes para que se promovam as tão necessárias reformas jurídicas e administrativas.
Capítulo VII – Os Benefícios do Jeito
O jeito pode auxiliar a se contornar os obstáculos sem interferência governamental, servindo, ironicamente, como fonte de estabilidade e previsibilidade em um mundo onde leis e regulamentos estão em constante mutação. O Jeito, na forma do “soltar dinheiro para apressar” serve como um imposto direto sobre quem tem mais condição de pagar, em um dos poucos aspectos progressistas no sistema tributário brasileiro, indo direto para o bolso do mal pago servidor. “Ao preservar a fachada de legitimidade em face da rápida mudança social e econômica, o jeito tem sido de valor inestimável em possibilitar ao sistema brasileiro operar sem conflitos violentos” (p. 111).
Conclusões
Em uma análise primária, os benefícios e os custos com o jeito se sobrepõem e, a longo prazo gera obstáculos ao desenvolvimento do país. “O desenvolvimento exige u alto grau de integração social e cooperação comunitária, bem como o abandono dos padrões tradicionais e autoritários de comportamento” (pp. 113/114). Outrossim, a igualdade deveria ser garantida por meio de uma estrutura jurídica consetânea e uma administração impessoal e eficiente, de maneira a ser previsível os cenários futuros, garantindo aos empreendedores a possibilidade de calcularem os riscos ao fazer negócios.
“Uma sociedade desenvolvida moderna deveria deixar pouco espaço para a operação de uma instituição como o jeito. Uma sociedade de transição como a a brasileira, entretanto, com tamanha pletora de leis, decretos e regulamentos que apenas retardam o desenvolvimento, parece ter espaço de sobra... para o jeito!” (p. 114).
Conclusões Pessoais
O primeiro impacto à leitura do livro é o fato de encararmos um estrangeiro apresentando uma análise crua de nossa realidade, o que parece gerar de pronto uma rejeição ao conteúdo. Afinal, o que um americano quer com nossos problemas? Todavia, ultrapassado esse ponto, o que não é difícil diante do excelente conteúdo, o que se nos apresenta é um retrato muito exato de uma realidade bem conhecida mas muito pouco discutida.
Talvez o fato do autor se estrangeiro, ao revés de atrapalhado, tenha sido fundamental na construção da obra. Além, a ampla pesquisa, histórica e de campo, surpreende pela fidedignidade de seus resultados. O resgate da influência ibérica em nossas estruturas democráticas, aliás, aponta caminhos possíveis a uma ação cotidiana para que possamos tentar escapar da armadilha histórica recorrente.
A corrupção, o legalismo, o formalismo e o sentimentalismo, dentre outros elementos muito bem explorados na obra, são facilmente identificáveis na atuação dos servidores públicos de nosso país. Identificar essas questões como um legado e não como uma realidade incontornável é o primeiro passo à ação.
Pode-se dizer, a grande virtude da obra, diante de seu detalhismo e profundidade, é não oferecer qualquer possibilidade ao leitor de alegar desconhecimento da maneira como o jeito está perspassado em nossa cultura, forçando-o a uma atitude proativa, sempre que possível, na modificação das estruturas administrativas do Estado Brasileiro.
Introdução
O Autor inicia a obra mencionando uma anedota onde um recém-formado médico francês é aconselhado por um cônsul brasileiro, quando de sua tentativa de imigração, a alterar sua profissão, o que facilitaria a concessão do visto (o que seria “um jeito”). O Autor continua fazendo referência ao fato de que a flexibilização da aplicação das leis também ocorrem em outros países, mas no Brasil adquiriu um status privilegiado, em “um genuíno processo brasileiro de resolver dificuldades, a despeito do conteúdo das normas, códigos e leis” (p. 13).
Propõe, para estudo, a divisão do “jeito” em cinco categorias: 1) o servidor deixa de cumprir sua obrigação em troca de vantagem; 2) o particular que utiliza de subterfúgios para fugir da lei; 3) o servidor que só cumpre o dever com presteza mediante remuneração; 4) o particular que burla uma lei irrealista, injusta ou economicamente ineficiente; e 5) o servidor que foge da lei pelas mesmas razões do item 4. Os três primeiros poderiam ser classificados como corrupção. O 4 e o 5 denotariam situações onde o interesse público seria melhor servido pelo descumprimento da lei.
Segundo Keith, o “jeito” não tinha, até então, atenção acadêmica no Brasil, principalmente porque as faculdades tendem à exegese clássica de textos jurídicos e refugam pesquisas empíricas, ou ainda pela dificuldade de pesquisa, por se tratar, muitas vezes, de ações ilegais. E afirma: “atitudes relativas ao direito, refletidas em uma instituição paralegal como o jeito, são no mínimo tão importantes quanto, e em vários aspectos até mais do que, as instituições consagradas na estrutura forma” (p. 16).
Capítulo II – As Raízes do Jeito
A formação do Estado português foi influenciado pelo direito romano e posteriormente transplantado para o Brasil, tendo por características culturais: 1) tolerância à corrupção; 2) falta de responsabilidade cívica; 3) desigualdade sócio-econômica; 4) sentimentalismo; e 5) disposição a chegar a um acordo.
A) A Herança Dualista do Direito Romano: O direito português foi inspirado no romano, cuja formação se deu em um contexto dinâmico e diversificado, já que Roma era o centro de um imenso império. O Corpus Juris Civilis de Jutiniano, contudo, já demonstrava uma rigidez que o descolava da realidade. No Séc. XI, o redescobrimento daquela obra gerou escolas que a tinham como verdade absoluta, normas abstratas mas divorciadas do contexto econômico, sendo que o trabalho dos glosadores e dos comentadores exerceram forte influência nas ordenações Afonsinas e Filipinas. Esses estudiosos procuravam formar um “sistema harmonioso e universal de normas éticas de conduta” (p. 19), afastando normas tradicionais “para padrões éticos irrealistas que refletiam ideais almejados” (p. 20).
Portugal teve, assim, dupla influência romana: um pelo tempo em que foi ocupado, de caráter prático, e outro de natureza ideal, decorrente da interpretação do Corpus Juris Civilis, o que persiste ainda hoje no Brasil.
B) O Pluralismo Legal: A história jurídica portuguesa é também caracterizado, tanto nos tempos de ocupação romana, visigótica e moura, por um personalismo do direito, com normas diferentes para conquistadores e conquistados. Após a reconquista, os reis portugueses concediam privilégios legais para certas cidades ou grupo de pessoas, em uma antítese de sistema universalista. “O pluralismo jurídica de fato, tão freqüentemente encontrado no Brasil é fortemente ligado ao pluralismo 'de jure', predominante no passado de Portugal” (p. 22).
C) A Influência do Catolicismo: Diversas regras rígidas de inspiração católica, mas dissociado da realidade, resultaram em todo tipo de burla por meio do “jeito”. Assim ocorreu desde o tempo colonial, com a escravização dos índios, apesar de legalmente proibido. Já no Império e na República, o divórcio era proibido (até 1977), o que fazia com que as pessoas, por exemplo, casassem diversas vezes no exterior, o que era socialmente aceito. A lei de usura, de 1951, que impedia a fixação de juros acima de 12% ao ano (repetida na CF de 88), tornou-se obsoleta com a inflação galopante e jamais foi aplicado ao sistema financeiro. Por fim, o aborto, que é crime, ocorre rotineiramente em clínicas ilegais, fazendo que o Brasil seja um dos países com índices mais altos de aborto no mundo.
D) A Administração Colonial: A forma confusa como a administração colonial foi implantada no Brasil gerou “desconfiança aos servidores governamentais e desrespeito às Leis”, o que tem impedido, ainda hoje, a implantação de reformas administrativas.
1. O Legado do Patronato
O sistema legal português baseou-se no patronato, onde o Rei concedia privilégios e favores em troca da lealdade. Os lucros dos monopólios eram agregados ao patrimônio do monarca e não da nação, produzindo corrupção, burocracia e um sistema jurídico personalístico e imprevisível.
1.1. A Corrupção: Como os serviços públicos eram privilégios concedidos ou comprados do Rei, a noção de cargo público era deficiente, permitindo todo tipo de utilização pessoal. O “presentinho” era, e ainda é, um meio de se fazer funcionar a estrutura do Estado. “Em vez de serviços públicos, os cidadãos buscavam favores do governo, os quais eram concedidos em bases pessoais e em troca de 'outros favores'” (p. 28), gerando, até hoje, uma confusão entre patrimônio público e privado.
1.2. A Papelada Burocrática: Em razão da centralização do poder em Lisboa, os administradores da colônia eram apenas executores, razão pela qual era necessária uma extensa burocracia para esse fim, principalmente porque o Conselho Ultramarino se preocupa até mesmo com os mínimos detalhes.
1.3. A Administração ad hoc da Justiça: O sistema judicial brasileiro, decorrente do patronato, foi sempre deficiente, as decisões eram sempre dependentes de uma decisão final do Rei e a fiscalização inexistia, o que gerava freqüentemente a preferência pela “justiça com as próprias mãos”. Os próprios juízes, portugueses, proibidos de casar com brasileiras e fazer negócios, descumpriam essas regras e enriqueciam na colônia, além de, diversas vezes, distorcerem as leis para servirem aos seus próprios interesses. Após a independência a situação piorou, com a diminuição do quantitativo de juízes, o que não foi resolvido com a reforma que instituiu os juízes de paz (eleitos), freqüentemente acusados de corruptos e incompetentes.
2. A Confusão da Legislação Portuguesa
Primeiramente, a legislação vigente no Brasil colonial era tão extensa e diversificada que surpreende que a máquina administrativa tenha chegado a funcionar. Além disso, a própria monarquia permitiu, legalmente, que a legislação portuguesa fosse reinterpretada, no Brasil, de maneira relaxada (Carta Régia de 1745). As ordenações, que códigos não eram, mas compilações, foram parcialmente obscuras “desde o início e, depois de uma séria de emendas incoerentes e conflitantes, virou uma confusão d]tão grande que uma 'varinha de condão' era tão eficiente como qualquer outro guia para pesquisas jurídicas” (p. 36). Não obstante, serviram de base do direito civil brasileiro até 1917.
3. A Lei da Boa Razão
A lei de 18 de agosto de 1769, legada aos brasileiros pelos portugueses, estabeleceu que as regras do direito romano somente seriam aplicáveis em uma análise, em cada caso, da “boa razão”, um conceito flexível que permitia amplas interpretações, o que incentivava juízes e advogados a observarem o senso comum, o espírito da lei e os costumes com base das decisões, precursor do “jeito”. “Assim, a prática brasileira de reinterpretar leis à luz do bom-senso tem por antepassado espiritual a Lei da Boa Razão” (p. 38).
4. A Fraqueza do Controle Português
Portugal, pela pequena população, tinha dificuldade de manter uma estrutura de controle no Brasil, cujo poder era descentralizado nas mãos do senhores de terras, inclusive no campo jurisdicional. Isso dificultou a retomada do poder pela Coroa, a tal ponto que, segundo Gilberto Freyre, o Rei de Portugal quase que reinava sem governar. Institucionalizou-se, ademais, o não cumprimento das ordens reais em certos locais quando injustas ou perniciosas aos destinatários. Outros fatores foram determinantes, como o envio de condenados para o Brasil, pesados tributos (que incentivavam o descumprimento da lei), além da vastidão do território, que dificultava a comunicação.
E) A Falta de Responsabilidade Cívica e o Personalismo
Os portugueses legaram aos brasileiros, ainda, pouco senso cívico e uma forte obrigação para com amigos e parentes, o dificulta uma aplicação impessoal da lei. Além disso, esse caráter com ênfase nas relações pessoais faz com que a simpatia esteja acima da lei, até porque as normas são sempre vistas em termos eqüitativos e com uma filosofia humana.
F) A Profunda Desigualdade Sócio-Econômica
A imensa desigualdade sócio-econômica brasileira reflete-se no âmbito jurídico: existe uma lei para elite e outra para o povo, apesar da retórica constitucional da igualdade. “No Brasil se diz, com boa razão: 'o Código Civil é para o rico; o Código Penal para o pobre'” (p. 46). Essa diferenciação é demonstrada, por exemplo, na prisão especial para detentores de curso superior.
G) O Sentimentalismo
Conseqüência do relacionamento direto pessoal é que o brasileiro, entre cumprir a lei ou ajudar alguém de quem se sente pena, opta por esta, em um “complexo de coitado”, que é alguém que precisa ser protegido. “Este sentimentalismo nacional tende a atenuar o rigor da lei e multiplicar a incidência do jeito” (p. 48).
H) A Arte da Conciliação
O brasileiro tende à conciliação, provavelmente em razão da necessidade histórica de superar os obstáculos com sutileza e dissimulação, o que se tornou arte e tradição no país. O “jeito” é, assim, uma manifestação dessa tendência, “herdada dos portugueses para achar soluções pragmáticas para penosos problemas” (p. 49).
Capítulo III – A Cultura Jurídica: Paternalista, Legalista e Formalista
A) O Paternalismo
A herança da monarquia, da Igreja e da família na forma patriarcal impregnaram a estrutura social, de tal forma que o “patrão”, membro da elite, serve de intermediário aos interesses dos empregados, em uma personalização dos serviços públicos. Nesse contexto, as leis são “outorgadas” ao povo sem os necessários estudos e discussões, de forma paternalística, pelo que um grupo entende como bom para o povo e não decorrente de pressão popular, a exemplo do que aconteceu com a CLT. A previsão constitucional do salário mínimo é outro exemplo, já que seu valor não consegue garantir os bens da vida mencionados na Carta Magna.
B) O Legalismo
A sociedade brasileira faz questão de que todos os aspectos de sua vida sejam reguladas por lei, de tal forma que “nada é juridicamente irrelevante” (p. 54), buscando-se detalhar ao extremo e pré-ordenar todas as possíveis ocorrências futuras. Presume-se, ainda, que todos os problemas podem ser resolvidos por meio de uma lei, sem se observar se seu conteúdo é exeqüível. “Raramente se debate se a sociedade está ou não disposta ou habilitada a bancar os custos da execução de uma lei” (p. 55).
O fato de as leis poderem ser compradas na banca ou que litígios banais como aquele que discute se determinado aluno foi justamente reprovado, às vezes até mesmo levados ao Supremo Tribunal Federal demonstram bem o caráter legalista da sociedade. “O legalismo tem também concorrido para a popularidade do jeito de duas maneiras: provocando uma abundante legislação regulamentar, e falhando em prover suficiente flexibilidade a tal legislação. O jeito pode ser encarado como uma solução legalista para ambos os problemas” (p. 58).
C) O Formalismo
Intimamente ligado ao legalismo está o formalismo, havendo uma tal preocupação com a autenticação e verificação que “a presunção parece ser de que todo cidadão está mentindo, até que ele produza prova documental escrita de que está dizendo a verdade” (p. 59), demonstrando acreditar-se mais em documentos que em pessoas. Justifica-se esse formalismo, dentre outras coisas, ao transplante não-adaptado das leis européias e o pouco alívio quanto àquelas herdadas de Portugal.
1. A Ciência Jurídica e a Educação Jurídica
A educação jurídica brasileira é formalista e preocupa-se muito mais com a exegese clássica de texto legais formais, em um dogmatismo que busca uma coerência intrínseca do sistema jurídico sem preocupação com a conduta das pessoas afetadas.
2. As Estratégias para Promover ou Evitar Mudanças Sociais
Existem teorias que acenam para o fato de que o formalismo tanto pode servir para induzir determinadas mudanças quanto para evitar que elas aconteçam. No primeiro caso, as elites moldariam a sociedade que aspiravam ter; No segundo, eventuais mudanças seriam amortecidas pelo conservadorismo administrativo, já que as leis, mesmo editadas, poderiam ter barrada a sua implementação nesse nível. Quanto a esse, exemplifica com o Estatuto da Terra que, avançado para 1964, não conseguiu implementar a reforma agrária por falta de compromisso fundamental às metas em todos os níveis. Dessa maneira, as elites têm tido êxito em barrar reformas constitucionais; falhando, resistem no congresso à legislação; falhando, obstruem a implementação burocrática; mais uma vez no insucesso, recorrem ao judiciário; e por fim, sempre há a possibilidade do jeito.
Capítulo IV – O Imbróglio Burocrático
A burocracia, caracterizada pelo “empreguismo” por meio de “pistolões”, inchando a máquina pública, inclusive com órgãos que se sobrepõem, facilitando eleições com promessas de emprego. As leis que permitem a demissão por ineficiência não são observadas e a própria Constituição Federal “legalizou” antigos empregados contratados irregularmente. Muitos devem seus empregos à “politicagem” e está inclinado aos favores. O excesso de formalismo, assim, serve para dar o que fazer a alguns e dividir as responsabilidades a outros. A burocracia é evidente em todos os âmbitos, exigindo-se, tipicamente, para resolver uma questão, a ida a diversos órgãos estatais e enfrentamento de longas filas para organizar todos os documentos e autenticações necessárias, além da demora na prestação do serviço.
A centralização do poder, a falta de sua delegação e longa espera para que os documentos e pareceres cheguem às áreas de decisão incentivam o jeito. Assim, reclama-se que servidores “criam dificuldades para vender facilidades”.
A) O Despachante
Diante da burocracia, floresceu a figura do “despachante”, que é a pessoa versada nos caminhos administrativos e responsável pelo preenchimento dos documentos e agilização junto aos servidores, o que muitas vezes se faz com o jeito (e mediante o devido agrado). “Se não fosse pelo jeito e pelo despachante, todo o aparato administrativo do Brasil estaria paralisado” (fl. 74).
B) A Reforma Administrativa
Nas últimas décadas várias tentativas de desburocratização ocorreram, desde os militares. Órgãos foram reorganizados, grande parte do processamento burocrático eliminado e tantos outros simplificados, medidas, porém, muitas vezes ignoradas. Além disso, o período de redemocratização fez lotear-se cargos públicos aos políticos dos partidos vitoriosos e a nova Constituição não conseguiu evoluir na estrutura de administração. Avanços ocorreram no governo Collor e vários outros foram obstados no governo Cardoso. Apesar do avanço, a burocracia continua sofrendo os mesmos problemas, com uma grande maioria de servidores ganhando mal e não-qualificados e uma minoria com altos salários.
Capítulo V – A Penetração do Sistema Jurídico Formal
Apesar do sistema formal brasileiro ter um caráter moderno, com a Constituição e principais códigos aplicados por uma estrutura hierárquica de órgãos formados por pessoas altamente especializadas, ainda há pouca capilaridade, havendo amplos espaços nas favelas e no meio rural para o surgimento de autoridades para-estatais
A) O Calígula Ressuscitado - À Procura da Lei Vigente
O acesso ao sistema formal é problemático pela dificuldade em se descobrir a lei vigente, tanto quanto era no tempo colonial. As normas são publicadas em Diários Oficiais a fim de produzir efeito jurídico, mas isso não assegura a facilidade de que seja encontrada no futuro, já que não há índices oficiais, e os não-oficiais costumam estar desatualizados. Não existem compilações oficiais, muitas leis se sobrepõem parcialmente e o costume de determinar que “revogam-se as disposições em contrário” resulta e que não se sabe exatamente quantas e quais leis estão em vigor.
Cita o autor editorial do Jornal do Brasil, quanto à confusão legislativa: “Isso é porque quando ele menos espera, um burocrata puxa uma norma legal de sua gaveta, como se fosse uma arma, e dispara contra o cidadão que deseja se envolver em qualquer tipo de atividade produtiva” (p. 85). Tudo isso reduz o PIB e concorre para a inflação e dívida a astronômica do país. Ainda, além de numerosas, as leis costumam ser confusas e mal redigidas, exigindo uma série de decretos e regulamentos que a expliquem. Nos Estados Unidos, em contraste, o sistema de produção das normas administrativas (rulemaking) exige um complexidade de atos até a redação final, evitando caprichos. Por fim, as autoridades costumam estar desinformadas das leis que deveria observar.
B) Após Goulart, O Dilúvio
A grande transformação sócio-econômica do Brasil, de rural/agrário para urbano/industrial, tornou muitas leis obsoletas. O regime militar pós Goulart tomou a iniciativa de reformas, em um dilúvio legal de pouca qualidade e, por terem sido editados sem discussão, apresentavam muitas ambigüidades. O mesmo ocorre hoje em relação às Medidas Provisórias.
C) A Medida Provisória
Os governos pós constituição de 88 têm usado prodigamente esse recurso, previsto originalmente apenas para situações excepcionais. Com validade de 30 dias, as MP's costumeiramente eram reeditadas com pequenas modificações, um “jeito” para burlar a Constituição e o STF. Um problema surgiu com relação às implicações jurídicas da rejeição de uma MP após longas reedições. Quanto a isso, também deu-se um jeito, incluindo cláusula convalidando todos os atos praticados com base nas predecessoras.
D) A Deficiência do Sistema Forense
A reputação do sistema forense brasileiro é de gigantesca lentidão, auxiliando a difusão do jeito. Essa lentidão se dá pelo desaparelhamento, pela dependência política e financeira, além do excesso de formalismo do sistema processual. O excesso de recursos permite a protelação das lides perdidas por longos períodos, em um “paraíso dos réus”, prejudicando aqueles com boas causas, com base em contrato ou responsabilidade civil. Policiais e escrivãos corruptos, que normalmente precisam de um “lubrificante” também são comuns. Assim, presos são soltos e processos desaparecem. Acrescente-se altas taxas judiciárias e custos com honorários advocatícios, e ver-se-á que o acesso à prestação jurisdicional é bem limitada. Recente tentativa de desburocratização têm tido sucesso contido, com os Juizados Especiais, sem, contudo, resolver o problema de acesso à justiça.
As decisões judiciais também são dispersas e não formam um corpo coeso, com índices de jurisprudências não confiáveis e incompletos, sem esquecer que as decisões, em países de tradição civilista, não são tão importantes. “Tendo em vista que o procedimento judicial se tornou praticamente inoperante, muitos se inclinam pela procura de métodos alternativos para se proteger' (fl. 96).
Capítulo VI – Os Custos do Jeito
A jeito, na forma de corrupção, causa imensos prejuízos financeiros e limitam o poder de atuação do governo no estímulo de condutas desejáveis e na redistribuição de rendas. As dificuldades burocráticas geram o chamado “custo Brasil”, que dificulta a competição internacional dos produtos brasileiros e milhares de potenciais trabalhadores ficam parados. Esses empecilhos ao crescimento afetam diretamente o PIB e estimula a economia informal, que não gera impostos, bem como gera altas taxas de sonegação e evasão fiscais.
Devido ao jeito corrupto, “as pessoas relutam em assumir responsabilidade pessoal pelas decisões, preferindo passar os documentos adiante para 'maiores apreciações'” (p. 100) e a morosidade da Justiça causa enorme prejuízos financeiros. A incerteza e imprevisibilidade do jeito desencorajam quem deseja investir e aqueles que estão regulares são forçados a burlar a lei para competir com um grande número de informais.
Ainda, problemas com linchamentos, prisões superlotadas e chacinas podem ser conseqüências do princípio de que burocratas e particulares podem reinterpretar ou ignorar leis que julguem muito restritivas ou inadequadas.
O próprio Estado, em prejuízo de sua credibilidade, muitas vezes faz uso do “jeito” para resolver problemas, citando o autor a mudança de regras que tiraram a Petrobrás, em 1983, de um imenso prejuízo em lucro. Outra faceta é o calote, declarado 6 vezes pelo Brasil em relação à dívida externa, e muitas vezes as desapropriações deixam de ser pagas regularmente, o que explicaria a razão do país pagar juros tão altos em relação ao mercado internacional.
“Finalmente, ao atuar como válvula de escape, o jeito tende a evitar a acumulação de pressão e desgastes suficientes para que se promovam as tão necessárias reformas jurídicas e administrativas.
Capítulo VII – Os Benefícios do Jeito
O jeito pode auxiliar a se contornar os obstáculos sem interferência governamental, servindo, ironicamente, como fonte de estabilidade e previsibilidade em um mundo onde leis e regulamentos estão em constante mutação. O Jeito, na forma do “soltar dinheiro para apressar” serve como um imposto direto sobre quem tem mais condição de pagar, em um dos poucos aspectos progressistas no sistema tributário brasileiro, indo direto para o bolso do mal pago servidor. “Ao preservar a fachada de legitimidade em face da rápida mudança social e econômica, o jeito tem sido de valor inestimável em possibilitar ao sistema brasileiro operar sem conflitos violentos” (p. 111).
Conclusões
Em uma análise primária, os benefícios e os custos com o jeito se sobrepõem e, a longo prazo gera obstáculos ao desenvolvimento do país. “O desenvolvimento exige u alto grau de integração social e cooperação comunitária, bem como o abandono dos padrões tradicionais e autoritários de comportamento” (pp. 113/114). Outrossim, a igualdade deveria ser garantida por meio de uma estrutura jurídica consetânea e uma administração impessoal e eficiente, de maneira a ser previsível os cenários futuros, garantindo aos empreendedores a possibilidade de calcularem os riscos ao fazer negócios.
“Uma sociedade desenvolvida moderna deveria deixar pouco espaço para a operação de uma instituição como o jeito. Uma sociedade de transição como a a brasileira, entretanto, com tamanha pletora de leis, decretos e regulamentos que apenas retardam o desenvolvimento, parece ter espaço de sobra... para o jeito!” (p. 114).
Conclusões Pessoais
O primeiro impacto à leitura do livro é o fato de encararmos um estrangeiro apresentando uma análise crua de nossa realidade, o que parece gerar de pronto uma rejeição ao conteúdo. Afinal, o que um americano quer com nossos problemas? Todavia, ultrapassado esse ponto, o que não é difícil diante do excelente conteúdo, o que se nos apresenta é um retrato muito exato de uma realidade bem conhecida mas muito pouco discutida.
Talvez o fato do autor se estrangeiro, ao revés de atrapalhado, tenha sido fundamental na construção da obra. Além, a ampla pesquisa, histórica e de campo, surpreende pela fidedignidade de seus resultados. O resgate da influência ibérica em nossas estruturas democráticas, aliás, aponta caminhos possíveis a uma ação cotidiana para que possamos tentar escapar da armadilha histórica recorrente.
A corrupção, o legalismo, o formalismo e o sentimentalismo, dentre outros elementos muito bem explorados na obra, são facilmente identificáveis na atuação dos servidores públicos de nosso país. Identificar essas questões como um legado e não como uma realidade incontornável é o primeiro passo à ação.
Pode-se dizer, a grande virtude da obra, diante de seu detalhismo e profundidade, é não oferecer qualquer possibilidade ao leitor de alegar desconhecimento da maneira como o jeito está perspassado em nossa cultura, forçando-o a uma atitude proativa, sempre que possível, na modificação das estruturas administrativas do Estado Brasileiro.
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