5 de jun. de 2009

Cartografia da Racionalidade Moderna - Alexandre Araújo Costa, in Miroslav Milovic, org.

Brasília: Editora Casa das Musas, 2005. 294p páginas.

Entre Metáforas e Paráfrases

As teorias, mesmo com todo rigor científico e linguagem denotativa, têm por trás elementos simbólicos que a subjazem, sendo um ponto cego das concepções tradicionais e modernas, uma vez que são tidas como verdades óbvias sobre as quais não se tematiza. Na concepção tradicional, a teoria exerce a mesma função das artes: representar fidedignamente a realidade, como uma atividade contemplativa e não criadora. A modernidade, pela redução do real ao empírico, tornou as explicações mecânico-causas as únicas aceitáveis, mas permanecendo a identificar a verdade como a descrição fiel da realidade. As concepções medievais e seus “irrealismos” foram consideradas toscas, enquanto as representações da antigüidade greco-romana foram tomadas como modelo. “Como não se supunha ainda que talvez o mundo fosse uma invenção nossa, o desafio do homem era compreender o mundo, desvendar suas leis, descobrir o modo do seu funcionamento” (p. 32).
O Autor entende, portanto, que teorias são metáforas sobre o mundo, mesmo quando pretendem ser paráfrases. Todavia, este culto à representação não significa, necessariamente, desvalorização da capacidade criativa, já que “o gênio parafraseador não é quem inventa o mundo, mas quem inventa formas novas de representá-lo” (p. 32).
O renascentismo, diga-se, ainda não era um racionalismo moderno, pois o filósofo não estava preso ao mundo finito de fenômenos empíricos e tinha espaço para a transcendência. Na modernidade, porém, a objetividade racional consolidou-se como o padrão correto de descrição do mundo, recusando outras formas de acesso à certeza – essa o seu grande desafio. É de se lembrar que, enquanto a verdade aceita é fruto da tradição, a certeza é da apreciação pessoal (fé). Os modernos, percebendo que a certeza antiga fundava-se na tradição, buscaram um novo fundamento para a certeza. “Mas onde encontrara a base dessa certeza objetiva, se a certeza é subjetiva?” O desafio era reconstruir a objetividade sobre a subjetividade, o que só seria possível por meio de uma subjetividade universal, ou seja, fundamentar que existem normas que devem ser aceitas por todos, um ponto de contato entre todas as subjetividades. É a via moderna para garantir a objetividade do mundo.
A valorização moderna da evidência empírica fazia com que o pensamento moderno se considerasse evidente, isso até o Século XVIII (até a desconstrução do conceito de evidência levada a cabo pelos pensamentos de Hume e Kant).

O Olho que não se vê
O fundamento daquela evidência era a própria razão. Separou-se, portanto, da certeza imotivada da religião, em um processo de secularização do pensamento filosófico e científico. Essa razão, por ser instrumento do próprio pensar, não era tematizada, era uma realidade objetiva que se impunha: “penso, logo existo”.
A verdade secularizada e voltada para a análise das coisas que cabem na razão foi gestada ao longo dos séculos, resultando, a partir do Século XVII, na filosofia moderna. Os pensadores inventaram uma nova maneira de perceber a história, crendo ter encontrado a saída da caverna, mas em verdade tendo apenas inventado uma “nova lanterna”. Foi o tempo em que se considerou a perspectiva linear (e matemática) como a correta para a representação do mundo, em um momento tão importante para as ciências que hoje é conhecido como a “Revolução Científica”. Tomava-se um novo critério de objetividade chamado “racionalidade”. Nesta, imaginava-se ser possível observar o mundo objetivamente, na busca de uma representação perfeita do real. Inaugurou-se, assim, um novo modo de pensar o mundo, mas não de pensar o próprio pensamento.
A verdade, sendo uma só, não poderia ser racionalmente contestada e, portanto, existiria uma ciência única, pois as ciências particulares precisam dizer coisas compatíveis entre si.
Todavia, Hume e Kant vieram questionar a objetividade de nossas representações do mundo. Aquele afirmou que a certeza científica estava assentada sobre uma crença, enquanto este que o conhecimento é um fruto do modo humano de olhar o mundo. Depois deles, a triunfante modernidade! Da objetividade frente às coisas chegamos à objetividade frente aos homens, permanecendo, contudo, a mesma denominação de “racionalidade”.
No âmbito das artes, afasta-se da tentativa de representação direta e fiel dos objetos, do mundo, mas representar a forma como homem os via. Assim, a dualidade sujeito-objeto permanece, pois a obra de arte ainda tem uma referência externa a ela mesma e ainda não se buscava a constituição de objetos. No Século XX, qual susto não foi quando se percebeu que a racionalidade não era racional, que sua objetividade era uma forma de construir o mundo. O artista não refletia o mundo, mas criava obras que eram um objeto independente no mundo, abrindo caminho para a arte abstrata e conceitual.
A imagem no espelho
A racionalidade parte de idéias que não podem ser comprovadas e, portanto, não existe uma racionalidade racionalmente demonstrável, sepultando as bases da unificação do pensamento moderno. Via-se a modernidade como uma concepção atrasada, então. Se moderno não é o que fica para trás, e era isso que se tinha verificado, necessário seria mudar seu nome, o que aconteceu nas artes (modernidade a partir do Séc. XX), mas não aconteceu na filosofia, o que a faz designar as reflexões contemporâneas como “pós-modernidade”.
Diz o autor do texto: “Os tradicionais explicitaram seus pressupostos, mas não se preocuparam em os justificar” (p. 42). Os modernos tiveram que reconhecer o vazio em tentar fundamentar o fundamento último, que está além da própria teoria, processo esse traumático e que, na arte, por exemplo, resultou no rompimento da função representativa e, na filosofia, levou a conjecturas que consideram o filósofo como um criador de conceitos, mas não como alguém que contempla o mundo.
O homem da modernidade era forçado a reconhecer um desencantamento do mundo, decorrente da ausência de um conjunto de idéias que lhe atribua sentido. Na filosofia do direito, essa cisão fica mais clara na teoria pura do direito de Kelsen. Ele chega a dizer que a norma fundamental é uma ficção epistemológica.
Essa cisão interna de reconhecimento do limite da razão teve reflexos nas artes, por exemplo, desvinculação do belo e do sagrado, o que por muitos seria uma perda a ser sentida. “Se o pensamento não é fundamentado, então ele não representa uma verdade, mas pode instaurar uma verdade, assim como um pintor pode instaurar uma nova estética” (p. 44). Mas se as teorias científicas não são representacionais, o que são então?

Mapas de mapas de mapas
A teoria é algo que não precisa de justificação externa a ela mesma e, portanto, toda teoria é uma metáfora e toda explicação da teoria é uma metáfora da metáfora. Contudo, a modernidade tentar fazer da ciência uma paráfrase, o que é perigoso, pois esta carrega significações imprevisíveis. Nesse perigo, porém, resta sua força, pois “não existem fatos, só interpretações”.
Na falta de uma explicação direta do mundo como ele é, construímos o discurso teórico, uma descrição lingüística do mundo. A metáfora cartográfica auxilia a evitar a confusão entre a coisa e o modelo que elaboramos para representá-lo, afinal, mapas não são o mundo. Além disso, o mapa não cai do céu, mas é uma construção humana, como o conhecimento. Mapas com escalas e funções diferentes não têm hierarquia, já que cada qual cumpre o seu papel.

É de se perceber que podemos co-relacionar mapas, interpretando-o, gerando um outro mapa, o meta-mapa, que provavelmente não abrangeria todos os mapas do mundo. Imagina-se, então, um meta-metamapa (ou seja, um mapa de mapas de mapas) e, no limite, um meta-meta-meta-metamapa, que seria uma espécie de mapa-múndi dos conhecimentos, com baixo grau de detalhamento, sob pena de torná-lo inintelegível.
Apesar de sua generalidade, o supermetamapa teria que ser fragmentado, pela heterogeneidade dos mapas que precisa topografar. Ele não é composto de mapas individuais e, assim, não contém conhecimentos específicos, mas sim noções que permitam o diálogo entre mapas diversos. Esse grande mapa é o senso comum. O sonho da ciência moderna era fazer um mapa perfeito que substituísse essa colcha de retalhos incongruentes, uma chave de compreensão para todos os mistérios do mundo.
Uma imagem arquetípica da ciência contemporânea é uma câmera que focaliza a via láctea, depois o sistema solar, a terra, um continente, um país, uma cidade, um bairro, uma rua, uma pessoa, uma mão, uma célula, uma molécula, um átomo, um elétron, um fóton etc, cada um como um close de um grande mapa, que poderia ser infinitamente ampliado ou reduzido, mas sempre guardando absoluta unidade com os mapas intermediários.
Diz Alexandre: “Portanto, em vez de distorcer ainda mais os mapas, na tentativa de unificá-los, prefiro a busca de cartografar os mapas e metamapas, sabendo que esse processo é uma eterna simplificação (não representamos, mas esquematizamos o real), que ela é criadora (traçamos e não descobrimos os mapas) e que ela nunca leva a uma perfeita unidade (utopia tipicamente moderna)” (p. 50).


Conclusão

O interessante caminho percorrido pelo autor do texto sintetiza, com rara clareza, o imenso caminho percorrido pelas ciências ao longo do tempo, desmistificando o princípio da racionalidade. Este, a base das ciências, é colocado como um instrumento utópico da representação de nossa realidade. Portanto, deve ser repensado sob uma perspectiva de que jamais será responsável por uma teoria de fundado na paráfrase, mas, ao contrário, significará sempre uma metáfora.


Ora, sendo a teoria uma metáfora, precisamos ter em mente que ela será sempre uma simplificação da realidade e jamais podemos pretender confundí-la com o objeto da representação.

A lembrança do Autor quanto a correlação existente entre ciência e arte, já que ambas compartilham a lingüística, é igualmente interessante do ponto de vista filosófico, permitindo o caminhar na direção da compreensão de que as ciências são mapas de mapas de mapas. Essa metáfora cartográfica é muito útil a uma rápida absorção da mensagem que o autor busca deixar.

A menção da teoria como metáfora, e a explicação da teoria como metáfora da metáfora, com alusão aos mapas, ensina a impossibilidade racional de estabelecimento de um supermetamapa a consolidar a essência de todos os conhecimentos humanos.

Dessa maneira, propõe o Autor, que se compreenda que toda teoria é, ao mesmo tempo, uma simplificação e uma nova criação no mundo, e que, muito mais que representar uma realidade, ela se torna parte daquela realidade. Essa percepção pode mudar a forma com que nos relacionamos com o mundo e com o conhecimento.

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