São Paulo: Editora Paz e Terra, 2005. 266 páginas.
Capítulo 1 – Patrimonialismo, liberalismo e democracia: ambivalência da sociedade e do Estado no Brasil pós-colonial
A emancipação política brasileira teve origem em aspirações democráticas e liberais, que em um primeiro momento eram indiferenciadas. Todavia, o liberalismo brasileiro pré-independência adquiriu sentido predominantemente antimetropolitano.
A agenda liberal tinha significados diferentes para as elites e para o povo. Aquelas queriam modernização e civilização, sem aceitar a república e a democratização de direitos. Este imaginava o fim da miséria e dos privilégios.
O período regencial e o segundo império ficaram caracterizados por uma luta entre as elites conservadoras e os grupos considerados radicais, formados por escravos e movimentos urbanos, que apoiavam propostas democratizantes. Todas essas circunstâncias já demonstravam a profunda contradição entre a propensão à democracia liberal e o exercício autoritário e aristocrático do poder.
O Século XIX no Brasil ficou marcado pela indeterminação entre o público e o privado, em evidente manutenção do patrimonialismo, não obstante a pretensão liberalizante das elites. Esse conflito fica evidente, no plano político, com as disputas partidárias entre conservadores, liberais moderados e liberais radicais, em assuntos como abolicionismo, republicanismo e, sobretudo, na questão eleitoral.
O contraste acima mencionado teve efeitos nas diversas modalidades do pensamento liberal. Tanto os liberais moderados quanto os radicais não conseguiram diagnosticar corretamente os problemas, impedindo-os de apresentar soluções adequadas para as questões econômicas, políticas e sociais, apesar de os radicais terem oferecido aguçadas críticas à condição da sociedade de então. Nesse contexto, o radicalismo e o conservadorismo reatualizaram sistematicamente a cisão entre liberalismo e democracia.
As raízes do dilema democrático
A segunda metade do Século XVIII ficou marcada pelo “renascimento agrícola” brasileiro e a passagem do eixo econômico do nordeste para o centro-oeste. A aparente melhora econômica da Colônia não modificou a estrutura produtiva e foi incapaz de atenuar o empobrecimento geral, desaguando em uma inesperada coesão “revolucionária” entre classes aparentemente inconciliáveis, traduzindo os sentimentos antimetropolitanos e vontade coletiva da independência.
No primeiro quartel do Século XIX reinou a anarquia monetária e o ônus da miséria recaiu sobre a maioria do povo brasileiro, livre e desprovido da propriedade de terra, recrudescendo hostilidades entre colonos e metrópole. Já para os proprietários de terra, a emancipação significava o fim de monopólios e restrições. Dessa maneira, o colonialismo português foi liquidado (não obstante a divergência entre os interesses de classe) como conseqüência da sinergia do povo e das elites, sob o comando destas. Ademais, havia uma certa indefinição da estratificação social na época, sendo difícil a clara separação entre senhores e o povo, enquanto o “inimigo” era de fácil identificação, representado pelo aparato burocrático-militar da metrópole.
É certo, ainda, que o caráter policialesco e confiscatório dos agentes da repressão colonialista gerou ódio que era indistinto entre as classes sociais, em uma sucessão de choques e intermináveis vinganças de lado a lado, o que determinou a desagregação do colonialismo e a emergência de um “espírito revolucionário”.
Havia certo consenso de que o liberalismo, inspirado no modelo francês, seria a alternativa ao colonialismo, e que representaria a liberdade, o progresso, a modernização e a civilização.
Essa transmigração de valores liberais entre povos tão distintos deveu-se a quatro fatores principais: 1) A modernização do ensino em Coimbra, do qual faziam parte diversos brasileiros dos estratos privilegiados, resultando na formação cultural e intelectual liberal dos estudantes brasileiros, inclusive futuros estadistas e construtores do Estado Nacional; 2) A maçonaria, inspirada em ideais franceses liberais, formou uma intelligentzia capaz de dirigir o movimento que levou à independência; 3) a participação de Clérigos, que diferentemente da maçonaria não pregava ideais liberais, mas defendiam um humanismo com base nas ideologias políticas iluministas, como conseqüência, basicamente, do envolvimento de padres com a maçonaria e a reforma pombalina; 4) Divulgação dos ideais liberais por meio dos movimentos insurreicionais pré-independência.
Todavia, não foi somente a incorporação da cultura liberal que levou à independência, mas o próprio contexto de crise que solapou as bases sociais em que se sustentava o colonialismo, apesar da clara ligação entre esses dois vetores. A formação dos estudantes brasileiros vem, em verdade, demonstrar porque o liberalismo foi a alternativa encontrada e não outra.
Nesse contexto revolucionário, as diferenças e desigualdades sociais não foram obstáculos ao sucesso da estratégia liberalizadora. O liberalismo introduzido na colônia teve validade psicológica, isto é, conscientizou o colono das contradições entre seus interesses e da metrópole, de forma a transformar em ação política a crença no ideal de liberdade.
Liberalismo e Democracia
O liberalismo teve papel fundamental na emancipação, mas não foi capaz de conciliar os interesses diversos das classes, uma vez que não foi um movimento exclusivo dos estratos sociais superiores. Afinal, a idéia de liberdade e igualdade para um alfaiate e um grande proprietário de terras era diferente.
Na época, as idéias liberais já estavam difundidas inclusive entre as classes mais baixas, o que gerou o temor, entre estratos privilegiados, em relação à ruptura com a monarquia, pelo risco de perda de prerrogativas econômicas conquistadas com a quebra do monopólio da metrópole e direito de representação junto às Cortes.
As disputas de classes, que em tese poderia se pensar apaziguadas pelas idéias de liberdade e igualdade, na verdade acirraram-se, e a população, durante todo o período monárquico, desconfiou das fórmulas abstratas do liberalismo.
Com a formação do Estado Nacional, verificou-se nuamente que o liberalismo brasileiro estava dissociado de princípios democráticos. Liberdade associou-se à modernização e progresso; democracia, a anarquia, sendo que o liberalismo heróico pré-independência acabou substituído por um liberalismo regressista.
Uma série de revoltas nas diversas províncias aconteceram com certa freqüência, levando, a partir de 1849, à um conjunto de reformas jurídicas para manutenção da unidade nacional. Tratava-se de reformar para conservar, o que, ao final, teve pouco resultado, já que os movimentos populares continuaram ocorrendo. Isso porque o povo pretendera, de fato, a liberdade, mas acima de tudo, a igualdade; diferentemente, a elite dominante liberal e ilustrada quis liberdade, mas reconheceu como inevitável a desigualdade.
As divergências políticas entre as minorias dominantes ocorriam em um contexto de receio tanto ao despotismo quanto à anarquia. Deveriam, então, avançar a favor das instituições livres, mas com o cuidado de evitar o fortalecimento das maiorias desfavorecidas, sob pena de perda de privilégios herdados ou adquiridos. Assim, invocaram os princípios liberais para anunciar algo distinto do que pretenderam invocar.
Liberalismo e Patrimonialismo: a dupla face do Estado
Em uma análise do Brasil do Séc. XIX, pode-se aceitar a hipótese de que o tipo de dominação repousou sobre uma legitimidade que obstaculizou a democracia, diminuindo a competitividade e estabelecendo um capitalismo dependente.
Havia uma dominação de natureza contraditória, de relação burocrática-legal com outras típicas de uma dominação tradicional. Criou-se o impasse em conciliar a natureza patrimonial com o modelo jurídico liberal, o que somente seria possível com uma postura conservadora e distante dos princípios democráticos.
Pois entre os liberais moderados e os políticos conservadores havia divergências, principalmente sobre como ficariam as coisas ao romper-se os laços com Portugal, mas não o bastante para comprometer o pacto que se ensaiava, de proteção dos privilégios de agentes da burocracia patrimonial e da posição privilegiada de grandes proprietários rurais na condução de negócios de exportação.
O pacto, evidente na constituinte de 1824, constituía em que os agentes da burocracia patrimonial evitassem ingerências demasiadas do Estado no setor privado e que os proprietários não limitassem o poder do príncipe, o que perdurou nas sete décadas do regime monárquico, com certas instabilidades periódicas.
O mais importante é que essa aliança se manteve às custas de um inimigo comum: os liberais exaltados e radicais e suas reivindicações democráticas. O pacto expulsou-os do âmbito institucional e, confinados na vida civil e sob o peso da repressão, sucumbiram como oposição organizada, mormente após a dissolução da Assembléia Constituinte e a outorga da Carta Constitucional de 1824.
Essa carta outorgada criou o Poder Moderador, inspirado em escritos de Benjamim Constant, que foi peça-chave na conservação do Estado Patrimonial nos quadros do modelo liberal de exercício de Poder. Nessa Constituição, as liberdades eram, ao mesmo tempo, declaradas e em seguida anuladas.
Além disso, a rigidez disciplinar imposta aos escravos, fruto da violência, foi também transposto para o resto da população pobre. Para esta, o Estado foi quase sempre uma ficção. Assim, os grandes proprietários dividiram, com o estamento burocrático patrimonial, a direção do Estado durante o regime monárquico, e essa estrutura política impediu a democratização da sociedade brasileira. O liberalismo político revelara, então, sua verdadeira faceta: o conservadorismo.
As câmaras eram, então, sempre compostas pelos interesses predominantes, de modo que se chegou a dizer que “o partido que sobe entrega o programa de oposição ao partido que desce e recebe deste o programa de governo”. Foi, portanto, no plano de representação política que o distanciamento entre liberalismo e democracia manifestou-se mais claramente.
Uma vez eliminado os absolutistas e conservadores radicais, os regressistas e liberais moderados pactuaram a conservação, como já vimos, mantendo-se a política divorciada dos propósitos democráticos e tanto liberais quanto conservadores, evitando sempre a questão do alargamento do espaço de participação política, que ficara restrito aos que contribuíam para as despesas públicas e eram alfabetizados (logo, apenas pelos proprietários).
Os liberais, apesar de reivindicarem o sufrágio universal, não conseguiram ultrapassar o limite das críticas, insistindo em responsabilizar o imperador como fonte dos males. Assim, os partidos políticos imperiais não se transformaram em mecanismos de hegemonia dos grandes proprietários rurais.
Em 1870 surge o Partido Republicano, passando haver uma maior distinção nas práticas dos partidos, inclusive o liberal e o conservador e, ainda assim, essa recomposição não se prestou a atender às reivindicações populares, permanecendo o insolúvel dilema democrático: a difícil síntese entre patrimonialismo e liberalismo.
O modo concreto da dominação foi marcado pela indeterminação do público e do privado, do espaço civil e da sociedade política, uma vez que o aparelho governamental era utilizado com fins privados, sendo que o Estado fora formado sem autonomia e exclusivamente para manutenção e superação dos conflitos sociais.
O patrimonialismo teve longa duração pela ação de, pelo menos, três forças de resistência: 1) A ausência de profissionalização militar, o que permitiu o surgimento de milícias, onde havia concentração dos poderes políticos, policiais e militares nas mãos dos senhores de terras locais; 2) a distribuição de ocupações estatais rendosas e de pouco trabalho; 3) a prática judiciária pública, limitada pela atuação dos grupos dominantes no interior do Estado e pela comum solução de conflitos pela violência.
Como se vê, o liberalismo político, no Império, teve eminente característica instrumental, gerando um dilema democrático. Ao insistirem na questão da liberdade, atropelaram a herança revolucionária, que buscava também a igualdade.
Além disso, o liberalismo brasileiro foi quase privilégio de uma categoria de homens: o bacharel. Todavia, ao contrário da Europa, no Brasil a profissionalização da política não foi acompanhada pela democratização da sociedade. A Academia de Direito de São Paulo teve, então, papel fundamental nesse processo, como veremos.
CAPÍTULO 2
A Academia de Direito de São Paulo no Projeto de Construção do Estado Nacional
A criação do Estado Nacional exigiu a formação de um corpo burocrático. Nesse contexto, os cursos jurídicos no Brasil seguiram a tendência liberal então vigente e o Estado erigiu-se como um Estado de magistrados, parlamentares e funcionários de formação profissional jurídica, que passou a ser a figura central mediadora entre interesses privados e públicos. Os principais cargos do judiciário, legislativo e executivo passaram a ser ocupados por esse profissional.
A profissionalização da política, iniciada na academia de direito, foi determinada pelo bacharel, que encontrou nas teses liberais o ponto de convergência para uma consciência nacionalista e a rearticulação das elites. Esse profissional se desenvolveu em uma agitada vida acadêmica, que teve no jornalismo seu maior instrumento de luta, tendo sido disciplinado, moral e politicamente, segundo princípios liberais.
Esse processo, entre a criação dos cursos e 1880, serve para compreender as raízes da burocratização estatal. No Largo do São Francisco não existia um efetivo ensino jurídico, mas era celeiro de um “mandarinato imperial” de bacharéis.
São Paulo, nesse período, possuía cerca de 15.000 habitantes e seus serviços públicos eram precários. A cidade parecia viver às expensas da vida acadêmica, que contrastava com situação de penúria da cidade.
Tanto a academia de Direito de São Paulo quanto a de Recife surgiram pela necessidade de formação de quadros para o Estado, recém “libertado” do colonialismo português e a prevalência do ideal de liberdade sobre o de igualdade reproduziu-se na formação dos bacharéis.
Capítulo 4
Profissionalização da Política e o Bacharelismo Liberal
A formação acadêmica do bacharel, em São Paulo, era marcada muito mais pelas atividades extra-curriculares do que pelo processo ensino-aprendizagem. Os Institutos acadêmicos, organizados e hierarquizados, garantiam uma ligação dos estudantes nos processos político e literário. O instrumento de propaganda desses institutos e associações repousou no periodismo, decisivo nas lutas políticas e formação do intelectual.
Esse tipo de vida acadêmica fez aparecer os primeiros advogados das causas liberais e causas democráticas, e institucionalizou a estética literária, criando uma “personalidade” do bacharel de natureza ornamental, erudita e cultivante do intelectualismo, em uma busca de ars civilizatórios e tendo por principal legado a “prudência e a moderação políticas”.
Ademais, havia grande ligação entre os bacharéis e os interesses agrários, já que, em grande parte, os acadêmicos eram provindos da elite do campo, e eram de tal forma comprometidos com os processos de exploração econômica que não foram preparados “para o exercício da função crítica”, servindo de ponto de contato entre o aparato administrativo e os interesses daquela elite.
Sua principal tarefa não foi o de se dirigir às massas populares, mas sim a luta pelo desenvolvimento das estruturas de poder no novo Estado Nacional. Assim, formou-se não somente o “grande intelectual”, mas também o “pequeno intelectual”, que promoveu o desenvolvimento das estruturas das instituições a que foram carreados.
O liberalismo, que tinha muito a lhes inspirar, serviu, no Brasil, para obscurecer as contradições entre as classes e produzir uma “ilusão” de igualdade e liberdade.
Como reflexo da inconsistência do liberalismo em uma sociedade díspar, a formação do bacharel foi uma difícil síntese entre os princípios de liberdade, igualdade, propriedade e segurança, e viveu em eterno conflito entre princípios liberais e democráticos.
Ser estudante de direito era, pois, dedicar-se ao jornalismo, fazer literatura, consagrar-se no teatro, ser bom orador, participar dos grêmios literários e políticos, das sociedades secretas e das lojas maçônicas.
Os grêmios literários e seus periódicos, inicialmente concebidos como porta-voz do acadêmico, acabou transformando-se em guardiã da ordem pública e defensora dos direitos civis e políticos, bem como na principal atividade de formação do estudante de direito.
Sob influência do médico italiano Líbero Badaró, foi fundado o primeiro jornal acadêmico, em 1830, chamado “O Amigo das Letras”, seguindo-se a ele mais de duzentos diferentes títulos nos cento e cinqüenta anos da academia. Foram publicados discursos, reflexões filosóficas, crônicas judiciária e social e estudos históricos, mas sempre buscando manter certa distância de posições “radicais”, servindo de ante-sala de profissionalização da atividade política.
O jornalismo ensinou, então, algo além do aprendizado em sala de aula: que a política se faz em público e com a utilização de dois grandes instrumentos - a palavra escrita e a falada. Os redatores não incitavam nem à inércia, nem à revolução política, mas pretendiam disciplinar a vontade do leitor segundo o princípio da prudência e da moderação e, para isso, iam beber em fontes estrangeiras.
A importação desses pensamentos era acompanhada de importação de modelos de organização política e sua nacionalização, no entendimento dos acadêmicos, implicaria na transição da barbárie à civilização.
Já a partir da década de 1860, a diversificação da economia, a mudança do eixo econômico para São Paulo em razão do café e urbanização dos costumes, todos esses elementos transformaram a sociedade e causaram reflexos na atividade acadêmica, aumentando o número de estudantes e alterando-se seus focos de interesse.
A nova sociedade gerou uma preocupação governamental por um aperfeiçoamento do ensino do direito. Todavia, a busca pela controle do ensino jurídico fora minimizado pela repercussão das atividades extracurriculares na formação do bacharel e, assim, os redatores funcionavam como verdadeiros arquitetos do novo modelo de exercício do poder.
A imprensa acadêmica, orientada decisivamente por princípios liberais, teve destacada atuação no aprendizado da atividade parlamentar, já que ofereceu instrumentos técnicos que asseguravam o sucesso na tribuna.
Contudo, apesar da hegemonia, o pensamento liberal não era único, já que os conservadores também encontravam-se presentes na vida acadêmica. Nesse contexto, os liberais acusavam os conservadores de servilismo ao poder, corrupção, arbitrariedades e perseguição aos adversários, enquanto os conservadores acusavam os liberais de espalhar idéias democratizantes e incitar a desordem e revolta da população.
As décadas de 1870-80 caracterizaram-se pelo fim de uma etapa histórica e superação do escravismo, bem como da emergência definitiva da ordem social competitiva. Em 1884 surge o jornal “A Onda”, desprendido de uma luta tão-somente no plano das idéias para engajar-se nos movimentos sociais de transformação da sociedade brasileira, e essa nova tarefa somente foi possível porque o terreno havia sido fertilizado na década anterior.
Surgiram, assim, periódicos em três linhas de pensamento:
a) Conservadorismo - reservas quanto à eliminação da escravatura e radicalmente contra o republicanismo.
b) Liberalismo – tematizaram a colonização e a imigração para apresentar os princípios de liberdade, igualdade jurídica, propriedade e segurança, mas reticentes quanto à extinção da monarquia;
C) Republicanismo – Radical contra a monarquia constitucional e a favor da abolição (mas com moderação e cautela), valendo-se de argumentos do liberalismo político.
Mais do que nunca, a questão da liberdade obscureceu outra mais delicada: o exercício da igualdade. A questão da escravatura, a propaganda republicana e as relações entre Igreja e Estado dominaram as discussões na década de 1870.
Os conservadores acusavam liberais e republicanos de lutarem pela extinção da escravatura sem levar em consideração a possibilidade de caos econômico e iminência de uma revolução social, pois temiam que se seguisse àquela a extinção da propriedade privada em geral, ou, quando menos, uma espécie de reforma agrária.
Já para os liberais, a questão da escravatura parecia estar superada, mas sua noção de liberdade repousava na moralidade do mercado, sendo que o Estado deveria ser um maquinário político inventado para uso dos grandes proprietários rurais. O redator liberal ensinava a repudiar a intervenção do Estado nas relações de trabalho, em uma visão do Estado que não fosse nem antagônica nem repressiva; ensinava a ser liberal, mas jamais um democrata
Os republicanos, paradoxalmente, não se diferenciavam muito dos liberais. Salvo a questão da escravidão (os republicanos eram mais moderados), ambos defendiam o trabalho livre e assalariado, aliando-se contra os conservadores. Contudo, a maior divergência se dava na forma de governo, eis que o republicanismo “democratizaria” o poder às classes urbanas não possuidoras de terras.
É de se dizer que o conflito entre essas correntes partiam dos mesmos pressupostos básicos do pensamento liberal, havendo apenas uma disputa entre grupos privilegiados pelo controle do poder político, não havendo radicais divergências ideológicas entre elas.
Os conservadores falavam em democracia com desdém; os liberais restringiam-se à igualdade formal; e os republicanos apoiavam-se em princípios liberais para reduzir a democracia à instauração da forma republicana de governo. A luta pelo poder excluía as camadas populares, embora as reformas fossem propugnadas em nome do povo, desconhecendo a natureza profundamente antidemocrática dessa luta.
O equilíbrio na academia somente foi possível porque as contradições não visavam alargar o espaço de participação política, em uma nítida intenção de evitar as fissuras no monopólio de recrutamento dos quadros para a burocracia estatal, sendo que a formação do bacharel era circunscrita a um estreito círculo de eleitos.
Interessante que o periodismo concedeu pouco espaço às discussões doutrinárias, à jurisprudência e ao saber jurídico em geral, apesar de que a prática jornalística foi fundamental na transformação do bacharel em político profissional.
Conclusões
Os cursos jurídicos no Brasil nasceram preocupados com a construção de uma elite política coesa, em um ambiente em que as salas de aula não se constituíram em espaço responsável pela profissionalização dos bacharéis, sendo que o aprendizado foi caracterizado pelo autodidatismo. O “segredo” do ensino jurídico no império foi o de nada, ou quase nada, haver ensinado a respeito de ciências jurídicas.
Assim, a Academia de Direito de São Paulo foi um celeiro do mandarinato imperial, tendo por norte a militância política que fez da vida intelectual uma forma de convivência essencialmente política, onde os interesses das camadas populares não estiverem presentes. Os ímpetos das reivindicações populares que ajudaram na revolução descolonizadora não encontrou espaço na vida acadêmica paulista.
O periodismo, nessas circunstâncias, proporcionou o meio à formação do bacharel, substituindo as salas de aula. Através do jornalismo, o acadêmico aprendeu a arte da política, servindo de ante-sala dos gabinetes executivos, da tribuna parlamentar e dos tribunais judiciários.
Esse tipo de vida acadêmica, até pela origem dos estudantes, não comportou a militância política voltada para a democratização, e os princípios liberais se sobrepuseram aos princípios democráticos, formando uma elite de políticos profissionais, de interesses diversos, mas unificados em torno do objetivo comum de construção de estruturas jurídico-políticas do Estado sob controle dos grupos sociais dominantes, em uma arte “da prudência e da moderação”.
Dessa forma, a Academia de Direito de São Paulo não se constituiu, no período monárquico em um local privilegiado de produção jurídica.
Foi dito sobre o caráter paradoxal da transposição dos princípios liberais e o exercício da democracia no Brasil. Não que, essencialmente, haja um conflito entre esses termos. É que, aqui, o liberalismo tomou forma acentuadamente conservadora, centrado na salvaguarda dos direitos de propriedade, desprezando as ligações com o pensamento radical que as principais revoluções conheceram e nutriram, resultando no repúdio, pelos bacharéis, ao radicalismo.
A prudência política recomendava: dar, sem necessidade de conquistar; ampliar, sem necessidade de abdicar do controle; distribuir poder, sem o imperativo de sua partilha. Significava jamais tratar as questões sociais como resultantes de conflitos entre grupos e classes. A esse aprendizado dedicou-se o periodismo, o “segredo” da identidade social dos bacharéis.
Conclusões Pessoais
O livro permite uma compreensão sobre a maneira como, ainda hoje, o direito é ensinado no Brasil. A partir do conhecimento histórico da criação dos cursos de direito em nosso país é possível a tomada de consciência quanto a uma situação que, muitas vezes, está tão enraizada no senso comum jurídico pátrio que a tomamos como a única verdade.
Essa tomada de consciência é essencial para que possamos, como potenciais professores, buscarmos meios alternativos de formar nossos alunos, em uma dialética constante que viabilize um posicionamento crítico frente aos problemas que os acadêmicos enfrentarão, no futuro, como juízes, advogados, promotores etc.
A práxis apresenta-se como essencial em uma região do globo como a nossa, que carece profundamente de todos os aspectos “qualitativos” do ser humano, da educação ao trabalho. E é a partir do conhecimento dos mecanismos de dominação as pequenas ou as grandes revoluções acontecerão.
Um comentário:
escreva mais!
um abraço, Maria Fernanda.
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