Cap. 4 – Para uma epistemologia da cegueira: por que razão é que as novas formas de “adequação cerimonial” não regulam nem emancipam
Há uma relação circular e empobrecida entre os fatos e a teoria, chamada de “adequação cerimonial” que determina o que é ou não normal. É fácil criticá-lo, mas é muito difícil criar uma alternativa credível para esse processo. Isso porque é simples identificar a cegueira dos outros, principalmente os do passado, porém o que dizemos hoje sobre a cegueira dos outros será visto, no futuro, como sinal de nossa própria cegueira. Por que pensamos ver plenamente o que vemos parcialmente? Vale a pena ver? A permanência da adequação cerimonial tem a ver com a conversão da ordem em saber colonialista e com a conversão da solidariedade em ignorância caótica. Para sair desse impasse há que se dar primazia ao conhecimento-emancipação sobre o conhecimento-regulação, implicando em que a solidariedade transforme-se em forma hegemônica de saber, bem como que se reconheça a positividade do caos como parte da ordem solidária.
Para compreender a representação dos limites da economia e das ciências sociais é útil fazer uso de ciências que se ocupam regularmente de situações extremas, a exemplo da arqueologia e da astronomia. Nelas é possível perceber que o primeiro limite à representação refere-se à determinação sobre o que é relevante, pois diferentes critérios são decorrentes de diferentes objetivos. Essa relevância do objeto é estabelecida sociologicamente, como produto de um fiat econômico disfarçado de evidência epistemológica. Para melhor compreensão desse processo, lembra-se que a regulação em grande escala (local) baseia-se na representação e na posição, enquanto a de pequena escala (mundial) baseia-se na orientação e no movimento. A escolha de uma ou de outra é uma decisão epistemológica, em uma convergência de interesses onde a economia cria a realidade que maximiza a eficácia da regulação que lhe favorece, de maneira a cobrir vastas regiões do globo e reduzir os pormenores e contrastes locais.
Por outro lado, estabelecida a relevância, deve-se estabelecer os graus de relevância, o que se faz por meio da perspectiva. A exemplo, as proporções de uma pintura, para que se alcance a verossimilhança da representação, parte de um ponto de vista fixo ideal que garante a proporção entre os objetos pintados e suas imagens. O pintor, portanto, pinta para um espectador ideal, construindo a ilusão da realidade e, portanto, de uma arte ilusionista. O cientista moderno age de forma semelhante, mas que acredita mais nas ilusões que cria do que o pintor. Uma vez que o pintor sempre colocou o espectador do lado de fora, conseguiu diferenciar entre o espectador ideal e o significativo, este sendo seu patrono. O cientista não foi capaz desta distinção, pois para ele tanto um quanto confundem-se em si próprio. A economia convencional foi onde mais drasticamente houve essa fusão, eis que tem em um único espectador privilegiado: o empresário capitalista, razão pela qual a fiança da economia passou a fazer parte da epistemologia científica moderna.
A questão da relevância passa, ainda, pela identificação do que é considerado relevante, o que ocorre por meio de dois processos: a detecção (traços de um fenômeno) e o reconhecimento (parâmetros de detecção e classificação). No primeiro predomina o nível da metodologia, enquanto no segundo predomina o nível da teoria. Assim, uma vez que o desenvolvimento dos métodos de pesquisa são mais desenvolvidos do que as teorias, principalmente nas ciências sociais, fica evidente que a capacidade de detecção excede a de reconhecimento. É na economia convencional que esse fosso se apresenta maior, pois ela intervém na vida social em modo de baixa resolução, mas legitima o funcionamento como se tivesse alta resolução.
O terceiro limite para uma adequação não cerimonial refere-se ao tempo e sua percepção. Isso porque os objetos somente podem ser considerados se determinados os seus espaços-tempos. Uma vez que essa identificação é difícil, a ciência tem buscado um enquadramento ilusório e arbitrário de simultaneidade entre sujeito e objeto, que leva à falácia da contemporaneidade, que parte da idéia de que um evento se distribui de forma igual entre os participantes de uma intervenção simultânea. Isso impede à economia convencional de identificar durações, ritmos, seqüências e relações entre sincronias e dessincronias, tendo duas conseqüências principais: a hiper-espacialização do tempo passado e as intervenções de alta velocidade.
O último limite da representação refere-se à interpretação e à avaliação, pois é através delas que os objetos são contextualizados na política e na cultura. Em verdade, a perspectiva renascentista foi conseguida pela imobilidade de uma visão única que caracteriza a ciência moderna, o que a afasta de qualquer conhecimento alternativo que não se adéqüe à imagem refletida no espelho. Assim, o privilégio epistemológico da ciência moderna é produto de um epistemicídio, com a destruição de conhecimentos e prática sociais, além da desqualificação de agentes, que tenham base em epistemologias alternativas. Essas alternativas rejeitadas são como entidades inexistentes, e a sociologia das ausências é um trabalho gigantesco justamente por necessitar de uma epistemologia das ausências que possui uma resolução pouco nítida.
As conseqüências da cegueira resultam em as representações distorcidas das conseqüências. É certo, de qualquer forma, que a imagem da ação científica é construída em pequena escala, a partir de uma visão única de um espectador privilegiado, com uma baixa resolução de identificação em razão do desequilíbrio entre métodos e teorias, havendo ainda uma distorção das temporalidades por uma falsa contemporaneidade entre camadas sociais, bem como uma baixa capacidade de perceber e aceitar práticas sociais alternativas.
Isso determina a necessidade de uma epistemologia da visão, que faz a pergunta pela validade partindo do colonialismo como ignorância e a solidariedade como saber. É um processo que se inicia com a epistemologia dos conhecimentos ausentes, que parte da premissa de que as práticas sociais são práticas de conhecimento, ainda que não se assentem na ciência. Esta, aliás, considerou o senso comum como superficial, ilusório e falso, tão-somente por não corresponder aos critérios epistemológicos estabelecidos pela ciência para si própria. Essas considerações demonstram uma saída baseada em uma dupla ruptura epistemológica: realizada a primeira, uma segunda é necessária, com a finalidade de tornar o conhecimento científico em um novo senso comum. Deve se basear, também, em uma epistemologia dos agentes ausentes, que é a demanda de subjetividades rebeldes contra práticas conformistas.
Desta forma, revisitando os limites da representação, é possível dizer que os critérios de relevância matematicamente estabelecidos tendem a deixar-se reificar pelo seu uso não problemático, enquanto a perspectiva curiosa produz ilusões que, em vez de imitar a sociedade, a reinventa. Somente uma constelação de conhecimentos, que proporcionem uma resolução cada vez maior, é que pode viabilizar esse projeto. Em todo caso, cada vez mais precisamos submeter as aplicações tecnológicas do conhecimento à contestação política e ética, por que assim alcançaremos um paradigma edificante de aplicação da técnica da ciência, um paradigma capaz de navegar, prudentemente, à vista das conseqüências.
Um comentário:
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