Capítulo 5 – Os modos de produção do poder, do direito e do senso comum
Primeiramente, é de se dizer que a pluralidade de formas de direito, de poder e de conhecimento não é caótica, mas, ao contrário, é estruturada e relacional. Além disso, o conhecimento dessas pluralidades não colidem com o direito estatal, o poder estatal ou o conhecimento científico, pois confirma-os, ainda que os relativiza ao estabelecer formas mais vastas de constelações de ordens jurídicas, de poderes e de conhecimentos. Até porque, o enfraquecimento do poder do Estado não o torna menos fundamental para as funções políticas exigidas pelo sistema mundial.
O poder é sempre exercido em uma constelação de diferentes formas de poder combinadas. Entretanto, é necessário um princípio de estruturação do poder, pois se o poder está em todo lado, não está em lado algum, considerando-se que poder é, em sentido amplo, qualquer relação social regulada por uma troca desigual. Por essa razão, as relações de poder em nossas sociedades estão profundamente ligadas à desigualdade material, inclusive a educacional, pois esta tem o agravante de reduzir a capacidade representacional/comunicativa, significando limitação na defesa de interesses. Uma teoria crítica exige emancipação relativamente às relações de poder, já que a relação social é um exercício de poder na medida em que alguns conseguem impor a outros situações contrárias a seus interesses. Assim, uma relação emancipatória precisa se integrara uma constelação de práticas emancipatórias, pois assim haverá cada vez mais um número maior de relações cada vez mais iguais. Esse processo visa substituir o dualismo Estado/sociedade civil bem como debelar a especialização da política e do direito ligados unicamente ao Estado e a conseqüente separação entre direito e política.
As sociedades capitalistas que formam o sistema mundial possuem um mapa de estrutura-ação que se apresenta em seis espaços distintos: o espaço doméstico, o da produção, do mercado da comunidade, da cidadania e o espaço mundial. Cada espaço possui diferentes unidades de prática social, de instituições, de forma de poder, de forma de direito, de forma epistemológica e de dinâmica de desenvolvimento. Essa estrutura-ação é resultado de um longo processo histórico de relacionamentos entre poder, direito e conhecimento. A idéia básica é, portanto, tratá-los igualmente, sem os fundir em totalidades redutoras, destacando os fios da rede que os articulam, afastando-se, ainda, de uma análise centro-cêntrica ou ocidental-cêntrica. Nesse sentido, ao contrário, o Estado moderno buscou fundir os espaços da comunidade e da cidadania, não obstante o fato de que, na prática, o espaço da comunidade manteve-se como lugar autônomo de relações sociais. Ainda assim, o consumo deixou de ser um epifenômeno para se tornar um lugar estrutural de relações sociais e, portanto, de novas formas de poder, direito e conhecimento.
Relativamente ao mapa da estrutura-ação, conceitua-se como espaço doméstico o conjunto de relações sociais de produção e reprodução das domesticidades e do parentesco; o espaço da produção é o conjunto de relações sociais desenvolvidas em torno de processos de trabalho e relações entre produtores e entre estes e a natureza; o espaço do mercado é conjunto de relações sociais em torno de valores de troca e da satisfação mercadológica das necessidades; espaço da comunidade é o conjunto de relações sociais que ocorrem em torno de territórios físicos e simbólicos de identidades comuns; espaço da cidadania é o conjunto de relações que formam a esfera pública, onde se desenvolve a relação política entre cidadãos e o Estado . Esses espaços possuem uma dimensão institucional que se refere à reprodução de formas, procedimentos, aparatos e esquemas que organizam as relações sociais em seqüências repetitivas, estabelecendo padrões de normalidade e de senso comum. Por outro lado, os espaços se organizam em uma dinâmica de desenvolvimento, que determina a direção da ação social e normalidade da mudança social. Por fim, uma vez que os espaços estruturais funcionam em rede, as contradições parciais constituem campos sociais concretos que se relacionam com todos os outros campos.
Diferentes formas de troca desigual originam diferentes formas de poder. Assim, a reestruturação do capital em nível global exige um refinamento dos instrumentos analíticos que visem a compreensão das novas constelações de poder. Aliás, a dominação, que é a forma de poder do espaço da cidadania, é a única reconhecida pelas teorias liberal e marxista como gerado no sistema político centrado no Estado. Essa dominação é um poder cósmico, que aquele centrado no estado e limitado por relações burocráticas institucionalizadas, enquanto outras formas são poderes caósmicos, que são aqueles descentralizados e informais, exercidos por diversos microcentros de poder sem limites pré-definidos. Entretanto, as experiências de vida tendem a se reduzir à um desses componentes, dificultando a resistência contra o poder, que na realidade é resultado cósmico e caósmico simultâneo.
Em outro lado temos o direito, que é um corpo de procedimentos regularizados e de padrões normativos legitimados em um grupo, que visa a solução de litígios por meio de um discurso argumentativo, articulado e com ameaça de força. O direito estatal, que é a única forma de direito que se reconhece como tal, tende a se perceber como único representante do campo jurídico, não reconhecendo seu funcionamento em uma rede de direito mais vasta.
Esse direito territorial tem buscado gradualmente policiar as famílias por meio de uma série de intervenções, de forma que, hoje, o espaço doméstico é juridicamente constituído por uma articulação do direito doméstico e territorial. O direito da produção, vinculado ao mundo empresarial, refere-se aos regulamentos e padrões normativos que regulam as relações do trabalho, sendo, assim, um direito de comando, muitas vezes com características semelhantes às do direito militar. A sua relação com o direito estatal é uma articulação jurídica essencial nas sociedades capitalistas. Aliás, a desregulamentação do espaço da produção é a face visível do enfraquecimento do direito territorial. O direito do espaço do mercado é o direito da troca, regulando as trocas comerciais e, portanto, constelando-se com todas as outras formas, principalmente o estatal. O direito da comunidade é um dos mais complexos, uma vez que lida com situações diversas e, portanto, sua constelação é igualmente diversificada. O direito territorial ou direito estatal é aquele referente ao espaço da cidadania, sendo o direito central na maioria das ordens jurídicas. Ele tende a sobrestimar sua capacidade de regulação e, sendo derivado da dominação, é um direito cósmico, que se constela cosmicamente com todos os direitos caósmicos. Por fim, temos o direito sistêmico, vinculado ao espaço mundial, que organizam as relações dos Estados-nação no sistema inter-estatal, tendendo a ser forte em retórica e violência e fraco em burocracia.
Perceber a constelação de todos esses direitos é importante na medida em que demonstra sua vinculação com a vulnerabilização de certos grupos sociais, demonstrando a necessidade de resistência contra as ordens jurídicas, bem como explicita a exigência de uma constelação de práticas emancipatórias para que haja sucesso nessa luta, caso contrário uma luta isolada pode reforçar a regulação de outros espaços, anulando o resultado final do movimento.
Em relação às formas de conhecimento, é de se dizer que cada espaço estrutural constitui um senso comum específico e toda interação social é uma interação epistemológica e uma troca de conhecimento. Assim, não há na sociedade um único senso comum, mas seis grande sensos comuns e modos de produção de conhecimento-regulação. Eis porque todo conhecimento é parcial e local, limitado pelas relações sociais. Das formas de conhecimento, a ciência é aquela cega ao contexto, o que é a raiz do seu funcionamento cósmico, apesar de que, como essa cegueira somente é crível em um contexto específico, ela própria e contextualizada por conhecimentos caósmicos. Dessa maneira, a teoria crítica pós-moderna tem por tarefa promover argumentos emancipatórios e sensos comuns contra-hegemónicos em cada um dos espaços estrtururais, de maneira e expardir-se e tornar-se conhecimento-emancipação hegemônico. Para isso, não pode esquecer, sob pena de uma constelação ingênua, que, assim como o conhecimento emancipação, o conhecimento emancipação se desenvolve em uma constelação de conhecimentos.
A caracterização das sociedades se dá principalmente pelas fronteiras externas da sua limitação estrutural, pois é dentro desses limites que os espaços estruturais desenvolvem-se. Isto ocorre, primeiramente, por meio da fixação-de-fronteiras, que estabelece seus limites, e a abertura-de-novos-caminhos, que pode deslocá-los, constituindo tais dinâmicas a dimensão qualitativa dos espaços. Além disso, os espaços estruturais podem se desenvolver de forma quantitativa, ou seja, em alta o baixa tensão. Em alta tensão, o poder auxilia na organização da sociedade; em baixa tensão, subverte o processo de organização. Mais uma vez se vê que a luta anti-sistêmica deve levar em consideração a constelação das práticas sociais emancipatórias, exigindo-se criatividade e inovação para um conhecimento-emancipação menos dogmático, predisposto a superar incompletudes e epistemologicamente tolerante em relação aos conhecimentos parciais e locais e seus sensos comuns.
No espaço da cidadania há uma percepção de que somente o direito e o poder emanado e do Estado são considerados regras e política, respectivamente. Trata-se de um reducionismo que oculta de que o direito e o poder democráticos estatais funcionam em uma constelação com poderes e juridicidades em geral mais despóticos. Essa ocultação foi inculcada com sucesso em toda a sociedade, após o que não houve interesse em expandir os princípios jurídicos e democráticos do espaço da cidadania da modernidade aos demais espaços. Assim, o despotismo oculto permaneceu invisível, jamais sendo contrastado com o caráter relativamente democrático do direito e do poder no espaço da cidadania. Por essas razões, a “falsa consciência” do direito não se dá pela dificuldade de sua aplicação, mas em razão da construção social que estabelece o direito estatal como única forma de direito, situação nunca superada pela sociologia jurídica, ainda que crítica. Por isso, hoje as sociedades capitalistas são menos que democráticas, eis que o direito da cidadania, por mais democrático, constela com outras cinco formas de direito, em geral mais despóticos.
Em conclusão, pode-se afirmar que os espaços estruturais funcionam em uma complexa rede formada por seis dimensões. Esses espaços, ainda que autônomos, possuem uma dinâmica parcial que se movimenta na prática social e em constelação com outras dinâmicas parciais. As sociedades capitalistas, ainda que constituam uma articulação de seis modos de poder, de direito e de conhecimento, suprimem o caráter político, jurídico e epistemológico daqueles elementos quando não se formam a partir da dominação, do direito estatal e da ciência, respectivamente, o que determina a preponderância desses elementos em detrimento de uma imensa variedade de possibilidades existentes nos espaços estruturais. Isso é importante na medida em que o caráter político das relações sociais não ocorre somente no espaço de cidadania, mas em uma constelação das diversas formas de poder de diferentes espaços. Além disso, há a ocultação dessa limitação hegemônica existente por meio da dominação, do direito estatal e da ciência, levando à uma redução da política ao espaço da cidadania, da redução do direito ao direito estatal, e da redução do senso comum epistemológico ao conhecimento científico. Isso determina hábitos sociais, políticos e culturais, orientando a prática social, que se baseiam em premissas equivocadas. A identificação e a caracterização dessas constelações de regulação, que servem de meios de opressão das sociedades capitalistas, além da percepção da pluralidade de agentes e instrumentos sociais, podem contribuir para construção de um senso comum novo e emancipatório.
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