1 de jul. de 2007

A Crítica da Razão Indolente - Cap. 3

Cap. 3 – Uma cartografia simbólica das representações sociais: o caso do direito
Ressalte-se, de início, que o direito é um conjunto de representações sociais que representam um modo específico de perceber a realidade, possuindo muita semelhança com os mapas, e tal como eles, é uma distorção regulada de territórios sociais.
Os mapas, para desempenhar suas funções, têm necessariamente que distorcer a realidade, o que fazem por meio de três mecanismos: a escala, a projeção e a simbolização. Vejamos algumas considerações básicas sobre a cartografia para posterior comparação ao sistema jurídico:
Os mapas são versões em miniatura da realidade, eis por que envolvem sempre uma decisão sobre os detalhes mais significativos a serem representados. Fácil perceber, então, que a decisão sobre a escala condiciona o tipo de mapa e vice-versa. Uma vez que cada fenômeno só pode ser representado em certa escala, mudá-la significa mudar o fenômeno a ser percebido. Nesse sentido, o poder busca representar a sociedade em uma escala que maximize as condições de reprodução de poder
Outro mecanismo de produção de mapas é a projeção, sendo que cada tipo diferente cria um campo de representação onde algumas inevitáveis distorções de várias características do espaço são feitas de acordo com regras conhecidas e precisas. A escolha da projeção, ainda que baseada em fator técnico, significa um compromisso ideológico com o uso a que se destina o mapa. Aliás, a cada período histórico ou tradição cultural, um ponto fixo serve como centro dos mapas, um espaço a que é atribuída uma posição privilegiada em torno do qual se dispersam os outros espaços.
A simbolização é o terceiro mecanismo de representação/distorção cartográfica. Nela se diferenciam os sinais icônicos e convencionais, sendo o primeiro sinais naturalísticos de relação de semelhança com a realidade, enquanto os segundos são mais arbitrários. Dependendo do uso de uns ou de outros, os mapas podem ser produzidos para serem vistos ou lidos.
A partir desses conceitos, pode-se estabelecer uma cartografia simbólica do direito, partindo da observação de que, ao contrário do que anuncia a filosofia política liberal e a ciência do direito, existem na sociedade várias formas de direito, sendo que o direito oficial, ainda que a mais importante, é apenas uma delas. Essa é a idéia essencial do pluralismo jurídico.
A relação do direito e a escala leva à evidência de que aquele opera unicamente segundo a escala do Estado, o que ocorre em três espaços: o local, o nacional e o global. O que difere estes espaços é o tamanho da escala, partindo da maior (local) para a menor (mundial), com que se regula a ação social. Essas diferentes ordens jurídicas, em diferentes escalas, a exemplo dos mapas, representam objetos jurídicos distintos, mas as práticas sociais não existem isoladas, mas interagem de diversas formas. Essas intersecções entre direitos de diversos espaços jurídicos são tão fortes que não se pode falar de legalidade, mas de interdireito e interlegalidade. Trata-se, portanto, de uma rede ações, que é uma seqüência interligada de ações determinadas por limites pré-definidos. Assim, a legalidade de grande escala (local) suscita redes de ações táticas e edificantes, enquanto a de pequena escala (mundial) suscita redes de ações estratégicas e instrumentais. Estabelece-se, por fim, patamares de regulação, que é o produto da combinação de três patamares: de detecção, que é o nível mínimo a ser objeto de regulação; de discriminação, que são as diferenças mínimias da ação social que justificam diferentes regulações; e de avaliação, referente às variação qualitativa suscetíveis de ganhar sentido na regulação. Estes três patamares variam de acordo com a escala, ainda que haja diferenças internas em cada patamar de regulação. O movimento, todavia, é o produto dos movimentos combinados e desiguais desses três patamares de regulação.
A forma de projeção cartográfica do direito permite a distinção da realidade social a ser regulada, pois diferentes projeções criam objetos jurídicos diversos, favorecendo certos interesses e concepções de solução de conflitos, em um processo que não é neutro. De acordo com a projeção aceita, cada ordem jurídica estabelece diferentes centros e periferias. Weber lembra que o direito surgiu como resultado de consensos de diferentes grupos de status, portanto, um direito voluntário, onde cada grupo ou indivíduo tinha uma qualidade jurídica própria que carregava onde fosse. A idéia de um direito aplicável a um certo território, independentemente das características de seus habitantes floresceu muito lentamente, tendo seu cume na Revolução Francesa, quando o Estado moderno se transformou em instituição coercitiva global e seu direito abstrato passou a ser aplicado a todos os indivíduos. Contudo, há evidências de que os meios contemporâneos de solução de conflitos têm sido regularmente construídos à margem do estado, o que é um sintoma de uma tensão entre o direito geocêntrico dos Estados-nação e o novo direito egocêntrico de agentes transnacionais.
A simbolização, que é a face visível da representação da realidade, permite a distinção de dois tipos ideais de simbolização jurídica: o estilo homérico e o estilo bíblico. O primeiro tem por característica a conversão do fluxo contínuo da ação social em uma sucessão de momentos descontínuos ritualizados, bem como é uma descrição formal e abstrata da ação social por meio de símbolos convencionais, referenciais e cognitivos. O segundo gera uma juridicidade imagética, descrevendo a realidade de forma a integrar as descontinuidades da ação social, fazendo-o por meio de sinais icônicos, emotivos e expressivos.
É dessa forma, utilizando um objeto comum como os mapas, que se busca trivializar o direito em busca de um novo senso comum jurídico. Em verdade, a fragmentação da realidade e da legalidade proposta pelo pluralismo jurídico não é caótica, mas regras de escala, projeção e simbolização de um universo ético e jurídico policêntrico. O cidadão comum, em razão da naturalização da cartografia do direito nacional estatal, tem dificuldades em reconhecer como jurídicas ordens normativas que usam princípios cartográficos distintos, fazendo com que um novo senso comum deva partir de uma concepção autônoma do que é o direito. Para isso, primeiramente é necessário analisar as práticas institucionais e quadros profissionais dominantes, que são os principais obstáculos epistemológicos do novo pensamento sociológico. Além disso é preciso revisar, sem dogmatismos sobre sua positividade ou negatividade, a escala, a projeção e a simbolização do direito, de maneira a integrar o formal e o informal. Por fim, deve-se proceder uma análise cuja cartografia equilibre análises estruturais e fenomenológica, de forma a estruturar no espaço simbólico as respostas adequadas à prática proposta.

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