Capítulo 6 – Não disparem sobre o utopista / Conclusão
Em um contexto de transição paradigmática, e emancipação social é uma aspiração óbvia, mas de difícil alcance, já que os problemas fundamentais de hoje são aqueles que não têm solução no paradigma moderno. A ciência e o direito não reconhecem essa limitação e, assim, transformam-se eles próprios em problemas fundamentais adicionais. Aliás, as soluções técnicas decorrentes da cultura instrumental da modernidade possuem um excesso de credibilidade que oculta suas incapacidades, razão pela qual as soluções decorrentes dessas técnicas não nos incentivam a pensar no futuro. A racionalidade científica, que expandiu do estudo da natureza para o estudo da sociedade, acabou por criar um ambiente hostil ao pensamento utópico, o qual, com a perda da confiança na ciência moderna, pode ser resgatado objetivando a reinvenção dos mapas de emancipação social e de subjetividades inconformistas. De qualquer maneira, as lutas emancipatórias, com o avanço da transição paradigmática, combaterão regulações diferentes, muitas vezes decorrentes dessas próprias lutas, razão pela qual é necessária uma permanente vigilância e auto-reflexividade, o que aliás distingue a emancipação pós-moderna da moderna. Deve-se permitir, assim, a constante contradição entre formas alternativas de sociabilidade, porém sem se possibilitar que estas sejam desvalorizadas logo à partida. Esta é uma proposta, por si só, se constitui em uma luta política, que deve ser travada em todos os espaços estruturais, sobretudo no espaço da cidadania. O Estado, pela forma cósmica de seu poder e direito (dominação e direito territorial), tem grande poder de condicionar as práticas sociais e, dessa forma, os movimentos emancipatórios têm que transformar essa capacidade cósmica em capacidade caósmica, determinando uma sociabilidade viabilizado pelo Estado que crie condições para experimentação social nos seis espaços estruturais, o que exige uma profunda reinvenção desse Estado. Nessa transição, o Estado passa a ter como função central garantir a experimentação de sociabilidades alternativas, não lhe cabendo avaliar o seu desempenho, que deve ser uma atribuição dos movimentos sociais. Do mesmo modo, no espaço da produção, o Estado deve garantir a co-existência de modos alternativos de produção, enquanto no espaço do mercado deve permitir formas alternativas de consumo em igualdade de circunstâncias. Já no espaço da comunidade, a experimentação deve se dar pelo reforço do princípio do multiculturalismo em toda atividade estatal. Por fim, no espaço da cidadania, deve-se buscar um novo paradigma de democracia radical, com a democratização vertical e horizontal das relações sociais, de forma a disseminar a democracia a todos os espaços estruturais, que aliás é a única forma de tornar emancipatória a democracia do espaço da cidadania. Essa experimentação paradigmática transforma o Estado em um Estado piloto, de forma que a dimensão da providência social se consubstancia na transferência das prerrogativas do Estado para âmbitos não-estatais.
A proposta utópica apresentada parte de experimentações de sociabilidades, considerando que as formas dominantes não serão eliminadas em uma ruptura, mas serão enfraquecidas na media em que têm que permitir florescer, e têm que competir com, formas alternativas de sociabilidade, além de, como conseqüência, perderem o monopólio sobre as práticas epistemológicas e sociais. Dessa maneira, a luta pela avaliação é tão importante quanto pelas garantias, ou seja, a luta paradigmática não pode ocorrer fora do Estado, mas dentro e fora. Essa luta é arriscada e, embora se baseie em uma antagonia entre novo e velho, não significa que os opressores não possam estar em qualquer dos lados. Até porque o paradigma emergente ainda é pouco nítido e motivador, uma vez que tem de enfrentar forças sociais, políticas e culturais que estão interessados na reprodução do modelo atual, ainda que seja claro que a falta de confiança no futuro, decorrente da crise da modernidade centra no Estado, já começa a nos deixar face a face com um futuro que desconfiamos. Nesse contexto, as obrigações horizontais são mais importantes que as verticais, significando dizer que a subjetividade deve ser participativa e orientada pelo princípio da comunidade, um metatópico subjacente a um novo senso comum político, constituindo-se uma subjetividade de fronteira. Essa subjetividade deve ser, ainda, uma subjetividade barroca, um exercício de desproporção e proscrição do riso, do divertimento e da ludicidade, ou seja, o reverso da ciência moderna, já que as receitas cartesianas capitalistas não servem para a reconstrução da personalidade humana com capacidade de desejar a transição paradigmática necessária. Igualmente, deve-se constituir uma subjetividade do sul, o que quer significar a internalização da capacidade e vontade de um exercício da solidariedade para uma tópica da emancipação, visando construir um círculo de reciprocidade mais amplo que o proposto pela modernidade. Essas sociabilidades são, assim, uma constelação variável dos tópicos da fronteira, do barroco e do Sul, sendo fundamental, entretanto, a existência dos três, para que resulte na construção de subjetividades e sociabilidades que resultem em práticas sociais e epistemológicas de competição paradigmática em cada um dos seis espaços estruturais. Nesse contexto,as formas organizacionais da prática social são secundarias, ainda que não irrelevantes, podendo constituir-se em ONGs, movimentos populares, partidos, sindicatos etc., adequando-se a cada caso, porém sempre sendo necessária a interiorização das tópicas de fronteira, do barroco e do sul.
Por fim, o objetivo principal da obra não foi apresentar o projeto de uma nova ordem, mas demonstrar a crise do paradigma vigente e a desordem decorrente, o que cria oportunidade de constituição de uma emancipação autêntica como fruto de um compromisso de pensamento vanguardista iluminado.
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