1 Emancipação
Nas décadas gloriosas após a Segunda Grande Guerra, Marcuse se questionava quanto à ausência de uma base de massas desejosas de libertação. É que as pessoas sentem-se livres quando há um equilíbrio entre imaginação, desejos e capacidade de agir, e quando isso ocorre, “libertação” é um slogan sem sentido. Os filósofos então se atormentavam com a questão de que as pessoas talvez simplesmente não quisessem ser livres. O questionamento se a libertação é uma benção ou maldição pode ser respondido tanto como um desvelo do homem comum pela liberdade, por ser enganado ou por não querer assumir responsabilidades, quanto pela aceitação de que talvez a liberdade não traga tantos benefícios, pois não seria garantia de felicidade. Essa última análise deriva da visão hobbesiana do “homem à solta”, idéia reforçada por Durkheim, que afirmou que a submissão do indivíduo à sociedade é uma espécie de “dependência libertadora”, pois a ausência de normas criaria um estado de incertezas que faria da vida um inferno. Porém, hoje o indivíduo já ganhou toda liberdade que poderia esperar, pois somos seres reflexivos, engajados na “política-vida”, porém sem que essa reflexão alcance os verdadeiros mecanismos que conectam e determinam nossos movimentos, impedindo uma autêntica auto-afirmação. Uma visão crítica atualizada dessa situação deve avançar em relação à teoria crítica clássica, que estava embutida em uma modernidade sólida e tendente ao totalitarismo. Aquela modernidade pesada, identificada com o sistema de controle da fábrica fordista, reduzia a atividade humana a movimentos mecânicos e repetitivos, conduzida aos moldes do Panóptico. Nesse contexto, a teoria crítica buscava a liberdade de escolha em ser e permanecer diferente, sem pretender ultrapassar esse propósito. Afastados os demônios do totalitarismo, muitos se apressaram em anunciar o fim da modernidade, esquecendo-se que aquela sociedade diagnosticada pela teoria crítica era apenas uma das formas que a sociedade moderna assumiu. Nesse sentido, a sociedade de hoje é tão moderna quanto a de um século atrás, pois continua na busca insaciável por “limpar o lugar” em nome de um “novo e aperfeiçoado” projeto. Entretanto diferencia-se por duas características específicas: o colapso da ilusão moderna de que há um telos, um tipo de sociedade justa ideal alcançável; e a desregulamentação e privatização de tarefas e deveres de modernização. Nesse novo mundo, indivíduos encontram apenas outros indivíduos, assumindo total responsabilidade por suas decisões, o quem vem a ser a marca registrada da nova modernidade. Essa individualização significa que a “identidade” é algo construído, uma tarefa cujas conseqüências são de responsabilidade de cada um. Na modernidade sólida, a auto-identificação se dava por meio da conformação a certa classe, o que favorecia o coletivismo, pois os elementos em comum projetavam-se sobre a gama de escolhas do indivíduo. Agora, a individualização não é uma escolha e, enquanto os riscos continuam a ser socialmente produzido, seu enfrentamento é fragmentado, criando um abismo entre a individualidade como fatalidade e como verdadeira capacidade de auto-afirmação. A sensação de impotência, ainda que com liberdade, induz à tentativa de resgate de um passado de marcha ombro a ombro, mas que hoje já não tem função, porque as aflições agora são não-aditivas, não podendo ser condensadas em interesses compartilhados. Assim, o indivíduo passa a ser o pior inimigo do cidadão, porque enquanto o cidadão deve buscar a causa e o bem comum de uma sociedade justa, vê-se que tal objetivo é incompatível com um mundo onde os benefícios do trabalho conjunto são inferiores à busca individual, levando à corrosão e desintegração da cidadania. Esse processo faz com que o espaço público seja preenchido por preocupações dos próprios indivíduos, transformando o interesse público apenas na curiosidade sobre as vidas de pessoas públicas. Por outro lado, há um crescente déficit entre a condição de indivíduos de jure e de facto, impedindo que o mesmo controle seu destino, situação que somente pode ser superada por meio do resgate da cidadania e da atuação na Política com P maiúsculo. É que, ao revés de haver uma colonização do público pelo privado, conforme preocupações da teoria crítica clássica, o que vem ocorrendo é o contrário, sendo o espaço público o lugar onde se faz a confissão de segredos privado e onde há cada vez menos questões verdadeiramente públicas. Enquanto isso, o verdadeiro poder passa ao largo dos governos e parlamentos, situando-se nas redes eletrônicas. É essa a situação posta à teoria crítica, que deve auxiliar no redesenho e repovoamento da quase vazia ágora, permitindo o reaprendizado pelos indivíduos das capacidades perdidas da cidadania. Todavia, com exercer essa tarefa de maneira a tornar-se compreensível sem deturpar seu conteúdo? O problema passa pela escolha de um envolvimento político ou o radical distanciamento da prática política. A visão da filosofia como um objeto de ação dos filósofos, sem intercâmbio com o mundo real, não parece adequada, e o desengajamento político cheira a traição. Tal ponte política deve ser enfrentada, ainda que com os riscos inerentes ao processo, buscando-se suavizar a passagem da filosofia para o mundo. De qualquer forma, sendo a política o elo entre os valores universais e a realidade social, a relação com o Estado passa a ser um dilema de formação. Nesse contexto, a teoria crítica clássica está a ponto de perder seu objeto, o que não significa a perda de seu significado, pois a emancipação ainda está à espera, o que passa pelo abismo entre a individualidade de jure e de facto. Aquela teoria esperava que o perigo fosse a colonização do privado pelo público, descuidando da possibilidade da invasão inversa. Esse processo imprevisto leva ao desaparecimento da política e à impotência da liberdade individual, que hoje precisa de mais e não menos da “esfera pública” e do “poder público”.
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