2 Individualidade
“Admirável Mundo Novo” e “1984” foram duas obras características da modernidade sólida, sendo que o pesadelo que as ligava era a previsão de “ausência do controle das nossas próprias vidas”. Os autores não podiam imaginar um mundo sem mesas de controle. Naquela primeira modernidade, contexto social da elaboração dos livros, o mundo era dominado pelos administradores das empresas capitalistas, cuja visão alimentava a formação do mundo e do discurso dominante, cuja ordem e regulação se sobrepunham à totalidade da experiência vivida. Naquele estágio, o capital estava fixado ao solo tanto quanto os seus trabalhadores. Todavia, hoje, na modernidade líquida, ele pode saltar a qualquer ponto do caminho, está livre do território, permanecendo o trabalho, contudo, tão imobilizado quanto antes. Weber previu que haveria o triunfo da “racionalidade instrumental”, o quer tornaria as pessoas obcecadas com os meios. Entretanto, tal previsão não se confirmou, porque hoje as angústias estão mais voltadas, na verdade, às escolhas de objetivos. Essas escolhas são dificultadas pelo fato de que o mundo agora possui um gigantesco universo de possibilidades, o que, apesar de ser divertido, não permite saber se a decisão foi correta ou equivocada, em uma bênção mista de alegria e dúvida. Aquele capitalismo pesado, ao estilo fordista, era determinado pelas autoridades. O leve, por sua vez, não aboliu as autoridades, mas permitiu a co-existência de tantas que elas se auto-anulam. Assim, programas de TV trazem a público assuntos que antes eram ocultos nas vidas privadas, tornam o indizível dizível, em um ritual de exorcismo que permite agora falar de coisas que estavam destinadas ao sofrimento silencioso. Questões desse tipo têm levado ao desaparecimento da “política como a conhecemos”, pois problemas privados, ainda que apresentados publicamente, não deixam de ser privados, ao mesmo tempo em que expulsa questões públicas verdadeiras. Tal fenômeno ocorre porque o que buscamos hoje são exemplos e não líderes. Assim agimos na esperança de que o conhecimento das experiências de outros indivíduos nos auxilie na tarefa solitária de autoconstrução. O próprio caminho, e não o prêmio ao fim da caminhada, passa a ser o objetivo, situação cujo arquétipo é a atividade de comprar, o código que povoa a “política-vida”. Precisamos ser mais competentes, e cada vez que o fazemos vamos “às compras”, cuja lista é imensa, envolvendo-nos em torno do papel de “consumidores” e não de “produtores”. Como produtores, na modernidade pesada, precisávamos apenas estar “conforme” às normas, no mesmo nível de nossos “vizinhos”. Como consumidores, somos orientados pelos desejos e quereres voláteis e ninguém é referência para o nosso sucesso. Passamos a ser guiados por um ideal de aptidão, quando antes o padrão era a saúde, e nosso corpo agora é uma “fortaleza sitiada”, o que nos leva a uma obsessão de comprar nossa defesa e não à abstinência e renúncia. Além disso, tentamos construir e moldar nossa vida como uma “obra de arte”, tarefa que busca a criação de uma “identidade”. A identidade (dos outros), à distância, sempre parece sólida, mas a nossa, experimentada, vivida, somente se mantém com o adesivo da fantasia. Em razão dessa instabilidade das identidades, o caminho para essa realização é determinada pela nossa capacidade de “ir às compras”, de ter acesso às infinitas escolhas. A partilha coletiva dessa experiência absolutamente individual passa a ser condição necessária da vida. É uma tarefa em certo sentido coletiva, mas que deve ser realizada por cada um em condições diferentes, induzindo à competição e diminuindo a capacidade de cooperação e solidariedade. Mudamos, assim, de uma sociedade do Panóptico para o Sinóptico, onde os espetáculos substituem a supervisão, sem perder o poder de disciplina. Nessa sociedade, os despossuídos não têm mais para aonde desviar os olhos da liberdade tentadora das telas, fazendo com que quanto mais escolhas tenham os ricos, menos suportável se torna a vida.
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