24 de jul. de 2007

Governo dos Homens ou Governo das Leis - O Futuro da Democracia

Governo dos Homens ou Governo das Leis

Essa é uma questão referente não à forma de governar, mas ao modo de governar. O tema passa pela consideração de que as características de um bom governo governar para o bem comum, fazendo-o de acordo com normas estabelecidas, em contraste com o mau governo, que age para o próprio bem e o faz de forma arbitrária. Essas afirmações demonstram a tendência da submissão do poder político ao direito, entendendo-se como “governo da lei” não só o fato do governo estar sujeito à lei (o que limita o abuso de poder), mas também que o governo governa por meio de normas abstratas e gerais. Esta última característica é o que, aliás, motiva a preferência pelo governo da lei, pois contrasta com ordens individuais e concretas.
Por outro lado, o governo dos homens liga-se ao estado paternalista ou patriarcalista, onde a doutrina prevalecente é do estado como uma grande família. Historicamente, esta alternativa surgiu nos momentos em que ainda não havia o governo da lei ou o mesmo era inadequado diante de situações de exceção, a exemplo de uma crise revolucionária. O soberano, neste caso, se assemelha ao grande demagogo ou ao herói maquiaveliano e hegeliano, ou ainda ao grande chefe militar.
Entre as duas formas, objetivamente não há opção boa ou má, pois cada uma é manifestação de uma circunstância histórica, sobre a qual o cientista social deve buscar dados para formulação de uma teoria das formas de poder. Em todo caso, deve-se ressaltar que o governo das leis celebra o triunfo da democracia, pois propicia o conjunto de regras para solução pacífica de conflitos.

Contrato e Contratualismo no Debate Atual - O Futuro da Democracia

Contrato e Contratualismo no Debate Atual

Ao contrário das previsões, o estado não somente não desapareceu como se expandiu, mas não se pode negar uma crise do estado soberano. Deve-se lembrar que o que assegura a unidade da sociedade e a legitimidade do soberano é o poder legislativo. Entretanto, o que se verifica é o prevalecimento, nesse espaço, de interesses individuais sobre os públicos, processo no qual se enfraquece o estado. Os partidos jogam, assim, especial papel, por serem os intermediários dos consensos, legitimando o sistema democrático, ainda que se observe um aprofundamento da fragmentação da sociedade. Essa democracia de partes dificulta o ideal da unidade estatal, uma vez que as sociedades parciais não foram eliminadas pela democracia e o sistema convive com a formação de grandes organizações para defesa de interesses econômicos, em uma trama de poder no qual o estado “soberano”, que deveria estar acima das partes, acaba sendo mais um nó da rede, nem sempre o mais forte.
Por outro lado, entre os partidos e os eleitores acaba se formando um “mercado político”, onde estes se tornam clientes daqueles, em típica relação de natureza privada. Isso demonstra o equívoco do pressuposto democrático de que os indivíduos escolheriam sempre os “melhores” representantes. É assim que o voto de opinião se torna menos freqüente, enquanto aumento o voto de permuta, decorrente da malícia dos eleitores e da habilidade dos partidos. Esse mercado político é uma característica da democracia, não daquela imaginada por Rousseau ou pelos que acreditam que o simples aumento da participação é solução para todos os problemas. A relação que se forma decorre do fato de que o consenso, sendo uma prestação positiva, exige uma prestação e, quando há prestação e contraprestação configura-se um contrato bilateral. Na democracia o mercado político é formado, portanto, por tantos acordos bilaterais quantos eleitores existam.
Todo esse contexto, de turbulência social, favoreceu a um reavivamento do contratualismo, que questiona o problema da legitimidade do poder e permite um novo começo, uma idéia de um novo contrato originário. Entender o estado como fundado em um contrato social significa defender a causa do poder ascendente, ou seja, de que o poder vai se baixo para cima, fundamentando a democracia. O renascimento do contratualismo, em uma versão que se pode chamar de neocontratualismo, é, portanto, uma proposta de um novo pacto social global de pacificação de constituição de uma nova ordem, o que ocorre diante das fragilidades crônicas do poder público nas sociedades complexas.

Liberalismo Velho e Novo - O futuro da Democracia

Liberalismo Velho e Novo

Alguns autores de esquerda descobrem o liberalismo de Mill pelo libertarismo metodológico de Feyerabend, reconhecendo o valor do conflito e do dissenso, o que se configura uma revolução pela superação do dogma do sistema centrado de organização social unitária. As idéias de Mill são interessantes na medida em que vê a necessidade de limitação do poder, ainda que da maioria, por meio da diversidade de opiniões e condenação do conformismo. Nesse sentido, é de se lembrar que a passagem do estado liberal para o social corresponde à passagem do direito protetor-repressivo para o direito mais promocional, uma função positiva onde a justiça comutativa é insuficiente, introduzindo-se um critério de justiça distributiva, permanecendo, contudo, a dúvida de qual critério de distribuição se deve adotar.
O liberalismo, de toda sorte, é uma teoria econômica e uma teoria política, como favorecedor da economia de mercado, no primeiro caso, e como favorecedor do estado mínimo, no segundo. O Estado liberal, assim, é um estado laico baseado no livre mercado, sendo, em todo caso, um mal necessário, mas um mal.
Contudo, o Estado que temos hoje é criticado tanto por capitalistas quanto por marxistas, o que significa que essas categorias – socialismo, capitalismo, etc – estão tão gastas que não podem mais ser usadas, ou então que a contradição das críticas é apenas aparente, uma vez que situações intermediárias são propícias à resistência dos extremos. Por outro lado, ao contrário do que se costuma afirmar, a antítese do estado liberal não é o estado absoluto, mas o estado paternalista. O estado absoluto tem por oposto o estado democrático. Neste, a sobrecarga das demandas resulta em uma alegada “ingovernabilidade” e em um estado maior e burocratizado. No contexto, o que vemos hoje é a formação de um mercado político, onde o cidadão busca obter favores do estado em contrapartida ao interesse do poder político em ser eleito.
Pelas circunstâncias expostas, questiona-se se haveria uma incompatibilidade entre liberalismo e democracia, o que parece ser, em parte, verdadeiro, diante da massificação da democracia e dos partidos que levam a um estado assistencialista.
[um questionamento que surge, portanto, é se devemos querer realmente maior democracia no espaço da cidadania, pois isso gera maiores demandas e um estado ampliado. Não seria melhor a expansão da democracia para outros espaços e diminuição do estado? – nota pessoal]
O liberalismo acaba seguindo um caminho histórico onde primeiramente se voltou contra o socialismo, depois contra o estado de bem-estar e, finalmente, pura e simplesmente contra a democracia.

23 de jul. de 2007

A Democracia e Poder Invisível - Futuro da Democracia

A Democracia e o Poder Invisível
Ainda que se considere a democracia como o ideal de “bom governo”, há sempre um debate sobre os seus défices, sem que se tenha dado, contudo, a devida atenção ao tema do “poder invisível”. Um governo democrático deve exercer publicamente seu poder publico, ou seja, não deve haver nada secreto no exercício das atividades decorrentes do poder público, o que é, aliás, um dos principais critérios diferenciadores do estado constitucional do estado absoluto. De toda sorte, a relevância da opinião pública está relacionada à disponibilização de informações e, portanto, da possibilidade de controle dos atos de quem detém o poder. O soberano é tanto mais potente quanto seus súditos são ignorantes e dóceis, o que lhe permite equiparar-se a um Deus onividente invisível. Nesse sentido, há tanto o poder oculto (que não se sabe ter poder) como há o poder que se oculta (poder conhecido que age secretamente). Essas formas de ocultação decorrem de uma necessidade de decisão rápida, além de desprezo pelo vulgo. Com a intenção de controle total, lembra-se a criação do Panopticon, inventado como uma prisão-modelo, mas que pode ser transposto a um modelo ideal de estado autocrático, onde o príncipe é mais obedecido quanto mais ver sem ser visto.
Como é sabido, a democracia tem sido avaliada freqüentemente pelas promessas não cumpridas. Assim, terá cumprido aquela de acabar com o poder invisível? Primeiramente, é de se lembrar que a mentira útil é instrumento preferencial dos sistemas ideológicos nas sociedades de massa. Em contraste, é de se lembrar que a diferenciação entre poder autocrático e democrático é que somente este, pela liberdade de dissenso, pode criar anticorpos e permitir o “desocultamento”.
Porém, onde o governo assume também a economia, as formas de exercer a política extrapolam dos meios típicos administrativos para a gestão de centros do poder econômico o qual acaba por se subtrais, formal ou substancialmente, ao controle democrático e judicial. Nossa história democrática, aliás, é repleto de fatos misteriosos, o que nos faz refletir sobre a fragilidade e vulnerabilidade das instituições democráticas.
Além disso, deve-se estar atento ao poder computacional, que pode tender, ao invés do máximo controle do poder pelos cidadãos, no máximo controle dos súditos pelos detentores do poder.

Os Vínculos da Democracia - O Futuro da Democracia

Os Vínculos da Democracia
Primeiramente, quem não compreender que sistema democrático é um conjunto de regras de procedimento, onde a regra da maioria é a principal, não sabe nada a respeito da democracia. Assim, ainda que uma democracia que não questiona seus princípios deixa de sê-la, mais ainda caso coloque em dúvida certas regras, como aquela principal. As relações políticas na democracia têm como atores primários os partidos e como mais importante componente as eleições. Por essa razão, mudar a forma e os atores da política implica mudar, nos mínimos detalhes, as regras do jogo. Entretanto, deve-se ter em mente que o sistema democrático, ainda que em processo de deterioração em razão de suas falhas, tem resistido, bem como os partidos, que articulam a maioria dos consensos.
[acredito que o passo possível hoje é um sistema híbrido, de representatividade e participação direta, para um aprofundamento da democracia tendente a uma democracia direta que, a rigor, pode ser futuramente indesejável, a critério de uma avaliação posterior, sempre fruto de um amplo e plural debate – nota pessoal]
As novas vias até agora apresentadas não conduziram muito longe, principalmente pela falta de articulação entre as alternativas e a lógica do sistema. Em todo caso, as liberdades de associação e opinião são condições para o funcionamento da democracia, pois permitem aos atores exprimirem demandas e tomar decisões após criteriosa avaliação. Todavia, não se pode perder de vista de que nem tudo é política e que a integral politização da vida leva a anulação do indivíduo e a supremacia do Estado, o que não corresponde à nossa história; ainda, lembra-se que a política não é de todos, querendo dizer que há limitação dos sujeitos chamados a participar da atividade política. Há possibilidade, além disso, de se recusar à política, devendo-se diferenciar essa opção entre aqueles que assim agem por razões egoísticas e aqueles que simplesmente demonizam o poder.
É certo, em conclusão, de que fora das regras do jogo, rompidas as regras principais como a das eleições, não se sabe as conseqüências. O que temos hoje é pouco e incerto, mas as alternativas parecem apenas nos colocar na estrada da desilusão.
[Há um grande perigo da flexibilização das regras democráticas. Toda proposta deve ser muito bem debatida, sob pena de se abrir espaço para soluções insustentáveis, levando-nos a um beco sem saída – nota pessoal]

Democracia representativa e democracia direta - O Futuro da Democracia

Democracia representativa e democracia direta
É consenso de que se tem, freqüentemente, buscado maior democracia, de forma que a democracia representativa seja complementada ou mesmo substituída pela democracia direta. Se por democracia direta se entender literalmente a participação de todos os cidadãos nas decisões coletivas, a proposta é insensata, pois estaríamos diante de um cidadão total, que é a outra face do ameaçador estado total, onde tudo se reduz aos interesses da polis. Por isso, a teoria crítica deve denunciar soluções meramente verbais, transformando-as em propostas factíveis.
Nesse raciocínio, começa-se por diferenciar “democracia representativa” de “estado parlamentar”, uma vez que a primeira significa que as decisões coletivas são tomadas por pessoas eleitas, e não diretamente, que tanto pode ser por um parlamento, pelo presidente ou conselhos regionais. Assim, nem toda democracia é representativa e nem todo estado representativo é democrático, bem como nem toda crítica à democracia representativa leva diretamente à democracia direta. Aliás, nas democracias representativas, os representantes se caracterizam pela irrevogabilidade do mandato e pelo fato de que o mesmo não é responsável diretamente perante os eleitores, pois é representante de toda a sociedade e não de grupos. A citação dessas características é importante porque a crítica à democracia representativa geralmente recais sobre elas, ou seja, crítica à proibição do mandato imperativo e crítica à representação dos interesses gerais. Em todo caso, as críticas ao sistema representativo clássico não transformam a democracia representativa em democracia direta. Para que exista democracia direta propriamente dita, onde o indivíduo participa ele mesmo das deliberações, é necessário a inexistência de intermediários. Aliás, entre a democracia representativa pura e a democracia direta pura não existe um salto qualitativo, além do que, entre os extremos, há inúmeras possibilidades, de forma que não uma escolha excludente entre as duas propostas, mas sim a possibilidade de integração recíproca. Até porque ninguém imagina a possibilidade de se governar um estado com contínuo apelo ao povo, salvo se cada cidadão puder transmitir seu voto sem sair de casa, apenas apertando um botão. O que parece acontecer é que o processo de democratização está expandindo para outras esferas das relações humanas e seus papéis específicos, o que leva à conclusão que a democracia deve ser vista por um novo ângulo, considerando-se a ocupação de espaços até agora dominados por organizações hierárquicas e burocráticas. Dessa maneira, vê-se que uma coisa é a democratização do estado, outra é a democratização da sociedade e, portanto, para se apontar o índice de desenvolvimento democrático deve-se buscar não o número de pessoas com direito a votar, mas o número de instâncias onde se pode exercer esse direito. Aliás, enquanto a empresa e administração pública – os dois grandes blocos de poder descendente e hierárquico – não forem tocados pelo processo de democratização, a transformação democrática da sociedade não estará completa.
Por outro lado, é preciso também lembrar que sociedade pluralista e sociedade democrática são coisas distintas, apesar de que um estado moderno só pode ser uma democracia pluralista. Nesse sentido, a teoria democrática se contrasta com o poder autocrático, enquanto a teoria pluralista se o contrasta com o poder monocrático, ou seja, no estado moderno o abuso de poder é combatido em dois fronts. No contexto, a falha da democracia representativa consiste na formação de oligarquias, o que somente pode ser corrigido pela existência de uma pluralidade de oligarquias, o que faz com que o poder não seja apenas distribuído como também controlado, demonstrando-se a importância da liberdade no dissenso.
Portanto, a liberdade em discordar precisa de uma sociedade pluralista, o que permite maior distribuição de poder e, assim, viabiliza a democratização da sociedade civil, o que, em última análise, alarga a democracia política.

O Futuro da Democracia

Democracia é um conjunto de regras que prevêem como e quem está autorizado a tomar decisões coletivas, ressaltando-se que todo grupo social é obrigado, para manter a vida coletiva, a tomar decisões que vincule seus membros. Nesse contexto, lembra-se que o estado liberal e o estado democrático são interdependentes, porém têm andado em descompasso nas últimas décadas.
Muito já foi dito sobre as transformações na democracia, suficiente para lotar-se uma biblioteca, parecendo ser útil, portanto, focar-se no contraste entre os ideais democráticos e a democracia real. Considerando-se que a democracia advém de uma visão individualista, a sociedade teria sua constituição como fruto da vontade dos indivíduos, o que decorre de três posições da filosofia sócia moderna: o contratualismo, que sustenta o estado da natureza antes da sociedade civil; a economia política; e a filosofia utilitarista de Benthan a Mill, que parte da idéia de que o alcance do bem comum se dá pela soma dos bens individuais. Pensando no indivíduo soberano, a doutrina democrática imaginou um estado sem intermediários, porém o que vimos na história foi o oposto, com a formação de grupos como protagonistas da vida política na sociedade democrática, o que evidencia que a democracia fundada na soberania popular era o modelo de uma sociedade monista, enquanto a sociedade real é pluralista.
Em verdade, a base da representação política é incompatível com a representação de interesses e, dessa forma, a soberania do rei foi transferida para a da Assembléia por meio de mandatos livres. Esse princípio da representação política, porém, foi reiteradamente desconsiderado, sendo evidente, na prática, a existência de mandatos imperativos, que terminam por representar interesses particulares. Além disso, o poder oligárquico não foi superado e a computadorcracia, que pudesse permitir a superação das oligarquias e o exercício da democracia direta, é uma hipótese ingênua. Até porque, o excesso de participação pode resultar em apatia eleitoral.
De qualquer forma, uma vez conquistado o sufrágio universal, a extensão da democracia deve revelar-se, mais do que na democracia direta, mas da democracia política para a democracia social, pois o grau democrático de uma sociedade deve ser buscado no aumento dos espaços de participação, mais que do número dos que têm esse direito.
Outra dissociação das promessas democráticas e a realidade é a falta de eliminação do poder invisível. Dessa forma, hoje é ainda mais importante o controle público, no momento em que o Estado detém ilimitados poderes de conhecer seus cidadãos, fazendo-se pensar, nesse sentido, sobre o potencial da computadorcracia para os governantes. Até porque se poder tender, em vez de maior controle sobre os governantes, a um maior controle sobre os cidadãos.
Mais uma promessa descumprida refere-se à educação para a cidadania, eis que é evidente a apatia política inclusive nas democracias consolidadas bem como a diminuição do voto de opinião e aumento do voto de permuta, ou voto clientelar, levando a utilização dos direitos políticos em interesses pessoais.
Todos esses défices democráticos são agravados, ainda, pelo fato de que o projeto político democrático foi formulado para sociedades menos complexas que as de hoje, e os problemas atuais exigem competências técnicas cada vez mais especializadas e constituindo o que se pode chamar de tecnocracia, uma antítese da democracia.
Esse contexto levou ao aumento da burocracia e a formação de uma estrutura piramidal do sistema político, com o poder indo do vértice à base, enquanto em uma sociedade democrática o movimento deve ser contrário.
Os défices e obstáculos acima mencionados levaram à chamada “ingovernabilidade” da democracia, justamente porque o estado liberal, que emancipou a sociedade civil do sistema político, permitiu que as demandas livres aumentassem em número e urgência, criando uma defasagem entre o mecanismo da imissão e o mecanismo da emissão, ou seja, a democracia tem demanda fácil e resposta difícil.
[um sistema informatizado de democracia necessita desburocratizar e facilitar o acesso aos serviços do estado, para facilitar e agilizar não somente a demanda, mas também a resposta. A administração pública deve se reestruturar de forma a alcançar uma mudança de cultura.]
Apesar das dificuldades acima mencionadas, estas não foram suficientes para transformar os regimes democráticos em regimes autocráticos.
Por outro lado, considerando-se que a democracia é um conjunto de regras de procedimento, para contar com cidadãos ativos são necessários ideais. É preciso, portanto, relembrar que as lutas históricas que levaram às regras democráticas são decorrentes, principalmente, do ideal de tolerância, de não-violência, de renovação gradual da sociedade por meio do livre debate e do ideal de irmandade, que nos une todos os homens em um destino comum.

O Futuro da Democracia - Premissa

O Futuro da Democracia: em defesa das regras do jogo
Norberto Bobbio

Premissa
Não obstante a democracia ocidental estar doente, a atual situação não configura sua derrocada, mas um processo natural de transformação que ocorre desde seu início, com as revoluções americana e francesa. Também é verdade que existe um poder invisível que corrompe a democracia, mas a alternância de grupos de poder ainda é a única maneira que a democracia encontrou, até agora, para se concretizar, se considerarmos como regime democrático um conjunto de regras para deliberações coletivas que conte com a participação mais ampla possível. Os textos a seguir debatem as questões elementares que envolvem o tema.

5 de jul. de 2007

Capítulo 6 / Conclusão – A Crítica da Razão Indolente

Capítulo 6 – Não disparem sobre o utopista / Conclusão
Em um contexto de transição paradigmática, e emancipação social é uma aspiração óbvia, mas de difícil alcance, já que os problemas fundamentais de hoje são aqueles que não têm solução no paradigma moderno. A ciência e o direito não reconhecem essa limitação e, assim, transformam-se eles próprios em problemas fundamentais adicionais. Aliás, as soluções técnicas decorrentes da cultura instrumental da modernidade possuem um excesso de credibilidade que oculta suas incapacidades, razão pela qual as soluções decorrentes dessas técnicas não nos incentivam a pensar no futuro. A racionalidade científica, que expandiu do estudo da natureza para o estudo da sociedade, acabou por criar um ambiente hostil ao pensamento utópico, o qual, com a perda da confiança na ciência moderna, pode ser resgatado objetivando a reinvenção dos mapas de emancipação social e de subjetividades inconformistas. De qualquer maneira, as lutas emancipatórias, com o avanço da transição paradigmática, combaterão regulações diferentes, muitas vezes decorrentes dessas próprias lutas, razão pela qual é necessária uma permanente vigilância e auto-reflexividade, o que aliás distingue a emancipação pós-moderna da moderna. Deve-se permitir, assim, a constante contradição entre formas alternativas de sociabilidade, porém sem se possibilitar que estas sejam desvalorizadas logo à partida. Esta é uma proposta, por si só, se constitui em uma luta política, que deve ser travada em todos os espaços estruturais, sobretudo no espaço da cidadania. O Estado, pela forma cósmica de seu poder e direito (dominação e direito territorial), tem grande poder de condicionar as práticas sociais e, dessa forma, os movimentos emancipatórios têm que transformar essa capacidade cósmica em capacidade caósmica, determinando uma sociabilidade viabilizado pelo Estado que crie condições para experimentação social nos seis espaços estruturais, o que exige uma profunda reinvenção desse Estado. Nessa transição, o Estado passa a ter como função central garantir a experimentação de sociabilidades alternativas, não lhe cabendo avaliar o seu desempenho, que deve ser uma atribuição dos movimentos sociais. Do mesmo modo, no espaço da produção, o Estado deve garantir a co-existência de modos alternativos de produção, enquanto no espaço do mercado deve permitir formas alternativas de consumo em igualdade de circunstâncias. Já no espaço da comunidade, a experimentação deve se dar pelo reforço do princípio do multiculturalismo em toda atividade estatal. Por fim, no espaço da cidadania, deve-se buscar um novo paradigma de democracia radical, com a democratização vertical e horizontal das relações sociais, de forma a disseminar a democracia a todos os espaços estruturais, que aliás é a única forma de tornar emancipatória a democracia do espaço da cidadania. Essa experimentação paradigmática transforma o Estado em um Estado piloto, de forma que a dimensão da providência social se consubstancia na transferência das prerrogativas do Estado para âmbitos não-estatais.
A proposta utópica apresentada parte de experimentações de sociabilidades, considerando que as formas dominantes não serão eliminadas em uma ruptura, mas serão enfraquecidas na media em que têm que permitir florescer, e têm que competir com, formas alternativas de sociabilidade, além de, como conseqüência, perderem o monopólio sobre as práticas epistemológicas e sociais. Dessa maneira, a luta pela avaliação é tão importante quanto pelas garantias, ou seja, a luta paradigmática não pode ocorrer fora do Estado, mas dentro e fora. Essa luta é arriscada e, embora se baseie em uma antagonia entre novo e velho, não significa que os opressores não possam estar em qualquer dos lados. Até porque o paradigma emergente ainda é pouco nítido e motivador, uma vez que tem de enfrentar forças sociais, políticas e culturais que estão interessados na reprodução do modelo atual, ainda que seja claro que a falta de confiança no futuro, decorrente da crise da modernidade centra no Estado, já começa a nos deixar face a face com um futuro que desconfiamos. Nesse contexto, as obrigações horizontais são mais importantes que as verticais, significando dizer que a subjetividade deve ser participativa e orientada pelo princípio da comunidade, um metatópico subjacente a um novo senso comum político, constituindo-se uma subjetividade de fronteira. Essa subjetividade deve ser, ainda, uma subjetividade barroca, um exercício de desproporção e proscrição do riso, do divertimento e da ludicidade, ou seja, o reverso da ciência moderna, já que as receitas cartesianas capitalistas não servem para a reconstrução da personalidade humana com capacidade de desejar a transição paradigmática necessária. Igualmente, deve-se constituir uma subjetividade do sul, o que quer significar a internalização da capacidade e vontade de um exercício da solidariedade para uma tópica da emancipação, visando construir um círculo de reciprocidade mais amplo que o proposto pela modernidade. Essas sociabilidades são, assim, uma constelação variável dos tópicos da fronteira, do barroco e do Sul, sendo fundamental, entretanto, a existência dos três, para que resulte na construção de subjetividades e sociabilidades que resultem em práticas sociais e epistemológicas de competição paradigmática em cada um dos seis espaços estruturais. Nesse contexto,as formas organizacionais da prática social são secundarias, ainda que não irrelevantes, podendo constituir-se em ONGs, movimentos populares, partidos, sindicatos etc., adequando-se a cada caso, porém sempre sendo necessária a interiorização das tópicas de fronteira, do barroco e do sul.
Por fim, o objetivo principal da obra não foi apresentar o projeto de uma nova ordem, mas demonstrar a crise do paradigma vigente e a desordem decorrente, o que cria oportunidade de constituição de uma emancipação autêntica como fruto de um compromisso de pensamento vanguardista iluminado.

Capítulo 5 - A Crítica da Razão Indolente

Capítulo 5 – Os modos de produção do poder, do direito e do senso comum

Primeiramente, é de se dizer que a pluralidade de formas de direito, de poder e de conhecimento não é caótica, mas, ao contrário, é estruturada e relacional. Além disso, o conhecimento dessas pluralidades não colidem com o direito estatal, o poder estatal ou o conhecimento científico, pois confirma-os, ainda que os relativiza ao estabelecer formas mais vastas de constelações de ordens jurídicas, de poderes e de conhecimentos. Até porque, o enfraquecimento do poder do Estado não o torna menos fundamental para as funções políticas exigidas pelo sistema mundial.
O poder é sempre exercido em uma constelação de diferentes formas de poder combinadas. Entretanto, é necessário um princípio de estruturação do poder, pois se o poder está em todo lado, não está em lado algum, considerando-se que poder é, em sentido amplo, qualquer relação social regulada por uma troca desigual. Por essa razão, as relações de poder em nossas sociedades estão profundamente ligadas à desigualdade material, inclusive a educacional, pois esta tem o agravante de reduzir a capacidade representacional/comunicativa, significando limitação na defesa de interesses. Uma teoria crítica exige emancipação relativamente às relações de poder, já que a relação social é um exercício de poder na medida em que alguns conseguem impor a outros situações contrárias a seus interesses. Assim, uma relação emancipatória precisa se integrara uma constelação de práticas emancipatórias, pois assim haverá cada vez mais um número maior de relações cada vez mais iguais. Esse processo visa substituir o dualismo Estado/sociedade civil bem como debelar a especialização da política e do direito ligados unicamente ao Estado e a conseqüente separação entre direito e política.
As sociedades capitalistas que formam o sistema mundial possuem um mapa de estrutura-ação que se apresenta em seis espaços distintos: o espaço doméstico, o da produção, do mercado da comunidade, da cidadania e o espaço mundial. Cada espaço possui diferentes unidades de prática social, de instituições, de forma de poder, de forma de direito, de forma epistemológica e de dinâmica de desenvolvimento. Essa estrutura-ação é resultado de um longo processo histórico de relacionamentos entre poder, direito e conhecimento. A idéia básica é, portanto, tratá-los igualmente, sem os fundir em totalidades redutoras, destacando os fios da rede que os articulam, afastando-se, ainda, de uma análise centro-cêntrica ou ocidental-cêntrica. Nesse sentido, ao contrário, o Estado moderno buscou fundir os espaços da comunidade e da cidadania, não obstante o fato de que, na prática, o espaço da comunidade manteve-se como lugar autônomo de relações sociais. Ainda assim, o consumo deixou de ser um epifenômeno para se tornar um lugar estrutural de relações sociais e, portanto, de novas formas de poder, direito e conhecimento.
Relativamente ao mapa da estrutura-ação, conceitua-se como espaço doméstico o conjunto de relações sociais de produção e reprodução das domesticidades e do parentesco; o espaço da produção é o conjunto de relações sociais desenvolvidas em torno de processos de trabalho e relações entre produtores e entre estes e a natureza; o espaço do mercado é conjunto de relações sociais em torno de valores de troca e da satisfação mercadológica das necessidades; espaço da comunidade é o conjunto de relações sociais que ocorrem em torno de territórios físicos e simbólicos de identidades comuns; espaço da cidadania é o conjunto de relações que formam a esfera pública, onde se desenvolve a relação política entre cidadãos e o Estado . Esses espaços possuem uma dimensão institucional que se refere à reprodução de formas, procedimentos, aparatos e esquemas que organizam as relações sociais em seqüências repetitivas, estabelecendo padrões de normalidade e de senso comum. Por outro lado, os espaços se organizam em uma dinâmica de desenvolvimento, que determina a direção da ação social e normalidade da mudança social. Por fim, uma vez que os espaços estruturais funcionam em rede, as contradições parciais constituem campos sociais concretos que se relacionam com todos os outros campos.
Diferentes formas de troca desigual originam diferentes formas de poder. Assim, a reestruturação do capital em nível global exige um refinamento dos instrumentos analíticos que visem a compreensão das novas constelações de poder. Aliás, a dominação, que é a forma de poder do espaço da cidadania, é a única reconhecida pelas teorias liberal e marxista como gerado no sistema político centrado no Estado. Essa dominação é um poder cósmico, que aquele centrado no estado e limitado por relações burocráticas institucionalizadas, enquanto outras formas são poderes caósmicos, que são aqueles descentralizados e informais, exercidos por diversos microcentros de poder sem limites pré-definidos. Entretanto, as experiências de vida tendem a se reduzir à um desses componentes, dificultando a resistência contra o poder, que na realidade é resultado cósmico e caósmico simultâneo.
Em outro lado temos o direito, que é um corpo de procedimentos regularizados e de padrões normativos legitimados em um grupo, que visa a solução de litígios por meio de um discurso argumentativo, articulado e com ameaça de força. O direito estatal, que é a única forma de direito que se reconhece como tal, tende a se perceber como único representante do campo jurídico, não reconhecendo seu funcionamento em uma rede de direito mais vasta.
Esse direito territorial tem buscado gradualmente policiar as famílias por meio de uma série de intervenções, de forma que, hoje, o espaço doméstico é juridicamente constituído por uma articulação do direito doméstico e territorial. O direito da produção, vinculado ao mundo empresarial, refere-se aos regulamentos e padrões normativos que regulam as relações do trabalho, sendo, assim, um direito de comando, muitas vezes com características semelhantes às do direito militar. A sua relação com o direito estatal é uma articulação jurídica essencial nas sociedades capitalistas. Aliás, a desregulamentação do espaço da produção é a face visível do enfraquecimento do direito territorial. O direito do espaço do mercado é o direito da troca, regulando as trocas comerciais e, portanto, constelando-se com todas as outras formas, principalmente o estatal. O direito da comunidade é um dos mais complexos, uma vez que lida com situações diversas e, portanto, sua constelação é igualmente diversificada. O direito territorial ou direito estatal é aquele referente ao espaço da cidadania, sendo o direito central na maioria das ordens jurídicas. Ele tende a sobrestimar sua capacidade de regulação e, sendo derivado da dominação, é um direito cósmico, que se constela cosmicamente com todos os direitos caósmicos. Por fim, temos o direito sistêmico, vinculado ao espaço mundial, que organizam as relações dos Estados-nação no sistema inter-estatal, tendendo a ser forte em retórica e violência e fraco em burocracia.
Perceber a constelação de todos esses direitos é importante na medida em que demonstra sua vinculação com a vulnerabilização de certos grupos sociais, demonstrando a necessidade de resistência contra as ordens jurídicas, bem como explicita a exigência de uma constelação de práticas emancipatórias para que haja sucesso nessa luta, caso contrário uma luta isolada pode reforçar a regulação de outros espaços, anulando o resultado final do movimento.
Em relação às formas de conhecimento, é de se dizer que cada espaço estrutural constitui um senso comum específico e toda interação social é uma interação epistemológica e uma troca de conhecimento. Assim, não há na sociedade um único senso comum, mas seis grande sensos comuns e modos de produção de conhecimento-regulação. Eis porque todo conhecimento é parcial e local, limitado pelas relações sociais. Das formas de conhecimento, a ciência é aquela cega ao contexto, o que é a raiz do seu funcionamento cósmico, apesar de que, como essa cegueira somente é crível em um contexto específico, ela própria e contextualizada por conhecimentos caósmicos. Dessa maneira, a teoria crítica pós-moderna tem por tarefa promover argumentos emancipatórios e sensos comuns contra-hegemónicos em cada um dos espaços estrtururais, de maneira e expardir-se e tornar-se conhecimento-emancipação hegemônico. Para isso, não pode esquecer, sob pena de uma constelação ingênua, que, assim como o conhecimento emancipação, o conhecimento emancipação se desenvolve em uma constelação de conhecimentos.
A caracterização das sociedades se dá principalmente pelas fronteiras externas da sua limitação estrutural, pois é dentro desses limites que os espaços estruturais desenvolvem-se. Isto ocorre, primeiramente, por meio da fixação-de-fronteiras, que estabelece seus limites, e a abertura-de-novos-caminhos, que pode deslocá-los, constituindo tais dinâmicas a dimensão qualitativa dos espaços. Além disso, os espaços estruturais podem se desenvolver de forma quantitativa, ou seja, em alta o baixa tensão. Em alta tensão, o poder auxilia na organização da sociedade; em baixa tensão, subverte o processo de organização. Mais uma vez se vê que a luta anti-sistêmica deve levar em consideração a constelação das práticas sociais emancipatórias, exigindo-se criatividade e inovação para um conhecimento-emancipação menos dogmático, predisposto a superar incompletudes e epistemologicamente tolerante em relação aos conhecimentos parciais e locais e seus sensos comuns.
No espaço da cidadania há uma percepção de que somente o direito e o poder emanado e do Estado são considerados regras e política, respectivamente. Trata-se de um reducionismo que oculta de que o direito e o poder democráticos estatais funcionam em uma constelação com poderes e juridicidades em geral mais despóticos. Essa ocultação foi inculcada com sucesso em toda a sociedade, após o que não houve interesse em expandir os princípios jurídicos e democráticos do espaço da cidadania da modernidade aos demais espaços. Assim, o despotismo oculto permaneceu invisível, jamais sendo contrastado com o caráter relativamente democrático do direito e do poder no espaço da cidadania. Por essas razões, a “falsa consciência” do direito não se dá pela dificuldade de sua aplicação, mas em razão da construção social que estabelece o direito estatal como única forma de direito, situação nunca superada pela sociologia jurídica, ainda que crítica. Por isso, hoje as sociedades capitalistas são menos que democráticas, eis que o direito da cidadania, por mais democrático, constela com outras cinco formas de direito, em geral mais despóticos.
Em conclusão, pode-se afirmar que os espaços estruturais funcionam em uma complexa rede formada por seis dimensões. Esses espaços, ainda que autônomos, possuem uma dinâmica parcial que se movimenta na prática social e em constelação com outras dinâmicas parciais. As sociedades capitalistas, ainda que constituam uma articulação de seis modos de poder, de direito e de conhecimento, suprimem o caráter político, jurídico e epistemológico daqueles elementos quando não se formam a partir da dominação, do direito estatal e da ciência, respectivamente, o que determina a preponderância desses elementos em detrimento de uma imensa variedade de possibilidades existentes nos espaços estruturais. Isso é importante na medida em que o caráter político das relações sociais não ocorre somente no espaço de cidadania, mas em uma constelação das diversas formas de poder de diferentes espaços. Além disso, há a ocultação dessa limitação hegemônica existente por meio da dominação, do direito estatal e da ciência, levando à uma redução da política ao espaço da cidadania, da redução do direito ao direito estatal, e da redução do senso comum epistemológico ao conhecimento científico. Isso determina hábitos sociais, políticos e culturais, orientando a prática social, que se baseiam em premissas equivocadas. A identificação e a caracterização dessas constelações de regulação, que servem de meios de opressão das sociedades capitalistas, além da percepção da pluralidade de agentes e instrumentos sociais, podem contribuir para construção de um senso comum novo e emancipatório.

2 de jul. de 2007

A Crítica... Cap. 4

Cap. 4 – Para uma epistemologia da cegueira: por que razão é que as novas formas de “adequação cerimonial” não regulam nem emancipam

Há uma relação circular e empobrecida entre os fatos e a teoria, chamada de “adequação cerimonial” que determina o que é ou não normal. É fácil criticá-lo, mas é muito difícil criar uma alternativa credível para esse processo. Isso porque é simples identificar a cegueira dos outros, principalmente os do passado, porém o que dizemos hoje sobre a cegueira dos outros será visto, no futuro, como sinal de nossa própria cegueira. Por que pensamos ver plenamente o que vemos parcialmente? Vale a pena ver? A permanência da adequação cerimonial tem a ver com a conversão da ordem em saber colonialista e com a conversão da solidariedade em ignorância caótica. Para sair desse impasse há que se dar primazia ao conhecimento-emancipação sobre o conhecimento-regulação, implicando em que a solidariedade transforme-se em forma hegemônica de saber, bem como que se reconheça a positividade do caos como parte da ordem solidária.
Para compreender a representação dos limites da economia e das ciências sociais é útil fazer uso de ciências que se ocupam regularmente de situações extremas, a exemplo da arqueologia e da astronomia. Nelas é possível perceber que o primeiro limite à representação refere-se à determinação sobre o que é relevante, pois diferentes critérios são decorrentes de diferentes objetivos. Essa relevância do objeto é estabelecida sociologicamente, como produto de um fiat econômico disfarçado de evidência epistemológica. Para melhor compreensão desse processo, lembra-se que a regulação em grande escala (local) baseia-se na representação e na posição, enquanto a de pequena escala (mundial) baseia-se na orientação e no movimento. A escolha de uma ou de outra é uma decisão epistemológica, em uma convergência de interesses onde a economia cria a realidade que maximiza a eficácia da regulação que lhe favorece, de maneira a cobrir vastas regiões do globo e reduzir os pormenores e contrastes locais.
Por outro lado, estabelecida a relevância, deve-se estabelecer os graus de relevância, o que se faz por meio da perspectiva. A exemplo, as proporções de uma pintura, para que se alcance a verossimilhança da representação, parte de um ponto de vista fixo ideal que garante a proporção entre os objetos pintados e suas imagens. O pintor, portanto, pinta para um espectador ideal, construindo a ilusão da realidade e, portanto, de uma arte ilusionista. O cientista moderno age de forma semelhante, mas que acredita mais nas ilusões que cria do que o pintor. Uma vez que o pintor sempre colocou o espectador do lado de fora, conseguiu diferenciar entre o espectador ideal e o significativo, este sendo seu patrono. O cientista não foi capaz desta distinção, pois para ele tanto um quanto confundem-se em si próprio. A economia convencional foi onde mais drasticamente houve essa fusão, eis que tem em um único espectador privilegiado: o empresário capitalista, razão pela qual a fiança da economia passou a fazer parte da epistemologia científica moderna.
A questão da relevância passa, ainda, pela identificação do que é considerado relevante, o que ocorre por meio de dois processos: a detecção (traços de um fenômeno) e o reconhecimento (parâmetros de detecção e classificação). No primeiro predomina o nível da metodologia, enquanto no segundo predomina o nível da teoria. Assim, uma vez que o desenvolvimento dos métodos de pesquisa são mais desenvolvidos do que as teorias, principalmente nas ciências sociais, fica evidente que a capacidade de detecção excede a de reconhecimento. É na economia convencional que esse fosso se apresenta maior, pois ela intervém na vida social em modo de baixa resolução, mas legitima o funcionamento como se tivesse alta resolução.
O terceiro limite para uma adequação não cerimonial refere-se ao tempo e sua percepção. Isso porque os objetos somente podem ser considerados se determinados os seus espaços-tempos. Uma vez que essa identificação é difícil, a ciência tem buscado um enquadramento ilusório e arbitrário de simultaneidade entre sujeito e objeto, que leva à falácia da contemporaneidade, que parte da idéia de que um evento se distribui de forma igual entre os participantes de uma intervenção simultânea. Isso impede à economia convencional de identificar durações, ritmos, seqüências e relações entre sincronias e dessincronias, tendo duas conseqüências principais: a hiper-espacialização do tempo passado e as intervenções de alta velocidade.
O último limite da representação refere-se à interpretação e à avaliação, pois é através delas que os objetos são contextualizados na política e na cultura. Em verdade, a perspectiva renascentista foi conseguida pela imobilidade de uma visão única que caracteriza a ciência moderna, o que a afasta de qualquer conhecimento alternativo que não se adéqüe à imagem refletida no espelho. Assim, o privilégio epistemológico da ciência moderna é produto de um epistemicídio, com a destruição de conhecimentos e prática sociais, além da desqualificação de agentes, que tenham base em epistemologias alternativas. Essas alternativas rejeitadas são como entidades inexistentes, e a sociologia das ausências é um trabalho gigantesco justamente por necessitar de uma epistemologia das ausências que possui uma resolução pouco nítida.
As conseqüências da cegueira resultam em as representações distorcidas das conseqüências. É certo, de qualquer forma, que a imagem da ação científica é construída em pequena escala, a partir de uma visão única de um espectador privilegiado, com uma baixa resolução de identificação em razão do desequilíbrio entre métodos e teorias, havendo ainda uma distorção das temporalidades por uma falsa contemporaneidade entre camadas sociais, bem como uma baixa capacidade de perceber e aceitar práticas sociais alternativas.
Isso determina a necessidade de uma epistemologia da visão, que faz a pergunta pela validade partindo do colonialismo como ignorância e a solidariedade como saber. É um processo que se inicia com a epistemologia dos conhecimentos ausentes, que parte da premissa de que as práticas sociais são práticas de conhecimento, ainda que não se assentem na ciência. Esta, aliás, considerou o senso comum como superficial, ilusório e falso, tão-somente por não corresponder aos critérios epistemológicos estabelecidos pela ciência para si própria. Essas considerações demonstram uma saída baseada em uma dupla ruptura epistemológica: realizada a primeira, uma segunda é necessária, com a finalidade de tornar o conhecimento científico em um novo senso comum. Deve se basear, também, em uma epistemologia dos agentes ausentes, que é a demanda de subjetividades rebeldes contra práticas conformistas.
Desta forma, revisitando os limites da representação, é possível dizer que os critérios de relevância matematicamente estabelecidos tendem a deixar-se reificar pelo seu uso não problemático, enquanto a perspectiva curiosa produz ilusões que, em vez de imitar a sociedade, a reinventa. Somente uma constelação de conhecimentos, que proporcionem uma resolução cada vez maior, é que pode viabilizar esse projeto. Em todo caso, cada vez mais precisamos submeter as aplicações tecnológicas do conhecimento à contestação política e ética, por que assim alcançaremos um paradigma edificante de aplicação da técnica da ciência, um paradigma capaz de navegar, prudentemente, à vista das conseqüências.

1 de jul. de 2007

A Crítica da Razão Indolente - Cap. 3

Cap. 3 – Uma cartografia simbólica das representações sociais: o caso do direito
Ressalte-se, de início, que o direito é um conjunto de representações sociais que representam um modo específico de perceber a realidade, possuindo muita semelhança com os mapas, e tal como eles, é uma distorção regulada de territórios sociais.
Os mapas, para desempenhar suas funções, têm necessariamente que distorcer a realidade, o que fazem por meio de três mecanismos: a escala, a projeção e a simbolização. Vejamos algumas considerações básicas sobre a cartografia para posterior comparação ao sistema jurídico:
Os mapas são versões em miniatura da realidade, eis por que envolvem sempre uma decisão sobre os detalhes mais significativos a serem representados. Fácil perceber, então, que a decisão sobre a escala condiciona o tipo de mapa e vice-versa. Uma vez que cada fenômeno só pode ser representado em certa escala, mudá-la significa mudar o fenômeno a ser percebido. Nesse sentido, o poder busca representar a sociedade em uma escala que maximize as condições de reprodução de poder
Outro mecanismo de produção de mapas é a projeção, sendo que cada tipo diferente cria um campo de representação onde algumas inevitáveis distorções de várias características do espaço são feitas de acordo com regras conhecidas e precisas. A escolha da projeção, ainda que baseada em fator técnico, significa um compromisso ideológico com o uso a que se destina o mapa. Aliás, a cada período histórico ou tradição cultural, um ponto fixo serve como centro dos mapas, um espaço a que é atribuída uma posição privilegiada em torno do qual se dispersam os outros espaços.
A simbolização é o terceiro mecanismo de representação/distorção cartográfica. Nela se diferenciam os sinais icônicos e convencionais, sendo o primeiro sinais naturalísticos de relação de semelhança com a realidade, enquanto os segundos são mais arbitrários. Dependendo do uso de uns ou de outros, os mapas podem ser produzidos para serem vistos ou lidos.
A partir desses conceitos, pode-se estabelecer uma cartografia simbólica do direito, partindo da observação de que, ao contrário do que anuncia a filosofia política liberal e a ciência do direito, existem na sociedade várias formas de direito, sendo que o direito oficial, ainda que a mais importante, é apenas uma delas. Essa é a idéia essencial do pluralismo jurídico.
A relação do direito e a escala leva à evidência de que aquele opera unicamente segundo a escala do Estado, o que ocorre em três espaços: o local, o nacional e o global. O que difere estes espaços é o tamanho da escala, partindo da maior (local) para a menor (mundial), com que se regula a ação social. Essas diferentes ordens jurídicas, em diferentes escalas, a exemplo dos mapas, representam objetos jurídicos distintos, mas as práticas sociais não existem isoladas, mas interagem de diversas formas. Essas intersecções entre direitos de diversos espaços jurídicos são tão fortes que não se pode falar de legalidade, mas de interdireito e interlegalidade. Trata-se, portanto, de uma rede ações, que é uma seqüência interligada de ações determinadas por limites pré-definidos. Assim, a legalidade de grande escala (local) suscita redes de ações táticas e edificantes, enquanto a de pequena escala (mundial) suscita redes de ações estratégicas e instrumentais. Estabelece-se, por fim, patamares de regulação, que é o produto da combinação de três patamares: de detecção, que é o nível mínimo a ser objeto de regulação; de discriminação, que são as diferenças mínimias da ação social que justificam diferentes regulações; e de avaliação, referente às variação qualitativa suscetíveis de ganhar sentido na regulação. Estes três patamares variam de acordo com a escala, ainda que haja diferenças internas em cada patamar de regulação. O movimento, todavia, é o produto dos movimentos combinados e desiguais desses três patamares de regulação.
A forma de projeção cartográfica do direito permite a distinção da realidade social a ser regulada, pois diferentes projeções criam objetos jurídicos diversos, favorecendo certos interesses e concepções de solução de conflitos, em um processo que não é neutro. De acordo com a projeção aceita, cada ordem jurídica estabelece diferentes centros e periferias. Weber lembra que o direito surgiu como resultado de consensos de diferentes grupos de status, portanto, um direito voluntário, onde cada grupo ou indivíduo tinha uma qualidade jurídica própria que carregava onde fosse. A idéia de um direito aplicável a um certo território, independentemente das características de seus habitantes floresceu muito lentamente, tendo seu cume na Revolução Francesa, quando o Estado moderno se transformou em instituição coercitiva global e seu direito abstrato passou a ser aplicado a todos os indivíduos. Contudo, há evidências de que os meios contemporâneos de solução de conflitos têm sido regularmente construídos à margem do estado, o que é um sintoma de uma tensão entre o direito geocêntrico dos Estados-nação e o novo direito egocêntrico de agentes transnacionais.
A simbolização, que é a face visível da representação da realidade, permite a distinção de dois tipos ideais de simbolização jurídica: o estilo homérico e o estilo bíblico. O primeiro tem por característica a conversão do fluxo contínuo da ação social em uma sucessão de momentos descontínuos ritualizados, bem como é uma descrição formal e abstrata da ação social por meio de símbolos convencionais, referenciais e cognitivos. O segundo gera uma juridicidade imagética, descrevendo a realidade de forma a integrar as descontinuidades da ação social, fazendo-o por meio de sinais icônicos, emotivos e expressivos.
É dessa forma, utilizando um objeto comum como os mapas, que se busca trivializar o direito em busca de um novo senso comum jurídico. Em verdade, a fragmentação da realidade e da legalidade proposta pelo pluralismo jurídico não é caótica, mas regras de escala, projeção e simbolização de um universo ético e jurídico policêntrico. O cidadão comum, em razão da naturalização da cartografia do direito nacional estatal, tem dificuldades em reconhecer como jurídicas ordens normativas que usam princípios cartográficos distintos, fazendo com que um novo senso comum deva partir de uma concepção autônoma do que é o direito. Para isso, primeiramente é necessário analisar as práticas institucionais e quadros profissionais dominantes, que são os principais obstáculos epistemológicos do novo pensamento sociológico. Além disso é preciso revisar, sem dogmatismos sobre sua positividade ou negatividade, a escala, a projeção e a simbolização do direito, de maneira a integrar o formal e o informal. Por fim, deve-se proceder uma análise cuja cartografia equilibre análises estruturais e fenomenológica, de forma a estruturar no espaço simbólico as respostas adequadas à prática proposta.

A Crítica da Razão Indolente - Parte II - Introdução

Parte II – As armadilhas da paisagem: para uma epistemologia do espaço-tempo
Introdução
Os problemas da racionalidade moderna ocidental são decorrentes da confiança da administração de suas potencialidades pela ciência, que se transformou em força produtiva do capitalismo, bem como da confiança em um direito que foi apropriado pelo Estado e, por conseqüência, também pelos grupos sociais que controlam o Estado e que transformaram seus interesses em interesses nacionais.
A percepção de naturalidade de procedimentos dos sistemas de representação fazem com que a ciência e o direito se tornem invisíveis, mostrem sem se mostrarem. Eis que foi na luta contra a racionalidade estético-expressiva que eles se apresentaram como guardas de olhar arrogante da modernidade eurocêntrica. A cartografia simbólica, assim, pode ser uma excelente metáfora do direito, como um mapa cognitivo dos espaços de ordem e desordem.

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